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O que é o notório saber? E para que, arquitetos e urbanistas, precisaríamos de um conceito assim? Há equilíbrio entre o que é “notório” e o que é ”saber”, nos casos dos arquitetos e urbanistas que desfrutam dessa distinção pública?
BARRETO, Frederico Flósculo Pinheiro. Notório saber em Brasília. O fundamento legal e o ambiente intelectual que se segue. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 132.03, Vitruvius, jul. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.132/3954>.
Em Brasília, o notório saber (1) está em toda parte. Respira-se no ar. Vê-se no horizonte. Fotografa-se e põe-se em guias para arquitetos e turistas. A República idealiza o poder do povo e o saber de seus gênios. Se seu saber é notório, reputado, reconhecido, celebrado, nada há fazer contra a coisa unânime. A resistência é inútil, a crítica é fútil. Essa unidimensionalidade é realmente impressionante, essa anti-cosmopolitanismo é vexatório, pois não existe em nenhuma outra cidade brasileira. Talvez por isso haja tanta corrupção, se é que me entendem. Não entendem? Vamos aos elementos desse mundo único.
O que é o notório saber? E para que, arquitetos e urbanistas, precisaríamos de um conceito assim? Há equilíbrio entre o que é “notório” e o que é ”saber”, nos casos dos arquitetos e urbanistas que desfrutam dessa distinção pública? É um conceito legal, reconhecido por leis brasileiras, respaldado? Sua aplicação é idônea, correta, justa, no âmbito da prática profissional, das regras do mercado profissional? Caso não seja, a quem prejudica a aplicação inidônea do dispositivo do notório saber em milionárias contratações de arquitetos e urbanistas?
Esse conceito é derivado da Lei de Licitações, de número 8.666, de 21 de junho de 1993. Esta importante e controversa lei expõe em seu artigo 25 que “é inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial”...
Não sei se o leitor compreende a gravidade da frase “inviabilidade de competição”. O notório sabido deve necessariamente se sentir como um “missionário europeu” no meio de sossegados tapuias que nada sabem dos benefícios da civilização; o arquiteto-missionário parece ter sido encarregado por El-Rei de construir, digamos, uma condigna réplica de um grande palácio em uma bela campina de Goyáz. Não há competição viável, mesmo que a escola de arquitetura tapuia tenha imprecisas dúvidas acerca dessa intervenção em sua paisagem nativa. Há como competir? Não há. Isso é notório-saber-sem-competição-viável.
Mas, se falamos do Brasil das primeiras décadas do futuro, do futuroso Século 21, devemos entender quem são os tapuias e quem são os missionários – e que tarefas são essas, caras-pálidas!
As letras miúdas da lei – e do notório saber
Aqui começam as letras miúdas da Lei. Os incisos II e III especificam princípios de nosso direto interesse, pois estabelecem as situações de inexigibilidade da licitação (e, a esse ponto, esclareça-se que “licitação” significa, essencialmente, “tornar legal, torna lícito e aceitável pelo poder público” e não um procedimento burocrático qualquer).
Dizem os incisos desse Artigo 25:
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Bem, o Inciso I nos jogou de volta ao Art. 13, que diz:
Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
I – estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos;
(...) VII – restauração de obras de arte e bens de valor histórico.
Finalmente, temos que o parágrafo primeiro desse Artigo 25 “esclarece” o que é notório saber (ou notória especialização):
§ 1o Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
OK. Seus problemas acabaram. Ou talvez tenham apenas começado.
Tratamos o notório saber como algo que, uma vez detido por uma determinada pessoa física, é inextinguível, incontestável, infalível.
Um estudante, no meio de uma explicação assim, me perguntou, com uma expressão de ironia:
— “É como um Santo?”
Olhei para ele e para a turma, fixando os olhares curiosos.
— “É como um Santo. É para todo o sempre”.
Quando o notório saber contradiz o espírito da lei e leva ao espetáculo da barbárie
O “desempenho anterior” do notório sabido nunca é examinado. Tratamos o detentor de notório saber como alguém que não precisa mais ser examinado, que está acima de qualquer dúvida. Faz jus ao dito “ganha a fama e deita na cama”. Não precisa provar mais nada. Depois do primeiro grande contrato por notório saber, certamente virão outros. – até porque ninguém tem notório saber “em isolamento”.
O notório saber é fruto de esforço de grupo, se arrima na solidariedade, no apoio, a cumplicidade de apoiadores, de torcida e investidores organizados. Chega a ser comovente, ver os séquitos que se formam nessas pequenas cortes de notórios sabidos de Brasília. Mas é assim que se ganha a vida, quando as regras são obscuras e o nome do jogo é “amigos dos amigos”, a rede social fabricada pelos privilégios, mantida de forma privilegiada, criadora de mais (sempre inesperados e espantosos enquanto ninguém muda a regra) privilégios.
O ceticismo empirista de David Hume aplicado ao notório saber candango
Se um arquiteto fez 700 obras brilhantes, é mais que certo que a sua 701ª será mais uma obra brilhante. No entanto, a letra miúda da lei nos obriga a considerar cada “camada” de realizações: o “desempenho anterior” deve ser avaliado!
E se a 701ª obra for uma porcaria? Republicanamente, quebrou-se a magia do notório saber. Ou deveria ser quebrada. Deve haver um elemento de avaliação, de crítica, de relativização nessa tirania do mérito vitalício.
Não, meu caro: o notório saber é Incondicional. Depois de adquirido passa a fazer parte do DNA de seu detentor. “Quem fez bem, faz bem e fará bem”. Ad Aeternum.
De onde vem essa mentalidade? Em que ponto desses últimos 26 anos de retomada democrática os arquitetos renunciaram à crítica dessas práticas, que tornam a produção da arquitetura muito menos democrática, muito menos pública?
A multifacetada natureza do notório saber
Devemos questionar a natureza do notório saber, e muitas visões críticas devem ser coordenadas para essa tarefa. A multifacetada natureza do notório saber é (a) política, (b) social, e (c) ideológica. Por ser ideológica, dificilmente haverá consenso dos profissionais acerca do conceito e de sua aplicação – por isso, as entidades e universidades que “blindam” essa conduta sequer abrem a discussão, ou admitem que ela exista (notório saber? Não sei se sei...).
Por ser de natureza política, deve ser mantido um permanente processo de tomada de decisões por parte das entidades dos arquitetos acerca da manutenção do apoio político ao notório sabido. Para ser mais eficiente e menos tosco, para que não vire apoio “cego”, mafioso, brutal e corporativo, pode haver um modo realmente explicitado de examinar os modos de aplicação dessa exceção nos contratos públicos, caso a caso, para que as entidades e universidades envolvidas não seja pegas em flagrante contradição – como demonstraremos em outro artigo.
Por ser de natureza social, envolve o estudo dos desequilíbrios que a categoria dos arquitetos, nos mais elevados círculos de privilegiados, necessariamente cria, alimenta e faz perseverar na prática profissional, implicando na alienação dos jovens arquitetos diante dos padrões do “mercado público de trabalho”. Quando se diz que as novas gerações de arquitetos são “a-críticas”, trata-se de algo firmemente produzido pelos “velhos arquitetos”. Cria-se um ambiente intelectual despolitizado (nem sentido amplo, de vivência da polis), que incide sobre o fechado controle das entidades, sobre o controle de oportunidades representadas por cargos e negócios, um ambiente que cultiva as personalidades de arquitetos vaidosos, que se satisfazem com essas cerimônias de auto-polimento.
Essa alienação chega a incidir os currículos de formação profissional (que mais lembram a década de 1970), sobre as agendas de ação das entidades dos arquitetos, e sobre o próprio ambiente intelectual dos arquitetos e urbanistas brasileiros. Envolve, sobretudo, um projeto de profissão e de sociedade: quem enxerga isso? Muita gente boa enxerga, mas prefere se calar, e dá sua contribuição ao notório não-quero-nem-saber.
Conclusão: notório saber sem exame continuado se torna notório poder, devastador e sem sabedoria. Esses nossos arquitetos – que não são notórios politizados – se tornam instrumento de fácil manipulação pelo poder econômico, pelos profissionais da corrupção, como é o caso em Brasília, nessas décadas de autonomia política. O círculo dos privilegiados necessariamente aliena a “arraia miúda”, a multidão dos iniciantes, dos jovens arquitetos – que, em casos marcantes, aprendem a ser carreiristas, aderem a um certo pragmatismo, se quiserem ser bem-sucedidos entre os “grandes”.
O que acham? Em texto subseqüente, examinaremos uma das jóias do notório saber em Brasília, a descontrolada Águas Claras.
nota
1
Sobre o mesmo tema e do mesmo autor, ver: BARRETO, Frederico Flósculo P. O notório saber em Brasília. Introdução aos jogos de poder dos arquitetos e urbanistas. Minha Cidade, São Paulo, n. 11.125, Vitruvius, dez. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.125/3717>.
sobre o autor
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto é Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB.