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Contraditoriamente, o tombamento do Palácio Capanema pela Unesco e instalação de um Centro de formação de técnicos para o Iphan no edifício poderá implicar em danos no principal edifício do movimento moderno no Brasil.
ELISA COSTA, Maria. Em defesa do Palácio Capanema. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 132.02, Vitruvius, jul. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.132/3958>.
O assunto é importante e urgente: por um lado, cogita-se de propor à Unesco a inclusão do antigo Ministério da Educação e Saúde na lista dos Bens Culturais da Humanidade; e por outro, existe o propósito de instalar no edifício um Centro de formação de técnicos para o Iphan (inclusive denominado Centro Lucio Costa) cuja criação contará com suporte da Unesco através de Projeto de Cooperação Técnica Internacional.
Diante de um programa tão ambicioso, percebe-se uma tendência a pensar na adaptação dos novos usos ao edifício com grande desenvoltura, como se o Capanema fosse um prédio normal – corre-se o risco de que os responsáveis (Iphan e Unesco) se esqueçam do mais importante: a preservação da integridade arquitetônica do edifício, que ocupa um lugar excepcional no movimento moderno, não apenas no Brasil, mas internacionalmente.
A inclusão do antigo “Ministério” na lista do Patrimônio Mundial se justifica, inclusive, por duas características de particular significação:
1 – O exemplar cuidado com o meio ambiente, não apenas pela proteção da fachada norte com quebra-sol, mas no sentido de tirar proveito das condições naturais propiciadas pela localização do edifício em frente à barra da baia de Guanabara, ou seja, dispondo de ventilação natural constante – preocupação pioneira, já que, em 1936 (data do projeto) tal abordagem não era prioritária, como hoje é.
Assim, a instalação de ar condicionado central no prédio, além de um contrassenso, seria trair o caráter ecológico pioneiro que lhe é inerente.
Passo a palavra a Lucio Costa, transcrevendo trecho de carta por ele enviada, em 1986, ao então Ministro da Cultura Celso Furtado:
“A ventilação natural foi devidamente estudada, antecipando-se, pois, ao atual movimento internacional no sentido da retomada do conceito de “arquitetura bioclimática”, em boa hora assumido por Joaquim Francisco de Carvalho: de fato, graças à caixilharia movediça em todos os vãos do prédio, quando a viração for leve pode-se deixar o caixilho menor descer externamente no peitoril; quando ventar, basta deixar apenas uma nesga aberta de cerca de 6cm junto ao teto, isto para impedir o tilintar das lâminas soltas das venezianas: é quanto basta para estabelecer corrente de ar com os vãos livremente abertos da fachada norte protegida por “quebra-sol” que, conquanto velhos de meio século, não devem ser substituídos, como se pretende, pois ainda funcionam normalmente e podem ser recuperados; apenas nos gabinetes extremos, onde a prumada dos elevadores bloqueia essa ventilação cruzada, cabe instalar – como aliás em alguns casos já ocorre – ar-condicionado” (1)
Entretanto, para desespero de Lucio Costa, a recomendação da abertura de fresta de seis centímetros junto ao teto nunca foi experimentada – as pessoas esquecem, inclusive, que todos os painéis envidraçados da fachada sul são móveis – e só usam a parte de baixo, ou seja, quando venta, os papeis, naturalmente, voam. Seria uma homenagem a ele levar a sério, hoje, a sua proposta, e verificar, ao vivo, o resultado.
2 – O objetivo de integrar ao espaço arquitetônico obras de arte do melhor quilate, que ali, além de seu valor individual, passaram a fazer parte de um todo maior – incluídas como peças não apenas participantes, mas essenciais à própria expressão arquitetônica – compreendida como uma modalidade de “partitura musical” – da qual fazem também parte o mobiliário, as luminárias, enfim, todo o equipamento de ambientação interna: o “Ministério” é um todo.
As fotos abaixo da disposição interna do grande saguão que contém o mural de Portinari falam por si: na primeira, em preto e branco, o original, e na segunda a desastrada inclusão de sancas no teto para iluminar o painel, além de um cordão de isolamento e mais o deslocamento das cadeiras – ou seja, retirando do painel a sua função de parte integrante do espaço arquitetônico, melancolicamente transfigurado em mera sala de qualquer museu.
O fundamental é que toda e qualquer intervenção física no prédio tenha como objetivo principal não comprometer sua identidade original em nome dos novos usos, quaisquer que sejam.
Os erros do presente podem vir a ser inevitáveis, mas não podemos deixar de permitir às gerações futuras a possibilidade de revertê-los.
Ninguém melhor do que Lucio Costa para falar do seu “Ministério” – a ele, a palavra. Portanto, abaixo, o antigo Ministério da Educação e Saúde segundo ele próprio e Paulo Jobim, em texto incluído por Lucio Costa na segunda tiragem do livro Registro de uma vivência.
Palácio da Cultura (2)
Lucio Costa
Senhor Redator,
É o cúmulo do exagero dizer que o edifício do antigo Ministério da Educação e Saúde está “praticamente em ruínas”. (Cidade, 6-12-81)
Pelo contrário, ainda está em muito bom estado. As intervenções radicais nas coisas antigas autênticas são sempre desastrosas. Elas devem ser, de preferência, parciais, caso a caso. Assim, p.ex., quando houve a pintura nova no quebra-sol os caixilhos de ferro que sustentavam as chapas duplas de eternit, foram devidamente consertados; o piso de grandes placas de granito do “parvis” já foi integralmente consolidado e as enormes empenas revestidas de gnaiss continuam impecáveis; internamente, as venezianas foram todas renovadas e as falhas nos pisos de congóleo – e não linóleo – foram preenchidas (no segundo andar), com “xilolite”, pasta de serragem com corante – por especialista vindo de São Paulo – quando da exposição comemorativa do centenário, em 22, o piso dos principais pavilhões foi feito assim.
O prédio não está pedindo “restauração”, mas simplesmente conservação (permanente)
Ministério da Educação e Saúde (3)
Lucio Costa
[em colaboração com Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcelos]
Não apenas marco de uma época mas de um excepcional momento de idealismo e de lucidez, no confuso quadro dessa época.
O que não foi possível realizar na reforma da Escola, foi feito aqui, cinco anos depois: a adequação da arquitetura à nova tecnologia construtiva do aço e do concreto armado.
Em 1938, com o prédio do Ministério já em construção, ainda não havia em Nova York nenhum arranha-céu com fachada envidraçada – a “curtain wall” ou “mur rideau” – surgiram todos depois.
Pós-escrito. A origem de tudo. Carta-convite do ministro Capanema (4)
Lucio Costa
Anulado o concurso havido, pagos os prêmios, o ministro me encomendou um projeto. Convidei então o Carlos, meu amigo, o Reidy e o Jorge, que haviam concorrido, grupo depois acrescido com a inclusão do Ernani e do Oscar; e assim os honorários mensais ficaram irmãmente divididos por seis – um conto para cada um.
Nessa mesma época, em 37, fui ao Sul cuidar das Missões Jesuítas, iniciando então a minha colaboração com o Sphan.
Relato pessoal (5)
Lucio Costa
[a pedido de Maria Luiza Carvalho, para o n° 40 da revista Módulo]
O projeto de edifício-sede do Ministério da Educação data de 1936. A sua construção, iniciada no ano seguinte, foi lenta. Em 1944 já estava praticamente concluído, mas só foi inaugurado em 1945. Se considerarmos, portanto, como referência, a sua concepção, já tem mais de cinquenta anos, mas apesar da marca da época não perdeu, nem perderá jamais, a força e carga expressiva que lhe são inerentes.
É difícil ao arquiteto de hoje perceber a significação dessa obra e aquilatar o que ela representou de paixão, de esforço, de sacrifício.
Os novos conceitos arquitetônicos, formulados na década anterior, ainda não haviam sido assimilados pela opinião culta e popular e eram violentamente refutados. Mas para mim, que tinha dedicado o chômage de 32 a 35 ao estudo da obra teórica de Le Corbusier, o problema arquitetônico parecia então indissoluvelmente entranhado no problema social, porquanto oriundos da mesma fonte – a revolução industrial do século XIX –, e esse vínculo de origem conferia sentido ético à tarefa em que estávamos empenhados, exigindo-nos dedicação total, como se fôssemos, na nossa área, moralmente responsáveis pelo bom encaminhamento da meta comum.
Isso explica porque, tendo um projeto já pronto e aprovado, em vez de darmos logo início à obra como seria normal e faria qualquer arquiteto hoje em dia, resolvemos considerar o dito por não dito e recomeçar tudo da estaca zero. É que, apesar de se tratar de um belo projeto, tínhamos as nossas dúvidas e deliberamos submetê-lo ao veredito do mestre.
Este projeto inicial compunha-se de um bloco mais alto na posição do atual edifício, já com a fachada sul envidraçada e quebra-sol na fachada norte, mas dispondo de pavimento térreo com saguão ligado ao auditório, construção esta solta do bloco principal ao qual se articulavam, do lado oposto, ou seja, norte, duas alas de menor altura, sobre pilotis baixos, enquadrando a entrada com pórtico carroçável precedido por um espelho d’água e pela escultura do Celso Antonio intitulada “Homem em Pé” cujo modelo já estava pronto. Nas salas de trabalho dessas alas laterais, orientadas para leste, as janelas eram corridas, enquanto as galerias de acesso, voltadas para o poente, dispunham apenas, em cada tramo, de uma pequena janela quadrada, prevendo-se revestimento externo com granito rosa do Joá.
Mas não foi fácil conseguir a vinda de Le Corbusier, porquanto no ano anterior já aqui estivera Piacentini, o arquiteto de Mussolini – contratado pelo governo para ajudá-lo no problema da implantação da Cidade Universitária (a escolha então oscilava entre a Praia Vermelha e a área existente aos fundos da Quinta da Boa Vista, onde se acha atualmente o Jardim Zoológico) –, e o ministro Capanema não se sentia em condições de pleitear nova contratação. Mas tanto fiz que me levou ao Catete, e o Dr. Getúlio, entre divertido e perplexo diante de tamanha obstinação, acabou por aquiescer, como se cedesse ao capricho de um neto. Recorremos então ao Monteiro de Carvalho que conhecia pessoalmente Le Corbusier, ficando estabelecido que viria por quatro semanas para examinar o problema da Cidade Universitária, fazer uma série de conferências (realizadas no então Instituto Nacional de Música, sempre lotado) e, finalmente, para dar parecer sobre o projeto do Ministério.
Ele viajou pelo “Graf Zeppelin”, que fazia em quatro a cinco dias a rota do Atlântico Sul, pousando em Santa Cruz. E fomos todos de madrugada esperá-lo em companhia de Hugo Gouthier, então do gabinete do ministro, chefiado por Carlos Drummond de Andrade.
Tínhamos escritório no Edifício Castelo, na Avenida Nilo Peçanha 151, onde ele se instalou, mantendo inicialmente certa reserva para conosco, pois ignorando as circunstâncias da sua convocação julgava-se convidado por iniciativa do próprio ministro, desejoso de seu parecer sobre a construção projetada.
Considerou, de saída, o terreno impróprio porque estaria dentro em pouco cercado por prédios inexpressivos. Parecia-lhe que o edifício deveria ficar voltado para o mar e o Pão de Açúcar, fixando-se na área correspondente, antes do segundo aterro, àquela onde agora se encontra o MAM, e para ela elaborou, com extrema espontaneidade, o belo risco de um edifício de partido baixo e alongado que serviu depois de base ao projeto definitivo. “J’ai simplement ouvert les ailes de votre bâtiment”, disse ele então num generoso understatement. Mas a troca do terreno já na posse do governo federal por outro de propriedade municipal implicaria delongas, e não se efetivou. Ele ainda tentou adaptar a sua concepção ao terreno original, surgindo então um impasse, porque sendo o lote mais estreito na desejada orientação sul não haveria como dispor, nessa orientação, a metragem total de piso requerida pelo programa, uma vez que então as autoridades da aeronáutica limitavam o gabarito a dez pavimentos. Teve assim que implantar o bloco no sentido norte-sul, com fachadas para leste e oeste, o que resultou numa composição algo contrafeita que não agradou nem a ele nem a nós. Contudo, apesar dessa frustração final, ele ainda nos deixaria de quebra, sem querer – além dos planos para a Universidade, das aulas ao vivo e daquele risco fundamental –, uma dádiva: foi durante esse curto mas assíduo convívio de quatro semanas que o gênio incubado de Oscar Niemeyer aflorou.
Depois de sua partida nos atribuímos a tarefa de fazer novo projeto baseado na sua proposição inicial, ou seja, orientado mesmo para o sul e com a altura necessária, determinando desde logo a Emílio Baumgart, engenheiro responsável pelo cálculo estrutural, a previsão de fundações capazes de suportar a carga definitiva, isto porque eu, como bom carioca, entendia que, com o tempo, a coisa se resolveria. E assim de fato ocorreu.
Elaborado o projeto, enviamos um jogo de cópias acompanhado de fotografias da maquete à Rua de Sèvres 35, e ele respondeu congratulando-se conosco: “Il est beau, votre projet”.
Éramos todos ainda moços e inexperientes – Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Afonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcelos; o mais velho e já vivido profissionalmente era eu. Entretanto, agimos como donos da obra, construída sem a interferência de um empreiteiro geral, pela própria Divisão de Obras do Ministério, chefiada então por Souza Aguiar, e tivemos como técnico principal para as instalações Carlos Ströebel. Foi uma experiência difícil, tanto mais que a concepção arquitetônica do prédio era tida pela crítica e opinião pública como exótica, imprópria para a ambientação local, além de “absurda” por deixar o térreo em grande parte vazado. Aliás, o próprio Auguste Perret, de passagem aqui, menosprezou, na presença do ministro, o risco original de Le Corbusier, declarando que o edifício estaria dentro de pouco tempo sujo “devido à falta de cornijas” –, mas apesar desse sombrio prognóstico as suas belas empenas continuam impecavelmente limpas.
Com o início da guerra os contatos eventuais se interromperam de todo, e Le Corbusier só teve notícias da obra concluída quando, terminado o pesadelo, revistas especializadas em todos os países começaram a divulgar, como revelação, a chamada arquitetura brasileira, despertando assim o interesse de arquitetos que aqui vinham unicamente para conhecer o Ministério, a ABI, a Pampulha, o Parque Guinle etc., enquanto daqui partiam grupos de estudantes em excursão pela Europa, orientados por professores nem sempre suficientemente informados mas que faziam palestras sobre o assunto. E como tanto as revistas como os improvisados divulgadores omitissem pormenores da participação pessoal de Le Corbusier no caso, e os contatos diretos conosco ainda não houvessem sido restabelecidos, ele passou a interpretar tais ocorrências como usurpação da parte que, de direito, lhe cabia, estado de espírito que o levou, numa espécie de revide, à défaillance de publicar como risco original seu para o edifício efetivamente executado um croquis calcado sobre aquela fotografia da maquete que lhe havíamos em tempo enviado junto com o projeto, desenho este feito sem muita convicção e sem data (ele sempre datava todo e qualquer risco que fizesse). Evidentemente a sua intenção fora simplesmente evidenciar o vínculo – melhor, a filiação – de uma coisa com a outra.
Esse risco figurou maliciosamente numa exposição havida em São Paulo, por volta dos anos 50, quando eu já havia escrito aos organizadores da mostra alertando para o fato de se tratar de um falso testemunho que deveria ser substituído pelo risco original da edificação baixa e alongada destinada à beira-mar que, este sim, serviu de base ao novo projeto.
Informado do que ocorria, escrevi-lhe então precisando os fatos e as circunstâncias e remetendo, inclusive, fotografia da inscrição gravada na própria parede do saguão de edifício e redigida por mim em substituição ao texto omisso que me fora submetido, pois já estava prevendo as possíveis consequências do caso. E a coisa assim se desfez, tanto mais que nos sucessivos encontros em Paris passou a me conhecer melhor e logo compreendeu que o empenho de todos nós fora unicamente contribuir para a consolidação da sua obra e fazer, tanto quanto possível, na sua ausência, o que fosse do seu agrado. Assim, acatamos as suas recomendações no sentido do emprego de “azulejôs” nas vedações térreas e do gnaisse nos enquadramentos e nas empenas, bem como a preferência assinalada no seu riso por outra escultura de Celso Antonio que não a escolhida por nós – o “Homem Sentado”.
A propósito dessa figura monumental, de vários metros de altura, cabe aqui, num parêntese, o registro da cena trágica que presenciei no ateliê improvisado no próprio canteiro de obras onde o escultor trabalhou anos a fio. Certa tarde o ministro – tal como Lourenço de Medici ou Julio II, ele acompanhava amorosamente o trabalho dos seus artistas, mormente os de Portinari e do Celso – pediu que mostrássemos a obra a Aníbal Machado. O escultor, que já havia recoberto a enorme massa de alto a baixo com panos umedecidos para a devida preservação do barro, determinou ao seu auxiliar que a descobrisse novamente, e, na luz mortiça da tarde e de uma lâmpada que lhe avivava a forte modenatura, a estátua foi aos poucos surgindo; mas, quando a tarefa ia a meio, a possante figura com seu olhar parado foi-se inclinando lentamente para trás e desmoronou num estrondo.
Seja como for, porém, a verdade é que depois daquelas quatro semanas de 1936 não houve mais qualquer interferência de Le Corbusier, que só veio a conhecer o edifício já pronto poucos anos antes da sua morte, quando aqui retornou para projetar a embaixada da França em Brasília.
Esse belo edifício do Ministério é, conforme já tenho dito, um marco histórico e simbólico. Histórico porque foi nele que se aplicou, pela primeira vez, em escala monumental, a adequação da arquitetura à nova tecnologia construtiva do concreto armado, inclusive a fachada totalmente envidraçada, o pan de verre; as experiências anteriores haviam sido todas em edifícios de menor porte. Quando, com a sua estrutura já adiantada, fui com Oscar Niemeyer cuidar do Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de 1939, não havia em Nova York nenhum edifício com essas fachadas translúcidas que caracterizam a cidade, as agora chamadas “curtain walls” ou “murs rideaux”. Vieram todos depois. E simbólico porque, num país ainda social e tecnologicamente subdesenvolvido, foi construído com otimismo e fé no futuro, por arquitetos moços e inexperientes, enquanto o mundo se empenhava em autoflagelação.
Assim, as marchas e contramarchas, os obstáculos, as contrariedades, tudo valeu a pena. Mesmo a difícil deliberação de me afastar da obra quando senti que já perdia o poder de decisão e que, portanto, a minha presença tolhia os demais; tudo valeu a pena porque, assim, o grupo não traiu a confiança do extraordinário ministro e do nosso poeta maior que, na sua condição de eficiente mortal, lhe chefiava o gabinete.
A minha última intervenção, já no final da obra e depois do ostracismo que me impusera, foi quanto à cor dos peitoris da fachada norte, que o Oscar pretendia azuis como as lâminas do quebra-sol. Juntos descemos pela Avenida Graça Aranha, a fim de ajuizar à distância, e me pareceu melhor fazê-los cinza, conforme felizmente ficaram.
E com essa pequena e derradeira escolha, dei por encerrado esse capítulo da minha vida profissional.
Alerta (6)
Lucio Costa
[carta ao ministro Celso Furtado]
Permita-me, agora que este edifício concebido em 1936 (precisamente há meio século, portanto) para sede do então Ministério da Educação e Saúde, conjugação de propósitos que muito tocou Le Corbusier quando aqui esteve, a meu chamado, na dupla condição de “inseminador e parteiro” para ajudar a criança a nascer –, permita, repito, pedir-lhe que este palácio continue sob a vigilante “guarda” e efetiva manutenção de Augusto Guimarães – assessorado por Sérgio Porto, incumbidos que foram de recuperá-lo e preservá-lo.
Isto porque a continuidade dessa atuação será a garantia deste já agora monumento tombado ser, de fato, mantido tal como deve, ou seja, não apenas como marco de uma época, mas de um excepcional momento de idealismo e lucidez, no confuso quadro dessa época.
Esta minha total confiança na competência, na honradez e no discernimento do engenheiro Augusto Guimarães Filho, bem como no desempenho do arquiteto Sérgio Porto, já vem desde a construção do conjunto residencial do “Parque Guinle”, do Banco Aliança, e da implantação urbanística de Brasília.
Nesta fase crítica de mudança de uso, só mesmo a prestigiada e atuante presença deles, que conhecem a fundo a gênese do prédio, poderá frear e conter os ímpetos inovadores dos novos usuários.
A título de exemplo:
O palácio nasceu assim – é o “je suis comme je suis”, da canção – e assim deve permanecer: está tombado. Os novos ocupantes que se conformem e adaptem, internamente, à intencional sobriedade dele, ao seu digno e severo despojamento.
Sem título (7)
Paulo Jobim
Tão antes de tudo, Lucio ter nos dado – e dado ao Corbusier – o Ministério, foi uma coisa mágica e misteriosa. O homem que sabia dos antigos, dos detalhes mais incríveis de coisas já naquele tempo talvez sendo esquecidas, abre uma janela para o novo, para um futuro ainda não imaginado.
Para o mundo, que não viu ainda, é uma surpresa inesperada que tenha acontecido tudo aquilo aqui, naquela época. O espaço vazio, a praça onde se circula em paz, ignorando o prédio como quem corta caminho, ou sentindo aquela presença magnífica sobre nós: as pedras, as colunas, as largas esquadrias da fachada sul e o brise da norte, a estrutura solta, os caminhos livres das instalações fora das paredes e do concreto, a planta aberta – são coisas até hoje difíceis de serem aceitas.
Tudo isso nunca foi feito tão ao pé da letra como ali. Hoje ainda não se constrói assim por aqui, mas este prédio esquecido e mal conhecido nas escolas permaneceu como um fantasma do inconsciente, permitindo que toda uma architectura se manifestasse pelo Brasil afora, desde os pequenos “dominós” da baixada e os pilotis por todas as partes, até as obras dos nossos arquitetos consagrados, dando a eles uma coerência que talvez eles próprios desconhecessem, mas que já estava neles arraigada pela simples existência daquele prédio.
PS – Tais conceitos só viriam a aparecer na América em 1954, com a Lever House de Nova York, primeira fachada com pano de vidro por lá e raro exemplo de implantação mais solta de um prédio naquela cidade.
sobre a autora
Maria Elisa Costa, arquiteta, dirige a Associação Casa de Lucio Costa, sediada no Rio de Janeiro.
notas
1
O texto completo desta citação está abaixo.
2
Texto encaminhado por Lucio Costa para o Jornal do Brasil, datado de 6 de dezembro de 1981, com a anotação “com o devido destaque...”. Manuscrito “A restauração de uma obra de arte. Atenção, pelo amor de Deus!”. Documento III.A.41-01173. Acervo Casa de Lúcio Costa.
3
COSTA, Lucio (1936). Ministério da Educação e Saúde. In COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 122.
4
COSTA, Lucio (1995). Pós-escrito. A origem de tudo. Carta-convite do ministro Capanema. In COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 131. Este texto introduz a reprodução facsimilar da carta de Gustavo Capanema convidando Lucio Costa para encabeçar a equipe que projetará o MES.
5
COSTA, Lucio. Relato pessoal (1975). In COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 135.
6
COSTA, Lucio. Alerta (1986). In COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 142.
7
JOBIM, Paulo. Título (1995). In COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 143. Na primeira impressão do livro, nesta página encontra-se somente a foto de Lucio Costa na escada do Ministério; na segunda tiragem, a foto foi reduzida para incluir o texto de Paulo Jobim, na mesma página.