Em um Brasil cada vez mais urbanizado, é fundamental aumentar a qualidade de vida urbana e oferecer, para além das infra-estruturas elementares, oportunidades de conversão dos citadinos em cidadãos – somente o acesso a bens culturais, espaços públicos, equipamentos de lazer e educação, desde que aliado a serviços básicos de transporte, saneamento, habitação e saúde, pode concretizar um bom acesso à cidade como um todo.
É tempo também de acreditar no urbanismo, na possibilidade de transformação das cidades, no poder de criação das pessoas e na força coletiva das idéias.
Contudo, infelizmente, o conhecimento urbanístico no Brasil é ainda ínfimo se comparado às dimensões continentais da nossa malha urbana e, na maioria das vezes, sua prática majoritária se encontra restrita às grandes capitais, onde se concentram os melhores institutos de pesquisa, as maiores universidades, as publicações e produções mais expressivas, etc.
Ainda que à parte dessa dinâmica, as cidades brasileiras de porte médio vêm apresentando quadros bastante promissores: são as cidades que mais cresceram (em população e produto interno bruto) nos últimos anos (1); costumam apresentar bons índices de desenvolvimento sócio-econômico; oferta de mão de obra e serviços qualificados e, sobretudo, são apontadas entre as que apresentam melhor qualidade de vida.
Atentos a esse panorama, convido aos urbanistas brasileiros que viajem em direção ao centro, que dirijam suas propostas mais otimistas de transformação do mundo às cidades de porte médio, que no nosso país estão, na maioria das vezes, situadas no interior.
Vitória da Conquista, mon amour
Vitória da Conquista é uma cidade baiana de porte médio, com cerca de 300.000 habitantes (2), e fria, devido às grandes altitudes do Planalto da Conquista. Sua origem está relacionada à descoberta de ouro nas minas de Arassuay, ainda que o núcleo urbano tenha se consolidado a partir de atividades pecuaristas e agrícolas (com especial atenção para a cultura do café) e da posição geográfica de entroncamento rodoviário entre as principais estradas do sudoeste da Bahia.
Em paralelo a esses dados objetivos, a minha experiência pessoal conta que Vitória da Conquista é uma cidade criativa, pátria de grandes artistas (entre os quais, Glauber Rocha, Elomar, entre tantos outros); uma cidade alegre, com o bom-humor baiano de levar a vida; jovem, com grande contingente populacional de estudantes; conta com um belíssimo por do sol e suas áreas verdes e espaços públicos são relativamente bem conservados.
Atualmente, a cidade é também considerada como um pólo regional de comércio e serviços, abrangendo, sob sua jurisdição e influência, uma população estimada em 960.000 habitantes (3).
Um dos lugares que melhor exemplificam essa atratividade em nível regional é o centro da cidade que, a despeito dos processos de degradação evidenciado nas grandes metrópoles e da tendência de migração da atividade comercial para os “shopppings centers” periféricos, ainda se mantém vivo na dinâmica urbana e concentra grande parte do comércio e dos serviços ofertados na cidade.
Um projeto para chamar de nosso
Tendo em vista a valorização do centro de Vitória da Conquista como lócus de excelência para a experiência urbana na cidade, desenvolvi, ao longo do ano de 2008, como trabalho final de graduação do curso de arquitetura e urbanismo, um projeto que abrange grande parte dos espaços públicos (ruas, calçadas, praças, calçadões) do centro da cidade.
O projeto proposto se insere em área localizada no encontro do eixo original de ocupação da cidade com a expansão do centro tradicional para alguns bairros residenciais a leste. Tal região tem especial representatividade no que concerne às relações de deslocamentos recorrentes na macro-estrutura urbana, pois inscreve dois eixos de massiva utilização para a circulação leste-oeste.
Além de levar em consideração os aspectos físicos e materiais da área, o projeto levou em consideração também as dinâmicas que participam da fruição do espaço em questão: os fluxos que ali se interceptam (de pessoas, veículos, idéias), as ambiências sugeridas nas praças e espaços públicos tocados pelo projeto, as características sensoriais que podem ser subjetivamente percebidas pelos praticantes (4) da cidade (cheiros, variações de luz, humores, cores, movimentos), entre outros aspectos ditos imateriais.
Atento justo à contribuição que podem dar esses praticantes da cidade é que o projeto se abre, se alarga: deixa de ser um projeto impositivo de formas urbanas estáticas e passa a ser uma proposição diligente de idéias – idéias estas que são apenas pontos de partida para uma discussão maior sobre a cidade e que podem, e devem, ser alteradas por todos os agentes que participam da tomada de decisões sobre o espaço urbano. Ao abrir-se para essa possibilidade de contribuição, o projeto torna-se dinâmico, participativo e faz com que o urbanismo saía das mesas fechadas dos urbanistas e dos políticos e ganhe as ruas; faz com que o pensar urbano seja papel de todos os cidadãos-citadinos.
Um urbanismo liquidificador
É, na verdade, um projeto de urbanismo às avessas da fórmula do Projeto Urbano (5) e mais se assemelha a um projeto de idéias, devido à fluidez da sua exeqüibilidade. Partidário dos conceitos de urbanismo fluído (6) e arquitetura líquida (7), o projeto tira partido de sua contemporaneidade ao se fazer maleável, ou seja, passível de ser atualizado de acordo com as oportunidades que surjam, ao longo do tempo, para fazê-lo exeqüível.
É um projeto em camadas, constituído de grupos de ações independentes entre si. Cada grupo de ações pode ser ou não implementado, isso dependerá apenas das oportunidades que surjam para a implementação do projeto, sejam estas provenientes da iniciativa privada ou da iniciativa pública. Evidentemente, o ideal seria a execução de todas as camadas e assim sendo, o reflexo esperado seria a criação de uma atmosfera coesa intrínseca à área de projeto. Mas é exatamente aí que o projeto se faz aberto, líquido: o horizonte de implantação para todas as camadas é, desde sua concepção, mutável.
E é por estas razões que apelidei o trabalho de “projeto de urbanismo liquidificador”: além de ter uma essência materialmente menos rígida, pois se abre para mudanças, se conforma através das oportunidades e é atualizado pelo tempo e pelos praticantes da cidade; o projeto mistura vários conceitos do urbanismo contemporâneo – sustentabilidade, fluidez, adaptação, mobilidade urbana, valorização do espaço público, entre outros.
É um urbanismo que, ao mesmo tempo em que se faz líquido, liquidifica. É um urbanismo que, ao passo que é produto de um sonho, gera novos sonhos para a cidade. Sonhemos juntos, então. As oportunidades virão.
notas
1
Segundo estudo realizado pelo IPEA, Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, entre 2002 e 2005 as cidades com 100 mil a 500 mil habitantes apresentaram crescimento do PIB (produto interno bruto) superior ao apresentado pelos municípios com mais de 500 mil habitantes e ao apresentado por aqueles que têm menos de 100 mil habitantes. Estudo publicado em julho de 2008: www.ipea.gov.br/default.jsp e acessado em 12/08/09.
2
Segundo censo realizado em 2007 pelo IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e estatística, a população recenseada e estimada do município de Vitória da Conquista é de 308.204 habitantes. Estudo publicado no site oficial do IBGE, na contagem da população da Bahia, disponível em www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/ contagem2007/, acessado em 12/08/09.
3
A Vara de Vitória da Conquista, que está entre as Subseções Judiciárias do interior da Bahia, engloba cerca de 960.000 habitantes sob sua jurisdição, segundo dados do Tribunal Regional Federal da Bahia e envolve cerca de um milhão de habitantes, segundo dados oficiais do IBGE na contagem populacional de 2007. Para maiores informações, ver: www.ba.trf1.gov.br/JFBA/Noticias/JFH/08-08-29.pdf , acessado em 12/08/09.
4
A palavra “praticantes” foi preferida aos correntes termos “habitantes” ou “usuários”, pois simboliza as pessoas que experimentam a cidade desde dentro - ao contrário dos pesquisadores que costumam perceber a cidade desde cima, na visão aérea comum aos mapas. Para maiores informações ver: DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994 e JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes: a arte de se perder na cidade. In: Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA; PPG-AU/FAUFBA, 2006.
5
Para mais detalhes sobre a definição de Projeto Urbano, ver: PORTAS, Nuno. El surgimiento del proyecto urbano. In Urbanística nº 110 (1998). Tradução de F.J. Monclús.6
Sobre “urbanismo em estado fluído” ver ARAUJO, Rosane Azevedo de. A cidade sou eu? O urbanismo do século XXI. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2007.
7
Ver SOLA-MORALES, Ignasi de. Arquitectura líquida. In DC Revista. Barcelona : Departamento de Composiciò Etsa de Barcelona UPC, 2001, p. 25-34.
sobre o autor
Cássia de Souza Mota é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora