No último dia 23 de junho de 2009, o Prefeito Eduardo Paes, junto com o Governador Sergio Cabral e o Presidente Lula, inauguraram o “Porto Maravilha”. O ambicioso projeto tem como um dos principais objetivos, dentre outros, o de transformar a abandonada Zona Portuária do Rio de Janeiro numa nova área residencial o que também acarretará na reestruturação do sistema viário, na criação de áreas comerciais, espaços de lazer, museus e infraestrutura turística. O coração do projeto é a Praça Mauá e adjacências, incluindo o Píer Mauá e os armazéns mais próximos.
Outro espaço contemplado pelo “Porto Maravilha” é o Morro da Conceição; um pequeno bairro histórico cuja ocupação inicial remonta à época colonial, localizado numa colina próxima à Praça Mauá e tendo um casario residencial que, na sua maioria, foi construído no final do século 19 e na primeira metade do século 20. Mais recentemente, o bairro vem ganhando visibilidade na mídia e recebendo a atenção de turistas, fotógrafos, cineastas, produtores de eventos culturais e de outros atores sociais mas, paradoxalmente, só agora é que instituições públicas estão voltando a cuidar do bairro após décadas de total repúdio, abandono e esquecimento onde o Morro da Conceição gozou de grande invisibilidade junto aos órgãos da Prefeitura, do Governo do Estado e da União.
Antecipando a inauguração da revitalização da Zona Portuária, portanto, a 6ª Superintendência do IPHAN/RJ junto com as Secretarias Municipais de Urbanismo, Cultura e Turismo, apresentaram o “Projeto Conceição” em reunião com os moradores do bairro no último dia 2 de junho de 2009.
Segundo informou o IPHAN, o projeto conta com um ambicioso plano para restaurar o patrimônio arquitetônico do bairro, visando um tombamento integral do morro, além de promover uma série de intervenções e ações no que se refere ao mobiliário urbano, à redefinição de parâmetros urbanísticos, à fiscalização patrimonial, às pesquisas arqueológicas, às orientações técnico-construtivas para os moradores, e fomento a eventos culturais e ao turismo.
Mas será que o IPHAN está se dedicando, de fato, à salvaguarda dos bens culturais representativos dos diversos segmentos sociais do Morro da Conceição? Será que o IPHAN, - ao invés de se preocupar com a preservação dos espaços de convívio e das memórias sociais e suas relações múltiplas com fachadas, ruas, becos e escadarias, - estaria se dedicando apenas a um tipo de salvaguarda que mistura antigas práticas monumentalistas baseadas na contemplação estética das elites culturais com a tendência atual de transformar patrimônios em novas mercadorias a serem, simplesmente, consumidas?
Na referida reunião do dia 2 de junho, o IPHAN deixou claro que, infelizmente, o “Projeto Conceição” não está sujeito a diálogo e participação. O projeto parece se resumir a um plano de ações integradas já definido a priori e que se baseia numa idéia redutora de transformação estética, sustentada em instrumentos de controle e em técnicas para disciplinar os moradores. Na contramão das próprias Cartas do IPHAN (Cartas Patrimoniais, Caderno de Documentos n.º 3, 1995) e da Constituição Federal (artigo 216 §1, 1988), grande parcela da população do Morro da Conceição não está sendo contemplada. O mais curioso é que ao receber críticas sobre este ponto, o IPHAN deixou clara a sua posição na referida reunião: - “Se os moradores do Morro da Conceição se opuserem ao projeto, o IPHAN simplesmente baixará um decreto” (Ipsis litteris). Ou ainda se, após inventariação concluída, o IPHAN vier a avaliar que os moradores já alteraram significativamente as suas propriedades, “aí mesmo é que vocês não terão projeto algum”. (Ipsis litteris).
Esta atitude autoritária também se manifestou na negação das dimensões políticas dos processos de patrimonialização, contrariando até mesmo qualquer leitura introdutória sobre o tema (ver, por exemplo, “Patrimônio Histórico e Cultural”, da coleção “Ciências Sociais Passo-a-Passo”, Editora Jorge Zahar de autoria de Sandra de Cássia Pelegrini e Pedro Paulo Funari), quando o IPHAN renegou este aspecto do projeto, reduzindo a discussão a uma questão (apenas) estética, justificada inclusive, por ácidas críticas aos moradores por terem instalado “caixas d’águas azuis nos telhados” (Ipsis litteris) algo que, possivelmente, deslustra o olhar higienista do erudito.
O desconhecimento da realidade local e sua dinâmica social peculiar também foram evidenciados pelo equivocado convite feito pelo IPHAN à Secretária Municipal de Urbanismo para que seja implantado o “Projeto POUSO” no Morro da Conceição. Como já é sabido, POUSO é a abreviação de “Posto de Orientação Urbanística e Social” que é, na verdade, um posto de fiscalização urbanística instalado nas comunidades carentes do Rio de Janeiro. No folder distribuído pela Prefeitura pode-se ler que o POUSO “ajuda você a zelar pelas melhorias feitas pelo Favela-Bairro (...) para que este NOVO BAIRRO seja tratado como um BAIRRO”.
Como é possível conjugar, a um só tempo, uma distorcida visão romântica do Morro da Conceição; pela qual o bairro é percebido, por um lado, como um sobrevivente idílico de tempos idos – às vezes denominado de “Pérola da Zona Portuária” – onde, obviamente, os moradores pagam o seu IPTU e outros impostos e, por outro lado, querer dotá-lo com um serviço público destinado a algumas das comunidades mais carentes da Cidade que, por motivos de extrema desigualdade socioeconômica, sequer tem seus mínimos direitos garantidos pelo Estado?
Se o IPHAN tivesse real interesse em implantar um projeto sustentável que levasse em consideração os anseios dos moradores, teria também convidado para a reunião a CET-Rio, a Comlurb, a Guarda Municipal, além da Policia Militar e outras instituições competentes para resolver os problemas cotidianos mais imediatos do bairro, problemas estes que vêm sendo reiteradamente denunciados por muitos moradores a estas mesmas instituições, mas sem nenhuma solução até a presente data.
Assim, o IPHAN poderia também ter discutido a capacidade de carga turística e apresentado seu projeto à luz do plano geral de revitalização da Zona Portuária, mostrando suas conexões com o entorno, assunto que surpreendentemente sequer foi mencionado. Poderia ter apresentado programas de educação patrimonial e aberto a discussão sobre patrimônio imaterial conforme diretrizes definidas no Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Poderia ter organizado grupos de trabalho com os diversos segmentos sociais que compõem a população do Morro da Conceição, apresentando assim um projeto que buscasse, de fato, “preservar a diversidade das contribuições dos diferentes elementos que compõem a sociedade brasileira” (ver o Portal do IPHAN em: www.iphan.gov.br)
Apesar de décadas sem atenção por parte dos poderes públicos, salvo um projeto coordenado pelo Instituto Pereira Passos, implantado na gestão de Luiz Paulo Conde e que foi desativado pelo César Maia em seguida (ver “Morro da Conceição: da memória o futuro”, 2000) – e que, por isto, acabou prejudicando em vez de preservar aspectos do patrimônio cultural do bairro – a grande maioria dos moradores do Morro da Conceição quer e sempre buscará melhorar a sua qualidade de vida, de suas residências e do seu bairro como um todo.
Neste sentido, precisa-se perguntar se não seria pertinente considerar como ofensa a crítica feita pela 6ª Superintendência do IPHAN culpando os moradores como responsáveis pela poluição visual e alterações arquitetônicas quando – na ausência e devido à incompetência do IPHAN e outros órgãos públicos responsáveis por patrimônios já tombados há décadas no bairro – os moradores venham, de acordo com suas condições e possibilidades, “preservando” aquilo que o IPHAN considera como “Patrimônio Nacional”. Compara, por exemplo, o estado de abandono do Jardim do Valongo – único jardim suspenso do Brasil e bem tombado federal desde 1938 –, ou a condição de verdadeiro depósito de lixo e estacionamento irregular do Largo João da Baiana, onde fica a Pedra do Sal – lugar mítico e sagrado para os movimentos negros cariocas e supostamente o lugar onde o samba urbano carioca nasceu, tombado pelo INEPAC em 1987 – com qualquer residência particular, seja ela alterada ou não.
Acreditamos que praticamente todas as pessoas que vivem no nosso bairro poderiam ter apoiado o “Projeto Conceição” lançado pelo IPHAN se este fosse concebido e apresentado de outra maneira. Contudo, exigimos transparência e participação. Tememos, inclusive, por uma literalização dos múltiplos significados atribuídos aos patrimônios e ao passado pelos diversos segmentos sociais envolvidos, algo que ameaçaria esta multiplicidade reduzindo-a a uma narrativa histórica homogênea e vazia e envolvendo uma violência simbólica que nada tem a ver com os diversos modos de vida e as histórias do bairro, mas que parece satisfazer a uma ínfima minoria interessada em usar o Morro da Conceição como experiência a ser vendida e que busca forçar os fluxos da vida cotidiana a ceder a uma estética descontextualizada e hostil às sociabilidades e às lógicas locais.
Será que o “Porto Maravilha” também é concebido nestes termos? Será que mais de cem anos depois da Reforma Pereira Passos e seus desdobramentos estamos novamente diante de um projeto autoritário de higienismo social destinado justamente àquelas áreas que não foram incluídas na reestruturação urbana pelo ilustre prefeito do Rio de Janeiro de então?
Enquanto estamos nos organizando coletivamente, o IPHAN precisa ampliar sua esfera de interlocutores. Além de apenas dialogar com estetas e produtores de eventos culturais que parecem não gostar do nosso bairro como ele é e que, portanto, buscam transformá-lo em outra coisa (ou, quem sabe, numa “coisa” de fato), o IPHAN deveria convidar os moradores do Morro da Conceição em sua diversidade para que se inicie uma verdadeira parceria baseada no diálogo e na participação, traduzindo em práticas efetivas suas próprias retóricas institucionais, tanto pelo bem dos patrimônios culturais quanto por aqueles que no meio e dentro deles vivem.
leia também
http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc266/mc266.asp
sobre os autores
Antônio Agenor Barbosa é Arquiteto e Urbanista
Tomas Martin Ossowicki é Antropólogo
Ambos são moradores do Morro da Conceição, Rio de Janeiro