Brasília, capital do Brasil, é compreensivelmente, uma cidade de jogos do poder. Muito tem sido escrito sobre a cidade projetada, a partir desse ponto de vista, sobretudo nos anos 1970 e 1980. A partir da década de 1990, esse ponto de vista sai de moda, perde o encanto que era dado por discutir os jogos de poder à sombra da ditadura militar. Embora esses estudos não tenham jogado nenhuma luz significativa nem sobre o problema militar nem sobre a questão urbana – no sentido de terem influenciado a gestão urbana depois que a ditadura militar encerrou-se, em 1985. Brasília deve a sua consolidação e preservação aos governos ditatoriais. Quando é elevada à condição de patrimônio da humanidade, em 1987, essa deferência somente ocorre devido à integridade com que seu Plano Piloto foi entregue ao governo civil. Com a autonomia política (1990) começa o mais impressionante período de destruição da cidade, por especuladores, políticos e administradores corruptos, em massa – até agora.
Brasília, capital do Brasil, está a ser destruída por esses jogos de poder, que incluem notáveis arquitetos e urbanistas como seus mais importantes jogadores. Mais que a destruição da cidade (pela consumação criminosa de milhares de episódios de invasão de áreas públicas, em superquadras e em praticamente todos os setores de seu Plano Piloto; por alteração de normas de uso de solo, pela criação de áreas de expansão de forma agressiva, ambiental e urbanamente) deve nos impressionar a pusilanimidade de seus acadêmicos e intelectuais, majoritariamente locupletados por governos corruptos. Brasília não aprende com os próprios erros, pois os reelege. Isso aconteceu com Roriz e Arruda por mais de uma vez.
A academia corrompida
Também deve ser observada a imensa capacidade de professores de arquitetura e urbanismo contorcerem suas tonitruantes teorias urbanas (de sintáticos a gestaltistas, de bioclimáticos a emissores de etiquetas energéticas) e participarem – em ações e omissões dramáticas – das lucrativas frentes de defesa dos maiores corruptos de nossa cidade, especialmente na expansão imobiliária e até mesmo na proteção dos grileiros. Nossas entidades exercem censura, omitem fatos, e participam do círculo de privilegiados, que prejudica a imensa maioria dos praticantes honestos e independentes, de arquitetura e urbanismo na Capital Federal.
A academia está tão corrompida, resistiu tão pouco ao imenso padrão de corrupção, que aderiu e passou a barrar o ingresso de professores críticos – ainda que com produção profissional e científica superior aos grandes mestres que controlam a porteira acadêmica – e que representam perigo para os seus negócios. É o caso do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da UnB, que exerce o mais absurdo controle ideológico de seus quadros, e prefere os “ingênuos” engenheiros, que não falam coisas desagradáveis a seus ouvidos, e os tecnocratas de carreira. Vivemos, em nossa academia, o período que denomino “A Ciência dos Amigos”, que merece outro artigo, outra reflexão.
Ê Bumba-yê-yê-yê Boi, é a mesma dança, meu boi
A corrupção continua endêmica, os grileiros continuam a vender lotes em todo o Distrito Federal, o governo local financia a maior bolha imobiliária do Brasil no Setor Noroeste, no Setor Sudoeste, em Águas Claras, no Guará, com severos danos ambientais acobertados por meus colegas acadêmicos. A eleição de Agnelo Queiróz para o Governo do DF não vai mudar nada, provável e lamentavelmente. Suas alianças políticas não deixaram quase ninguém de fora – a não ser “Dona” Wesliam, a folclórica esposa ficha-limpa de Joaquim Roriz, maridão ficha-suja, por enquanto. Quem foi mandante, na Pátria da tolerância com os coronéis, de valhacoutos de seus afilhados, nunca perde a majestade.
Grileiros com Agnelo, Rorizistas com Agnelo, Arrudistas com Agnelo, Timotistas com Agnelo, Cristovanistas com Agnelo, etc. Com tantos oportunistas, quem vai fiscalizar o quê? É a mesma dança da Geléia Geral, de Torquato Neto (e Gil):
Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
A dominação exercida pelos círculos de privilegiados em Brasília
A tese fundamental deste e de outros escritos sobre os problemas de nossa cidade é uma só: sem o exame desse passado, ele não somente vai se repetir, vai se fortalecer. Brasília, essa grande realização do urbanismo brasileiro, ainda não passa de uma cidade pequena, facilmente controlada pelos Coronéis-Governadores da Ditadura e espantosamente controlada por Coronéis-do-Sarney, no período de Autonomia Política (o governo Cristovam, imensa decepção, não entra nessa conta, naturalmente).
Outra tese deste e de outros escritos é a seguinte: em Brasília, os arquitetos são poderosos protagonistas, para o bem ou para o mal. Nosso protagonismo ainda é advindo do modo como foi criada a cidade – e da qualidade dessa criação. Minha avaliação é de que nossa poderosa corporação subestima terrivelmente seu poder de transformação (positiva) da cidade. Minha avaliação é a de que as novas gerações são inexoravelmente “contaminadas” com modelos de atuação antigos, ultrapassados, contraproducentes, equivocados. A discussão do modo como o Notório Saber é usado e abusado em Brasília (e nas outras cidades) mostra como temos repetido de forma absurda os valores, as condutas, as expectativas de uma certa lumpen-intelectualidade que floresceu em volta de nossos ídolos modernos e pós-modernos. Apadrinhamentos, reservas de mercados, Notório Saber, são algumas das condutas que passaram para o momento presente de forma acrítica, mas fortemente prestigiada. Para se ter uma idéia desse prestígio, notórios corruptos são “Patronos” de turmas de jovens arquitetos por aqui. Em Brasília, a montagem de pelo menos um círculo de privilegiados é notável, e se liga fisiologicamente a Roriz, a Arruda, aos graves problemas de gestão urbana da cidade. Vamos estudar os arquitetos, ou não conseguiremos fazer arquitetura realmente qualificada. Mas a população percebe isso?
Arquitetos no palco, arquitetos na platéia
A imagem dos arquitetos e urbanistas, em Brasília, é extraordinariamente positiva. A população confia em nós, e acha que sabemos o que fazemos. Sabemos? Devemos examinar os padrões de atuação dos arquitetos, ao mesmo tempo em que examinamos as suas obras, a sua produção. Em nenhuma outra cidade brasileira algo assim faz sentido para a própria população. A crítica da arquitetura e dos arquitetos é, nesse momento, uma reflexão que ainda é crucial para que os impasses que a cidade encontra sejam superados.
Em outras cidades brasileiras, os arquitetos estão “na platéia”, assistem ao jogo do poder acionado pelas forças políticas e econômicas, e raramente são convocados para “o palco”. Quando o são, fazem o papel de técnicos, de coadjuvantes – papel importante, competente, mas que mostra bem qual o nosso lugar no jogo do poder em nossas cidades, na atualidade.
Em Brasília, ainda estamos “no palco”. A população acredita que os arquitetos, que participaram de forma autoral na criação da cidade, são capazes guiá-la, nem tanto como gestores, mas sobretudo como intelectuais, como inesgotáveis, incansáveis pensadores da nova urbanidade prometida pelo patrimônio da humanidade. Quando vemos nossas maiores lideranças atuarem como oportunistas, como ladrões do momento, entregando a cidade aos piores bandidos da política, da especulação imobiliária, devemos nos perguntar: o que pensam esses senhores? Por que pensam que podem agir assim? Pensam que sairão impunes, do meio da bagunça urbana que promovem, em nome de seu notório saber?
Este texto apenas introduz a questão. Se possível for, a discussão continua em Minha Cidade. A seguir, examinaremos os aspectos da prática profissional da arquitetura e do urbanismo que são prejudicados – e os que lucram – com a consagração do notório saber.
sobre o autor
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – UnB.