Cada cidade é única, pelo seu lugar propriamente dito, marcado por uma trama de ruas e caminhos, edificações, enfim, por espaços de sociabilidade que são partilhados por seus moradores e visitantes, com modos de vida e costumes diferenciados. Jardins, arborização, materiais e sistemas construtivos, paisagem natural, entre outros aspectos, caracterizam as cidades, o que distingue cada território urbano em relação a outro. Quando se procura interpretar as origens de uma cidade, podem-se buscar os seus testemunhos de filiações culturais e sucessões temporais em remanescentes físicos. As pinturas rupestres e demais representações simbólicas contam como o mundo natural é percebido em cada cultura. Mumford (2) indica que se quisermos identificar a cidade, devemos seguir a trilha para trás, partindo das mais complexas estruturas e funções urbanas conhecidas, para os seus componentes originários. Antes da cidade, houve a pequena povoação, antes da aldeia o acampamento, o esconderijo, a caverna, o monte de pedras.
Aqui, apresentamos a cidade de Itacarambi, localizada no alto-médio do curso do rio São Francisco, no vale do rio Peruaçu, norte de Minas Gerais. (Figuras 1, 2 ,3) Nas suas origens, ela está vinculada à exploração da região através das “entradas” e “bandeiras” que abriram caminhos, estabeleceram pontos de parada, fundaram pequenos aglomerados como apropriações territoriais que progressivamente iriam permitir a penetração e a colonização do Estado. Estas penetrações foram palco de muitas batalhas e perseguição aos nativos. Este processo remonta à segunda metade do século XVII. Anteriormente a este processo – que resultou no domínio das terras, na expulsão e no escravismo dos índios xacriabá que ali já habitavam – o sertão mineiro recebera incursões para conhecimento do rio São Francisco determinadas por D. João III ao governador-geral Tomé de Souza ainda em 1553. Este outorgou a Francisco Bruza de Espinosa e ao missionário padre João de Aspilcueta Navarro a incumbência de explorar o rio e a “serra resplandecente” após terem notícias da existência de aldeamentos indígenas na região. No ano seguinte (1554), a expedição teria percorrido 350 léguas, adentrado Minas Gerais pelo rio Jequitinhonha, alcançando daí o rio São Francisco.
Há estudos relevantes de arqueologia que evidenciam indícios remotíssimos da ocupação humana na região; descobriu-se, por exemplo, que as camadas mais profundas do abrigo do Boquete, uma lapa existente no município de Januária, datam de mais de 12 mil anos o que é comprovado por vestígios de instrumentos e restos alimentares, fogueiras e pigmentos preparados. Há prova de realização de arte rupestre, a partir de 9.000 anos. Para Prous, (3) “os habitantes do Vale do Peruaçu se assemelhavam fisicamente aos modernos índios.” Neste sentido, Itacarambi abriga parte de um complexo arqueológico considerado como um dos mais importantes cenários subterrâneos do Brasil, de interesse de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Prous destaca ainda que:
“...a arte rupestre do Vale do Peruaçu é formada por dezenas de milhares de figuras pintadas ou gravadas nos paredões de rocha. [...] Foi possível determinar, em certos sítios, a existência de até oito momentos de decoração (cada “momento” podendo ter durado vários séculos ou até milênios), cada um caracterizado por certos temas, certas formas de representação e pelo uso preferencial de certas cores”. (Figura 4)
Ricardo Lima, (4) em seu estudo sobre a identidade dos moradores do Candeal, revela que a sociedade local, incluindo não apenas os ceramistas mas também outros moradores do próprio Candeal, de Cônego Marinho, sede do município, e da área circunvizinha, inclusive Januária, costuma associar a pintura da louça produzida na Olaria à tradição das culturas indígenas desde épocas remotas (Figura 5); para este autor “os índios não desapareceram e estão presentes nos tempos atuais, representados pelos xacriabá.” Esta presença dos primeiros moradores pode ser constatada na urbanização atual de Itacarambi. Como cidade herdeira de tradições, na sua comunicação urbana percebemos desenhos e esculturas de formas casuais, representativas, objetivas e evocativas que remetem às expressões remotas dos que ali habitaram (Figuras 6,7,8,9). Assim, ao longo do itinerário urbano, praças, muros, meios-fios de calçadas, entre outros aspectos, revelam um cenário original que Mumford sugere-nos como espaço especial destinado a armazenar e transmitir mensagens. (Figuras 10,11,12).
A recriação dos espaços temáticos na cidade atual teve o intuito de operar uma reconstituição histórica, por assim dizer, e dar legitimidade ao diferencial da cidade em seu território, o que é representado nos traços dos índios, caboclos e pescadores. Assim, esta construção de espaços temáticos em Itacarambi foi realizada ao longo de 18 anos de gestão da administração municipal (5). Além desta reconstituição, outro objetivo refere-se ao interesse turístico, na medida em que esta ação poderia trazer resultados para o desenvolvimento da economia local, tendo o engajamento da população com o seu espaço público e tomado pela sociedade enquanto parte da sua cultura (Figuras 13,14,15). A incorporação de esculturas e desenhos no espaço urbano causou, no primeiro momento, segundo relatos dos moradores, reações negativas – a iniciativa da administração municipal não foi reconhecida como um instrumento de valorização e de apropriação dos testemunhos de um patrimônio cultural. Nos dias atuais os moradores se posicionam ora como guardiões, ora como desprendidos dos seus bens culturais. Esta noção de sentido de lugar está categorizada na 2ª Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, (6) de 1972, que concede a paisagem cultural uma identidade territorial, pois estão ali reunidos os ciclos naturais, os recursos materiais e imateriais.
Gadotti (7) ensina nos pressupostos pedagógicos que, para potencializar o que já existe, não basta a emoção estética – “a educação é importante para o desenvolvimento cultural porque ninguém valoriza o que não conhece.” A afirmação de identidades, de diferenciações, de conteúdos valorativos é vista no argumento de Lages, (8) que percebe nas indicações geográficas referências afetivas porque: “[...] criam nexos com os territórios, com as pessoas, com a tipicidade de cada local.” (...) porque as pessoas se interessam cada vez mais por conteúdo simbólico e material, densos em emoções e experiências.”
Para referenciar sua localização às suas margens no rio São Francisco, a cidade recorre a outro meio de salvaguarda da cultura local – as carrancas gigantes, esculpidas em madeira e concreto, como portais que emolduram a Praça da Água Viva (Figuras 16,17,18). Este símbolo da navegação do São Francisco nasceu para ficar na proa das embarcações, como adorno e proteção dos barqueiros contra os maus espíritos. O naturalista Burton (9) em viagem de pesquisa e reconhecimento do território relatou no ano de 1867 suas impressões dos barranqueiros: “as superstições dos barqueiros são tão numerosas [...] acreditam na aparição dos esqueletos. [...] Contam casos curiosos a respeito do “cavalo d’água” e outros animais fabulosos”.
Os costumes, as práticas, a história e a tradição, enfim, o patrimônio é visto por estudiosos como um serviço da chamada “Era do Conhecimento,” em que a cultura assume centralidade. Há, ali, nas praças, nos canteiros das ruas de Itacarambi, entre a cidade reurbanizada e o rio São Francisco, uma subjetividade partilhada. Percorrer os trechos marcados por estas manifestações desperta reações diversas e um forte apelo no campo da memória. Memória revelada por desenhos, cores e formas, enfim, por recriações que nos remetem a outros tempos, sem nos deixar perder o sentido do presente. Recriações que traduzem de maneira expressiva o sentido do lugar, com as suas marcas específicas, como valores culturais expressos no espaço, nos espaços de diálogos propriamente ditos, no ir-e-vir do cotidiano de visitantes e moradores. A preservação destas marcas aliadas às outras marcas que caracterizam a cidade, ou seja, o próprio cenário urbano de Itacarambi, nos parece essencial. Entre o lugar demarcado e reconhecido, constroem-se espaços de diálogos.
notas
1
O texto constitui publicação vinculada aos trabalhos de pesquisa e extensão do grupo Urbanismo em Minas Gerais cadastrado no CNPq, sendo que este busca a integração com outros grupos, em particular com o grupo Urbanismo no Brasil coordenado pela Profª Maria Cristina da Silva Leme (FAUUSP). Vale mencionar ainda que, temos desenvolvido atividades que incluem a região Norte de Minas. Em julho de 2008 estivemos em Santa Cruz de Salinas, na Operação Norte de Minas do Projeto Rondon. Em 2009 desenvolvemos atividades em Salinas e em Januária. Agradecemos aos apoios do CNPq, FAPEMIG, Ministério das Cidades, Ministério da Cultura para a continuidade da pesquisa e da extensão.2
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas.São Paulo:Martins Fontes,1998 p.11.3
PROUS, André. A arqueologia do Vale do Peruaçu. Guia Januária. 20054
LIMA, Ricardo Gomes. O povo do Candeal: sentidos e percursos da louça de barro.Rio de Janeiro:UFRJ,IFCS,2006. p.50 (Tese de doutorado). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp010308.pdf
5
O engenheiro civil Joaquim Carlos Neto conduziu o projeto ao longo dos pleitos alternados dos prefeitos Antônio Nemer e José de Paula.6
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001333/133369POR.pdf
7
GADOTTI, Moacir. A arte para educar. São Paulo: Cultura em Ação.Teia. Livro Interativo. MINC.2006.
8
LAGES, Vinicius. Tradição e modernidade: A geração de negócios com a cultura. São Paulo: Cultura em Ação.Teia. Livro Interativo. MINC.2006.
9
BURTON, Richard. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.Belo Horizonte: Itatiaia.1997.p.174.
10
Todas as imagens que ilustram o artigo são de autoria de Ana Alaíde Amaral.
referências bibliográficas
CURY, Isabelle. Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro:IPHAN,2000.
GEDDES, P. Cidades em Evolução. Campinas: Papirus, 1994.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
LEME, M. C. da S. L.. (org.). Urbanismo no Brasil: 1895-1965. São Paulo: Studio Nobel; FAUUSP; FUPAM, 1999, 2ª Edição 2005.
LIMA, F. J. M. de. Por uma cidade moderna: Ideários de urbanismo em jogo no concurso para Monlevade e nos projetos destacados da trajetória dos técnicos concorrentes (1931-1943). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – FAUUSP, São Paulo:2003.
LIMA, F. J. M. de & REZENDE, R. F.. Caderno Gestão e Planejamento Municipal. Juiz de Fora, NEAD/UFJF, 2009
MORE, T.. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ROSSI, A.. A Arquitetura da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SITTE, C.. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Editora Ática, 1992.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1995.
sobre os autores
Ana Alaíde Barbosa do Amaral é graduada em História pela Faculdade ISEJ/Ceiva (2007) e Pesquisadora Colaboradora do Núcleo Urbanismomg/ N’PEURBMG/UFJF (www.urbanismomg.ufjf.br).
Fábio José Martins de Lima é Engenheiro arquiteto pela EAUFMG (1989), Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAUFBA (1994), Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP (2003), Professor do Dpto de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Engenharia da UFJF, Coordenador do Núcleo Urbanismomg/N’PEURBMG/UFJF (www.urbanismomg.ufjf.br).