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português
O artigo disserta sobre as diversas reformas ocorridas em calçadas dos sítios históricos do Recife e a perda de identidade cultural gerada a partir destas intervenções que substituem mosaicos ao estilo português por blocos de concreto intertravado
english
This articles discusses refurbishment activities which took place in pedestrian pavements in the historical sites of Recife and the loss of cultural identity which was generated by these, which substituted the Portuguese style mosaics by concrete blocks
español
El artículo trata las remodelaciones ejecutadas en las aceras de los sitios históricos de Recife y la pérdida de identidad cultural que se ha generado a partir de tales intervenciones, que reemplazaron mosaicos al estilo portugués por adoquines de concret
NÓBREGA, Maria de Lourdes Carneiro da Cunha; CÂMARA, Clarissa Duarte Dornelas. A memória das pedras. Minha Cidade, São Paulo, ano 12, n. 135.05, Vitruvius, out. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/12.135/4065>.
Nos últimos dez anos alguns passeios em sítios históricos do Recife tiveram seus revestimentos trocados pela municipalidade. Nesses casos, a pedra conhecida como portuguesa (1) deu lugar ao piso em blocos de concreto intertravado, apagando-se assim, em alguns trechos, a memória da antiga técnica de revestir calçadas trazida pelos portugueses, bem como os desenhos que ali estavam.
Sabe-se que as calçadas mais antigas foram revestidas com rochas, vindas de Portugal como lastros de navios. Algumas, denominadas Pedras de Lioz, eram extraídas das pedreiras de Pedro Lieure, cujo nome passou, por corruptela, a ser chamado de Lioz (2). No Bairro do Recife, por exemplo, ainda hoje são encontradas calçadas que guardam as rochas e os desenhos da reforma lá ocorrida no início do século XX.
Além dos desenhos mais antigos são também encontrados nas calçadas dos sítios históricos recifenses padrões criados a partir do concurso promovido pela Prefeitura em 1969 (3), visando escolher os padrões específicos de revestimento para os passeios públicos da cidade: O Concurso de Projeto para Revestimento dos Passeios Públicos da Cidade do Recife (4).Também elaborados em pedras portuguesas, esses desenhos, participantes do concurso, foram popularizados e amplamente utilizados. Os desenhos encontrados com mais frequência são os ganhadores do concurso; o primeiro lugar, dado à equipe de H. J. Cole do Rio de Janeiro, o segundo lugar ao arquiteto Geraldo Santana, o terceiro à empresa Wit-Olaf Prochnikltda e em quarto lugar, empatados, o desenho do arquiteto Armando Holanda Cavalcanti e o do então estudante de arquitetura Alberto José de Souza.
Muitos desses desenhos podem ainda ser encontrados e, independentemente de sua classificação no referido concurso, representam com extrema qualidade o resgate do uso da técnica do mosaico português em geometrias contemporâneas de valor estético indiscutível. No Bairro do Recife, especificamente, desenhos do referido concurso participam juntamente com desenhos da reforma do bairro de 1910 da identidade do espaço público urbano local.
Sabe-se que desde a promulgação da lei no13.957,no ano 1979 (5), os sítios históricos do Recife foram instituídos e os elementos morfológicos que compõem esses sítios passaram a ser analisados e geridos no seu conjunto. Incluem-se assim as calçadas como parte integrante da cidade a ser preservada. Entende-se, por tanto, que todos os elementos físicos que compõem os sítios históricos (lotes, edifícios, vias e passeios) são bens culturais de preservação.
Ressalte-se que a lei de 1979 estabelece no seu artigo 10 (p. 14) a proibição do uso de revestimento superficial, qualquer que seja a qualidade do material empregado, nos logradouros públicos onde ainda não o haja, bem como a substituição do revestimento existente ou o seu capeamento com material de natureza diversa do original.
Incompreensível então, aos olhos da lei, a substituição de revestimentos de calçadas em sítios históricos em detrimento do restauro. Todavia, analisando-se as intervenções ocorridas caso a caso, percebe-se que houve duas formas de intervenções: a) aquela que trocou o revestimento de um passeio já descaracterizado e sem registro histórico e b) aquela que realmente trocou o revestimento, degradado, mais ainda caracterizado, com possibilidade de restauro de seus elementos.
A primeira refere-se, por exemplo, a ruas como Nova, Imperatriz e Duque de Caxias. Essas ruas, entre 1976 e 1977, antes da instituição dos sítios históricos, fizeram parte da implantação do Programa de Circulação Urbana, de autoria do arquiteto Jaime Lerner (6) que, dentre outras ações, “pedestrianizou” diversas ruas do Centro da cidade.
Algumas vias, de uso exclusivo de pedestres, tiveram então seus pisos padronizados a partir do revestimento em pedra portuguesa, originado do já citado concurso realizado em 1969. Para tal, a via passou a não mais possuir a diferenciação de nível entre a calçada e a rua. O nível da rua foi elevado ao nível da calçada, fazendo com que todo o espaço da via (calçada + rua) passasse a um único plano. No limite entre a antiga calçada e a rua foi colocada uma grelha para escoamento de águas. Nesta transformação foi favorecido o fluxo de pedestres, que passou a usufruir de um maior dimensionamento de espaço livre para a caminhada.
Como exemplo das calçadas que, em detrimento do restauro, tiveram seus pisos substituídos, destaca-se um trecho das galerias do conjunto de edifícios que formam a Avenida Guararapes. Apesar da degradação, o passeio possuía seus desenhos ainda totalmente visíveis e de possível recuperação. Nesta intervenção, após discussões com a municipalidade, os órgãos de preservação conseguiram manter, em forma de “tapetes” em meio ao novo piso em blocos de concreto intertravado, o registro do antigo desenho.
Compreendendo que características como revestimentos, traçado e níveis das calçadas são aspectos morfológicos da paisagem histórica, o nivelamento ocorrido entre a altura do meio-fio e a rua, a partir do projeto de pedrestianização das ruas do Centro, contribuiu para a perda de identidade deste sítio. Especialmente quando se considera que o momento histórico preservado é o momento que caracteriza a cidade tradicional com seus passeios definidos.
Assim, a intervenção realizada para tornar as vias de uso exclusivo de pedestres, modificando suas calçadas e alinhando-as ao nível da rua, comprometeu a identidade do sítio histórico, apagando algumas características da sua paisagem. A posterior troca de piso, da pedra portuguesa para o piso intertravado em blocos de concreto (em 2002), foi uma consequência desta já existente negação dos elementos históricos. Substituiu-se, assim, o revestimento de uma já descaracterizada calçada.
Contudo, sobre algumas renovações urbanas ocorridas no século XX Amorim (7) destaca que apesar de terem destruído uma parcela significativa do período de formação das nossas cidades (...) constituem-se agora em novos elementos a serem preservados. A partir desta afirmação pode-se também considerar que os desenhos integrantes do concurso de 1969, apesar de serem encontrados em inúmeras calçadas do Recife, aparecem como elementos que também identificam ruas do Centro Histórico e lhes confere identidade. Além disso, a utilização desses desenhos resgata a tradicional técnica do mosaico português introduzida nas calçadas no século XIX (entende-se que a técnica é um meio de representação e também confere identidade ao lugar).
Em se tratando dos sítios históricos, percebe-se que a obediência da lei de preservação é indispensável, ou seja, faz-se necessário a preservação dos seus elementos morfológicos como um todo. Todavia, para atender as atuais demandas de acessibilidade em calçadas estreitas e sem rampas não há como manter intactos todos os elementos que constituem as calçadas. Rampas, passagens para cadeirantes, pisos táteis para deficientes visuais, etc. precisam ser inseridos no contexto existente do sítio histórico.
A partir do entendimento do espaço urbano como um palimpsesto, onde as diversas gerações o têm escrito, corrigido, acrescentado (8), as calçadas apresentam valores singulares que não devem ser apagados, fazendo-se necessária a convivência com as novas necessidades urbanas ou novos acréscimos. Assim, sugere-se aqui que as intervenções realizadas nas calçadas dos bairros antigos conservem as características históricas existentes, tais como a técnica do mosaico português, seus desenhos e materiais (9) e, ao mesmo tempo, possam abrigar novos caracteres, como aqueles necessários à acessibilidade, de tal forma que os elementos antigos e novos possam ser claramente identificados. Mantém-se assim, com a preservação de tais elementos, a memória das pedras. Conserva-se a identidade do sítio e, ao mesmo tempo, incorporam-se a este novas posturas condizentes com as inevitáveis necessidades contemporâneas.
notas
1
Pedras portuguesas- como são comumente chamadas essas pedras no Recife mesmo quando a origem não é Portugal, como uma referência a técnica importada desse país.
2
CÓRDULA FILHO, Raul. Caminhos de pedra: calçadas do Bairro do Recife. Recife: Prefeitura. Departamento de Preservação dos Sítios Históricos. Recife, Tanahlot, 2000.
3
Neste concurso os jurados foram os professores do curso de arquitetura - Reginaldo Esteves, WandenkolkTinôco, José Luis Mota Menezes e Ilo Lima – o arquiteto Fernando Menezes e o vereador Clóvis Corrêa (Recife, 1969).
4
RECIFE. O Concurso de Projeto para Revestimento dos Passeios Públicos da Cidade do Recife. Prefeitura do Recife, 1969.
5
RECIFE. Decreto no 13.957 / 1979. In: PREFEITURA DA CIDADE DO RECIFE. Preservação de Sítios Históricos. Recife, 1981, p. 13-15.
6
JAIME LERNER PLANEJAMENTO URBANO. Relatório do Programa de Circulação do Sistema Integrado de Transporte. Recife: Prefeitura Municipal do Recife: Empresa de Urbanização do Recife. Jaime Lerner Planejamento Urbano, 1977.
7
O autor trata neste caso da construção da Avenida Guararapes inAMORIM, Luiz Manuel do Eirado. Obituário arquitetônico: Pernambuco modernista. Recife. Gráfica Santa Marta, 2007. P.82.
8
Segundo A. Corboz citado por Secchi (2006, p.15) in SECCHI, Bernardo. Primeira Lição de Urbanismo. Editora Perspectiva. Sâo Paulo, 2006..
9
Não apenas as pedras de revestimento, mas as pedras de meio-fio singulares, como aquelas que serviram de lastro para os antigos navios.
sobre as autoras
Maria de Lourdes Carneiro da Cunha Nóbrega é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco, doutora em Desenvolvimento Urbano pela mesma Universidade e professora da Universidade Católica de Pernambuco, onde leciona as disciplinas de Paisagismo e Desenho Urbano. Integra a equipe de pesquisadores do Laboratório das Paisagens Culturais, além de atuar como Gerente de Projetos na Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural, órgão ligado à Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife.
Clarissa Duarte Dornelas Câmara é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre em Planejamento Urbano e Dinâmica das Cidades pela Université Paris1 Panthéon-Sorbonne e professora da Universidade Católica de Pernambuco, onde leciona as disciplinas de Projeto Urbano, Paisagismo e Desenho Urbano. Integra a equipe de pesquisadores do Laboratório das Paisagens Culturais, além de dirigir o Escritório Clarissa Duarte arquitetura e Urbanismo na cidade do Recife.