Quando eu era menino, minha tia contou a todos com muito orgulho que seu filho havia comprado uma máquina. Curioso, perguntei: “máquina de quê?”; e ela respondeu: “A máquina que anda sozinha, precisa explicar?” Aí, alguém me informou que, no interior de São Paulo, automóvel ainda era chamado de máquina. Tal terminologia era resquício do enorme impacto provocado na população com a chegada de um veículo que se locomovia pela sua própria força, sem o uso de cavalo ou burro. Nem o bonde elétrico causou tanto espanto porque todos sabiam que ele era alimentado continuamente pela eletricidade vinda de fora, lá de Santana de Parnaíba. O sucesso do automóvel foi avassalador na cidade, sobretudo quando ficou acessível à alta classe média. Na noite da inauguração do Teatro Municipal, em 1911, talvez metade das viaturas trazendo os convidados encasacados era composta de carros barulhentos complicando o desempenho dos tílburis puxados por cavalos mais que assustados. Esse foi o primeiro congestionamento de carros na cidade. O início do espetáculo teve atraso constrangedor, contrariando bastante o famoso barítono Titta Ruffo.
E houve aqueles pró o automóvel em nossa vida e outros que achavam-no sem futuro. Exemplo maior disso foi a derrota do engenheiro Samuel das Neves que, em seu plano de reformulação do vale do Anhangabaú, também em 1911, imaginou a ligação direta do norte da cidade e da Estação da Luz com a distante avenida Paulista por meio de uma portentosa via inspirada nos boulevards parisienses, que passava sob o viaduto do Chá e subia a calha do córrego da Saracura, hoje o percurso da avenida Nove de Julho. Acabou vencendo a idéia dos engenheiros municipais Victor Freire e Eugênio Guinle de instalação no local de um belo parque de desfrute do lazer à sombra do Teatro Municipal e, por precaução, permitiram a construção da Delegacia Fiscal na avenida São João obstaculizando qualquer tentativa de via expressa destinada à avenida Paulista.
O plano de Prestes Maia posto em prática no começo dos anos 1940 do século passado, já assumidamente compromissado com a facilitação do trânsito, tendo em vista evidentemente o automóvel, é que foi além da concepção de Samuel das Neves; depois de fazer a pretendida ligação com a avenida Paulista furou o túnel em direção aos Jardins com destino final em Santo Amaro. Não demorou muito para São Paulo realmente ficar refém do automóvel, que passou cada vez mais a exigir obras viárias sobrepostas à trama antiga de ruas até chegar ao cúmulo de conseguir uma avenida instalada em cima de outra para o seu uso exclusivo. Essa aberração é o Elevado Costa e Silva.
Concordamos plenamente com a intenção da demolição do “Minhocão da Serraria”, a denominação dada pelo jornal O Estado de São Paulo para provocar o então prefeito Paulo Maluf, mas é claro que isso somente seria possível se fosse criada outra alternativa para o escoamento do fluxo leste-oeste de carros. A tal avenida mencionada pelo prefeito Kassab, por exemplo, haveria de estar concluída para permitir a destruição daquele monstrengo.
O leitor deve estar sabendo há muito tempo que tudo isso foi decorrência da precariedade de nosso sistema de transporte coletivo, tema nunca levado a sério pelos nossos governantes. Para salvarmos a nossa cidade da desfiguração total, enquanto é tempo, para que ela não se transforme numa imensa Marginal do Tietê, é preciso que unamos nossos esforços para conseguirmos uma rede compacta de linhas de metrô análoga à parisiense, por exemplo. Se Brasília, a cidade feita para o automóvel, foi construída em menos de quatro anos, é perfeitamente plausível prazo semelhante para a pedestrianização do núcleo da Grande São Paulo. Defendamos nossa cidade das improvisações paliativas, das intervenções pontuais, concentrando todos os recursos compatíveis com a nossa riqueza na execução de centenas de quilômetros de túneis que nos faltam. Querer é poder.
sobre o autor
Carlos Alberto Cerqueira Lemos, arquiteto, é professor de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP