Ítalo Calvino, em As cidades invisíveis, disse que uma cidade comporta muitas. A constituição urbana atual aponta para relações vivenciadas no espaço urbano e para as distintas formas como a cidade foi construída e habitada no passado. O fenômeno urbano acontece por meio do acúmulo de bens arquitetônicos com significados socialmente construídos, que materializam a memória das cidades e representam concepções e escolhas no sentido de modificação do ambiente pelo homem. Em Itabirito, a trajetória urbana ficou marcada nas construções que resistiram ao tempo e atualmente algumas são consagradas como patrimônio.
Entende-se a patrimonialização arquitetônica como parte do processo de afirmação de uma memória material da/para a cidade que se fundamenta na legitimidade social dos agentes responsáveis pela nomeação dos bens patrimoniais. Assim, o patrimônio constitui-se como campo de forças sociais e simbólicas, sendo que os sentidos atribuídos aos bens culturais em diferentes contextos expressam os pontos de vista conceituais sobre o patrimônio, assim como as aspirações subjetivas que orientaram a patrimonialização. A conceituação do patrimônio refere-se à construção social de símbolos coletivos, baseados em valores particulares e arbitrários, que pretendem atribuir sentido ao mundo social por meio da classificação de elementos do passado que recriam a história. Os elementos culturais patrimonializados adquirem, portanto, uma dimensão simbólica por meio dos ritos de instituição que produzem o patrimônio.
Nesta perspectiva, questiona-se: Qual história pretende-se contar pelas construções que preenchem as ruas de Itabirito? A quais grupos sociais elas representam? Quais os sentidos desses espaços para seus moradores e para os demais cidadãos urbanos? A construção do patrimônio arquitetônico da cidade indica alguns indícios sobre a função social da memória atribuída às construções pelos gestores públicos do patrimônio, apesar de pouco se conhecer o alcance dos sentidos da preservação arquitetônica na cidade.
Os vestígios da ocupação inicial da localidade são demarcados pelos templos religiosos e pelo casario edificado nas primeiras décadas de seu povoamento. As moradias erguidas na segunda metade do século XVIII inserem a cidade no circuito de localidades mineiras que possuem construções em estilo colonial. Ainda não foram localizadas referências documentais que atestem com precisão a data de construção dos imóveis mais antigos localizados na primeira região ocupada na cidade. No entanto, algumas evidências permitem concluir que foram erguidos após 1750, pois nesse período torna-se comum a edificação de imóveis de dois andares em Minas Gerais. Além disso, a boa fase econômica vivenciada na localidade nessa época assinala as condições materiais da população, o que permitia que erguessem imóveis com características arquitetônicas que indicam o uso comercial do primeiro pavimento e de habitação no piso superior. O que diferencia o núcleo histórico de Itabirito dos espaços mais antigos das cidades vizinhas, como Ouro Preto e Mariana, são certos traços arquitetônicos encontrados em seus imóveis e observados normalmente em casas rurais, com destaque para as varandas em balcão corrido.
A alteração do eixo de povoamento da parte alta para a planície, em fins do século XIX, resultou na constituição de novas habitações e espaços de convivência, como o prédio da Estação Ferroviária construído em 1882. No início do século XX, os bens edificados na nova região habitada incluíam construções influenciadas pelo ecletismo e imóveis que reproduziam o estilo colonial. Através da estética das novas construções e de práticas culturais coletivas, realizadas longe dos vestígios coloniais, buscava-se incorporar a cidade ao projeto modernizador brasileiro, inspirado nos ideais de progresso e civilidade. Atualmente, a segunda área ocupada na sede de Itabirito abriga o centro administrativo e comercial. Nas ruas e avenidas centrais encontramos preservados alguns exemplares construídos entre as décadas de 1920 e 1950, em estilo art déco, que foram inventariados pelo governo municipal como parte do acervo cultural imóvel do município.
A partir da década de 1960, a extração de minério de ferro desenvolvida pela empresa MBR (atual VALE) consolidou-se em Itabirito como a principal vertente econômica, aliada ao comércio. Observa-se a partir dessa época uma ampliação da mancha urbana, com criação de novos bairros e reestruturação de construções existentes nas áreas antigas da cidade. Desta forma, em meio ao casario colonial do sítio urbano localizado nas áreas altas da cidade, foram realizadas intervenções arquitetônicas posteriores, indicando as transformações e reapropriações do espaço.
Diante das inúmeras modificações na estrutura urbana provocadas pelo aumento populacional, entre outros, tiveram início na cidade os debates sobre a definição e proteção do patrimônio arquitetônico local. No início da década de 1980, o IEPHA/MG – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, iniciou várias ações buscando a colaboração das comunidades mineiras na preservação dos bens culturais do estado. Entre as atitudes do IEPHA/MG no período destaca-se o incentivo à criação de legislações municipais em defesa do patrimônio, assim como a constituição de entidades locais para gestão dos bens culturais. Nessa perspectiva, a governo municipal homologou em 1989 a lei que instituiu juridicamente a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico de Itabirito no âmbito do município.
Durante a década de 1990 foram realizados diversos tombamentos de bens arquitetônicos na sede do município e nenhum na zona rural. Foram priorizados imóveis civis, cujas construções são atribuídas ao século XVIII e localizam-se na parte mais antiga da cidade. Na ocasião, também foram protegidas legalmente as edificações erguidas no século XIX, situadas em regiões posteriormente ocupadas. O sentido da preservação nesta primeira fase de patrimonialização de imóveis urbanos concentrou-se na afirmação do passado colonial e na busca pela experiência de fundação da cidade. Nesse contexto, valorizaram-se as antigas vias abertas no século XVIII e os casarões que registram formas de habitação baseadas em técnicas construtivas tradicionais, como adobe e pau-a-pique. Na mesma concepção, foram patrimonializados prédios religiosos e edificações que abrigaram instituições públicas, como o atual Quartel da Polícia Militar, que em 1924 foi a primeira sede da Prefeitura Municipal.
Em 2005, teve início um novo processo de patrimonialização de bens arquitetônicos e paisagísticos na cidade. As iniciativas de renovação urbana, observadas a partir deste período, contemplaram a valorização de exemplares arquitetônicos como símbolos da memória urbana, o que foi motivado, sobretudo, pela possibilidade de inserção da cidade no cenário turístico de Minas Gerais, competindo com sítios coloniais consolidados como destino turístico.
Na intenção de promover o núcleo colonial urbano como setor atrativo para o público externo, a gestão urbanística empreendida pelo governo municipal da época nas áreas mais antigas da cidade incluiu a revisão da legislação existente e a incorporação de novos instrumentos jurídicos de defesa dos bens imóveis situados na região. O núcleo histórico foi delimitado e a administração municipal definiu como prioridade a revitalização das ruas e passeios de sua área perimetral, bem como do seu entorno, buscando manter os elementos originais que o compõem. No mesmo ano foram estabelecidos novos parâmetros para a proteção dos bens arquitetônicos em Itabirito, como a definição das ZEIH – Zonas Especiais de Interesse Histórico presentes no Plano Diretor Municipal, que contempla uma região em que existem construções que remetem às primeiras experiências urbanas na sede de Itabirito.
A política pública de renovação urbana praticada no município entre 2005 e 2008 compreendeu, além da valorização e conservação de bens arquitetônicos nomeados com patrimônio, a reestruturação de espaços públicos existentes e a construção de outros locais de vivência coletiva. Tais atitudes convergem para a organização de um discurso sobre a cidade que busca inseri-la no contexto econômico global, onde a cultura é explorada como elemento diferencial entre as concorrentes ao capital externo. O passado da cidade, na conjuntura de valorização e oferta de seus vestígios materiais como produto turístico, é rememorado de um ponto de vista homogêneo, que exclui as formas atuais de ocupação do espaço e parece tornar recluso no interior das casas coloniais o tempo presente, através de suas características arquitetônicas e sociais. O fluxo do tempo aparentemente não alterou o passado materializado nas construções. É essa a idéia que transita nas ações de revitalização arquitetônica desenvolvidas em Itabirito e em diversas cidades brasileiras.
Pensado como produção simbólica, o patrimônio imóvel urbano, formado por casas, ruas e estruturas urbanísticas, registra a história material da cidade. Porém, cabe refletir sobre a história que é contada por meio dos ambientes construídos no espaço urbano e, principalmente, questionar como e por quais narradores são usadas.
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Este texto apresenta reflexões desenvolvidas na pesquisa para a dissertação de mestrado "Se essa rua fosse minha: tombamento e significados de Conjuntos Arquitetônicos e Paisagísticos em Itabirito (MG)", realizada na PUCMinas, sob orientação do Prof. Dr. Tarcísio R. Botelho.
sobre a autora
Bianca Pataro é historiadora, mestranda em Ciências Sociais pela PUCMinas e trabalha com gestão do patrimônio cultural em prefeituras de Minas Gerais e empresas privadas.