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Leia o artigo de Nireu Cavalcanti sobre as tragédias ocorridas no Rio de Janeiro em virtude das chuvas, suas causas e consequências
CAVALCANTI, Nireu. Lembretes aos irresponsáveis participantes da tragédia no Rio de Janeiro. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 128.01, Vitruvius, mar. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.128/3770>.
As recentes chuvas que destruíram – e estão destruindo – vidas, imóveis, sonhos, mais uma vez mostram a verdadeira face dos responsáveis desse império da ignomínia brasileira.
São lamentáveis e desrespeitosas as declarações de autoridades assentadas nos poderes executivos municipal, estadual e federal, dos técnicos, dos políticos de todos os matizes, de empresários e curiosos defensores do status quo, sobre as responsabilidades e razões da tragédia.
Repetem-se as acusações às administrações passadas e, como argumento, a suposta falta de planejamento ou de projetos adequados à cidade do Rio de Janeiro. O discurso visa encobrir o cerne do problema: as diversas administrações públicas e os muitos projetos idealizados e executados são os responsáveis por essas tragédias. Tais planos e projetos refletem e consolidam a lógica de se voltarem para interesses pontuais e momentâneos de grupos que se destacam em cada época da nossa vida urbana.
As histórias administrativa e política do Rio de Janeiro e de Niterói (esta a mais afetada pelas chuvas e, curiosamente, considerada a de maior qualidade de vida do estado fluminense) registram o descaso com grande parcela da população e com as condições geológicas e ambientais do sítio. A cidade do Rio de Janeiro, desde sua origem, foi tratada como uma mercadoria imobiliária destinada a favorecer as autoridades e seus familiares, bem como aos grupos hegemônicos em determinado momento histórico.
Vejamos alguns exemplos esclarecedores dessa construção desigual da urbe carioca.
Quando Estácio de Sá veio fundar a cidade do Rio de Janeiro, trouxe as normas portuguesas que continham todos os passos a serem dados para a tarefa. Dentre eles, estabelecer as chamadas terras públicas que ficariam sob a gerência da Câmara de Vereadores ou, se além de suas fronteiras, do governador da capitania. As terras da Câmara deveriam ser divididas em pequenas porções para arrendamento, sob módico pagamento anual, aos moradores que desejassem construir residência ou estabelecimento para negócio e serviço. Portanto, na cidade do Rio de Janeiro, a todos seria assegurado o uso da terra. No entanto, aconteceu exatamente o contrário: vereadores, homens bons, importantes autoridades, ordens religiosas e outros grupos apossaram-se de boa parte das terras públicas enquanto aquelas, sob a égide da Câmara, foram arrendadas em grandes porções ― as famosas chácaras, ou quintas ― aos poderosos da época. A partir de então, quem desejasse terreno para construir sua moradia teria que arrendá-lo ou comprá-lo aos arrendatários da Câmara de Vereadores, ou aos proprietários que conseguiram escrituras, separando a gleba das terras públicas. O mesmo ocorreu com as terras públicas de Niterói.
O terreno no alto do morro do Castelo era pequeno para a expansão da cidade, levando as autoridades e a população a ocupar a várzea no entorno dos morros, região baixa com relação ao nível médio das marés, cortada por rios e riachos, tomada por lagoas e um grande manguezal. Sua ocupação foi gesto inadequado: decidiram aterrar as lagoas, o manguezal e canalizar, subterraneamente, os cursos de água. A cidade cresceu e a cada chuva forte ficava alagada. O governador Luís Vahia Monteiro (1725-1732) tentou resolver o problema propondo abrir um canal navegável ligando a lagoa do Boqueirão (atual Passeio Público) ao Saco de São Diogo, braço do mar que entrava pelo mangue até a altura do atual Campo de Santana. O núcleo urbanizado da cidade seria uma ilha com a possibilidade de escoar as águas pluviais para todos os lados. A proposta foi rejeitada pelos vereadores, arrendatários e comerciantes. Assim, pagamos até hoje pelo equívoco na implantação adotada na cidade por seus antigos dirigentes.
Já no século XIX, dois grandes planos urbanísticos estruturantes e modernizantes foram propostos para a cidade do Rio de Janeiro: em 1843, pelo engenheiro da Câmara de Vereadores, visconde de Beaurepaire Rohan e, em 1874, pela comissão de engenheiros dirigida por Francisco Pereira Passos. Ambos foram engavetados porque não interessavam aos governantes e empresários imobiliários propostas globalizantes.
O mesmo ocorreu no século XX, com o engavetamento de dois importantes planos e apenas realizadas pequenas intervenções desconectadas de suas propostas estruturantes: o do francês Alfred Agache (1927) e do grego Constantinos A. Doxiadis (1965). O plano de Agache é o primeiro a contemplar os assentamentos, que já haviam recebido o nome de “favelas”. Sua equipe registrou uma população favelada de 200 mil habitantes ― número aparentemente excessivo, comparado com o censo de 1949, que registrou uma população menor ― e propôs removê-la para vilas-jardins operárias. Já o plano de Doxiadis prevê para as favelas a permanência e urbanização daquelas que apresentassem condições técnicas e ambientais favoráveis e a erradicação das consideradas assentadas em sítio inapropriado. O urbanista grego admitia, como solução, abrigar as populações removidas em conjuntos habitacionais.
Apesar de todos os planos, a opção das autoridades foi extrair deles algumas das propostas, transformando-as em intervenções pontuais sem previsão das consequências para a cidade. Assim, realizaram-se muitas obras, tais como, no início do século XX, já haviam feito os prefeitos Pereira Passos e Carlos Sampaio, rasgando avenidas e concluindo a demolição do morro do Castelo. Mais tarde, novos governos procederam à abertura da Avenida Presidente Vargas e a outras intervenções que devastaram a cidade, expulsando a população pobre das áreas afetadas para o subúrbio e, principalmente, para os morros, para as margens dos rios, dos manguezais e para as margens das linhas férreas. Em sua maioria, áreas de risco.
Os governantes testemunharam, indiferentes, a desumana opção com que a população pobre conquistou sua moradia: o problema passou à esfera pessoal entre o invasor e o proprietário do terreno e, no caso de terreno público, bastava ao poder público só fechar os olhos. A cada eleição os políticos prometiam benfeitorias nessas áreas insalubres e perpetuavam as ocupações indevidas.
Some-se a essas posturas irresponsáveis a descontinuidade administrativa praticada por nossos governantes. A cada novo governo – municipal, estadual ou federal – os projetos e obras que estavam sendo elaborados e iniciadas pela gestão anterior são abandonados ou retardados e, anunciadas novas ideias brilhantes e projetos mirabolantes que modernizarão ou, usando o termo da moda, revitalizarão o bairro, a rua ou a cidade como um todo.
Esse planejamento urbano e política governamental fracionada ocorrem também com relação ao dispositivo constitucional obrigando toda cidade com mais de 20 mil habitantes a ter um Plano Diretor. Este instrumento, detalhado no Estatuto da Cidade (lei 10.257 de 10/7/2001), tem sido usado, em alguns casos, por escritórios técnicos e prefeitos inescrupulosos para ganharem dinheiro na realização de planos burocráticos, só para atenderem à exigência constitucional e receberem recursos públicos para a cidade. Outras administrações engavetam ou não aplicam de fato o Plano Diretor. Mais de 3.500 municípios brasileiros não possuem nem a sua sede com essa população e, portanto, estão isentos do Plano Diretor. O mais contraditório é que esses municípios não recebem apoio técnico para que suas cidades não cheguem aos 20 mil habitantes cheias de problemas que poderiam ser evitados. Elas crescerão destruindo o meio ambiente, sem coleta e tratamento de lixo, sem espaço para estações de tratamento de esgotos, sem áreas de lazer, parques e terrenos livres para construção dos prédios escolares, hospitalares, segurança etc. E, principalmente, sem a mínima definição do sentido mais adequado para expansão do núcleo urbano. Isto é, sem prevenção das doenças crônicas de nossas cidades com os citados 20 mil habitantes e mais.
No âmbito mais profundo das relações no seio de nossa sociedade, e dela com o Estado, temos, no passado, a ignomínia do sistema escravista que jogava milhões de pessoas a condições vis.
Em 1810 o príncipe regente D. João assinou o Tratado de Amizade e Aliança com o rei da Inglaterra. No Artigo 10 ficou assegurado que o governo português adotaria, em nome da “Humanidade e Justiça”, os meios mais eficazes para abolir, gradualmente, o comércio de escravos em todo o território brasileiro. O comércio negreiro, no entanto, só terminou de fato em 1850 e a abolição da escravidão em 1888. Passaram-se 78 anos para ocorrer essa libertação e durante esse longo tempo as autoridades não promoveram a qualificação profissional da população escrava, não criaram programas de assentamento dos que habitavam na região rural, nem oportunidades de trabalho, moradia e educação para a população urbana. Que liberdade foi essa? Estamos vendo e vivendo o resultado dela nos olhares tristes e rostos desesperados da população das favelas atingidas: na sua maioria negra, mulata, cafuza, cabocla, descendentes dos ex-escravos libertos e das populações expulsas do campo e das periferias das grandes cidades.
Essa lógica administrativa e de projetação consagradas no Brasil alcançaram seu píncaro em Brasília, planejada segundo os modernos conceitos urbanísticos da sociedade industrial do século XX e... deu no que deu. Para o arquiteto Lucio Costa e seu amigo Oscar Niemeyer, a cidade moderna, monumental, sede política do Brasil renovado por Juscelino Kubitschek, não poderia reproduzir as demais cidades brasileiras, nas quais os prédios de qualidade, projetados por bons arquitetos, sumiam na feiúra das construções comerciais e as improvisadas, principalmente nas favelas.
Para Lucio Costa e Oscar Niemeyer, um socialista e outro comunista, Brasília representaria a sociedade igualitária, fraterna e progressista, anunciada para o Brasil do futuro. Só isso pode justificar o planejamento de uma cidade que não contemplava claramente habitação para os pobres, para os funcionários públicos que não eram de médio ou alto escalão. Um plano que não previu transporte de massa, contando, talvez, que toda família moradora da cidade possuiria um ou mais automóveis para se deslocar.
O absurdo cometido pelos promotores de Brasília – políticos, técnicos, projetistas e empresários – é não terem, pelo menos, planejado as cidades satélites destinadas às habitações dos não privilegiados do Plano Piloto. Deixaram ao léu aquelas cidades como fizeram e fazem os seus continuadores, há anos, nas cidades do estado do Rio de Janeiro (inclusive sua capital) e muitas outras do Brasil.
No Rio, temos a repetição desse planejamento excludente, no caso da Barra da Tijuca. O autor do projeto é o mesmo Lucio Costa, de Brasília. O governador do então estado da Guanabara era o progressista e intelectual embaixador Francisco Negrão de Lima (1965-1971); o território, uma grande área virgem dotada de paisagem e de estrutura ambiental encantadoras. O Plano da Barra, repetindo o de Brasília, não previu transporte de massa e nem áreas habitacionais para os trabalhadores que serviriam aos moradores do novo espaço. A única referência, no Plano Piloto, à moradia para os pobres é que fossem tomadas, com urgência, providências paisagísticas para sombreamento e embelezamento da chamada “Cidade de Deus”.
Os empresários, por sua vez, anunciavam que a construção do novo núcleo urbano carioca seria o espelho do conceito moderno de preservação do meio ambiente e que o sistema sofisticadíssimo (importado da Inglaterra) para o tratamento dos dejetos sanitários garantiria o ecossistema original da Barra da Tijuca. O que temos hoje, de fato? Lagoas, praias poluídas e a proliferação de favelas; o inferno para os motoristas que se deslocam para os bairros antigos da cidade; o alto custo para a despoluição da região e da construção de sistema de esgotos, inclusive usando a velha fórmula do emissário submarino, só agora anunciando a tão necessária rede de metrô.
No entanto, a conta dessas obras de melhorias cairá nas costas dos moradores de toda a cidade do Rio de Janeiro.
Portanto, não faltam planejamento, projetos ou ideias brilhantes. Apenas são aplicados parcialmente, desligados da lógica que as originou. Falta mesmo é vergonha na cara de nossos governantes, dos técnicos que lhes servem e dos empresários que mamam nas tetas do Estado. Daqueles que perpetuam tal situação por comodismo ou omissão. Alguns o fazem por compromissos ideológicos, ou os que vivem na esperança de alcançar alguma “boquinha”, ou outro motivo pérfido que consiga justificar o desperdício dos recursos públicos.
A população brasileira e seus núcleos de moradia não podem perpetuar a ambígua relação casa-grande e senzala.
sobre o autor
Nireu Cavalcanti é professor e Diretor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – UFF.