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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Em 2011, João Pessoa lançou o “Caminho Livre”, projeto de reordenação do trânsito e da mobilidade urbana. O artigo pretende questionar seu processo de formulação, sua sustentabilidade e seus efeitos na vida da população, sob a ótica do Estatuto da Cidade

english
In 2011 João Pessoa published the “Caminho Livre”, a project to reordering the traffic and the urban mobility. This papper intends to discuss this project’s formulation, its sustainability and its effects on people’s lifes

español
En 2011, la Alcaldía de João Pessoa lanzó el programa “Camiño Livre”, proyecto de reordenación del tránsito y de la movilidad urbana. El artículo intenta cuestionar su proceso de formulación, su sostenibilidad y sus efectos sobre la vida de la población

how to quote

FREIRE, Rodrigo; SOARES, David. A intervenção no trânsito de João Pessoa. Caminho fechado para a sustentabilidade e a participação popular. Minha Cidade, São Paulo, ano 12, n. 135.02, Vitruvius, out. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/12.135/4069>.


Vista do terraço da estação, João Pessoa PB
Foto George Martins


Na primeira semana de julho de 2011, a Prefeitura Municipal de João Pessoa anunciou um megaprojeto de reordenação do trânsito da cidade, intitulado “Caminho Livre”, que prevê grande impacto sobre a vida da cidade, seguindo objetivo de melhorar as condições de mobilidade urbana. O “Caminho Livre” faz parte da proposta apresentada pelo município ao chamado PAC da Mobilidade Urbana, do Governo Federal, e vai se articular com a melhoria do sistema de transporte público da Grande João Pessoa.

“Anunciou” é o termo mais adequado, já que a Prefeitura apenas convocou uma coletiva de imprensa para apresentar o projeto já pronto e acabado, disponibilizando sua apresentação comercial na internet. A “apresentação comercial” é apenas o que está disponível, pois detalhes técnicos mais aprofundados não foram disponibilizados para conhecimento público. Refiro-me a detalhes que poderiam e deveriam estar presentes se a Prefeitura de João Pessoa, ao momento de elaborar o “Caminho Livre”, tivesse orientado suas ações pelos princípios e normativas do Estatuto da Cidade, sobretudo no que diz respeito a uma política urbana centrada na sustentabilidade e na participação popular.

O Estatuto da Cidade é uma lei federal, e tem como objetivo orientar a gestão e o planejamento urbano públicos a nível municipal. Segundo expressa o Estatuto no seu artigo 2º, a política urbana brasileira deve como objetivo:

“ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; (...)

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; (...)

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: (...)

g) a poluição e a degradação ambiental; (...)

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;

XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população”.

À primeira vista, o projeto “Caminho Livre” deve ser visto com simpatia. Afinal, ordenar o trânsito e ampliar o acesso aos transportes públicos, de fato, é uma iniciativa sempre bem vinda, cujos resultados podem ser muito positivos para a qualidade de vida na cidade. Sob o prisma enunciado pelo Estatuto da Cidade, vários questionamentos podem ser feitos ao projeto no que se refere aos impactos reais que ele pode ter sobre a qualidade de vida da cidade. Estes questionamentos podem ser ordenados em três blocos: a) quanto ao processo de formulação da política pública; b) quanto ao princípio da sustentabilidade e; c) quanto à sua eficácia e aos efeitos esperados para o projeto, comparativamente com experiências históricas de outras cidades. Os principais mecanismos para uma gestão democrática e participativa apontados pelo Estatuto da Cidade estão enumerados pelo artigo 43:

“I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;

II – debates, audiências e consultas públicas;

III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;

IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.”

O Estatuto da Cidade se apega a um modelo participativo de democracia, que valoriza a construção de espaços públicos inovadores, nos quais – e através dos quais - a população possa intervir diretamente, em conjunto com seus representantes eleitos e com os técnicos da administração pública, no processo de gestão e de planejamento de políticas públicas, bem como, no próprio processo legislativo. O próprio Estatuto da Cidade é um exemplo, sendo uma das poucas leis federais que foram fruto de um projeto de lei de iniciativa popular, resultado de um longo processo de discussão nos movimentos sociais urbanos.

Ao que nos consta, não foram observados nenhum dos institutos previstos no artigo 43 do Estatuto da Cidade previamente à elaboração do “Caminho Livre”. A população de João Pessoa não teve garantido seu direito de intervir diretamente na elaboração deste projeto, com sugestões, opiniões e impressões que, sem dúvida, seriam de contribuição inestimável para o seu melhor desenho como política pública, e para a futura eficácia dos seus resultados. Afinal, ninguém conhece melhor a cidade do que seus habitantes, e a construção coletiva de políticas é a metodologia mais recomendável para os regimes democráticos.

Ademais, tal projeto impactará decisivamente o modo de vida na cidade, afetando a forma de se locomover e – em alguns casos - de se morar em João Pessoa. Sob os termos da gestão democrática e participativa que anuncia o Estatuto da Cidade, isto justificaria o envolvimento popular na formulação do projeto. Em oposto, a Prefeitura de João Pessoa optou por uma política pública tecnocraticamente formulada por meia dúzia de “iluminados”, trancados em gabinetes, desconsiderando que as pessoas que vivem na cidade podem e devem ser percebidas como sujeitos políticos ativos, participativos e capazes de opinar sobre os rumos da cidade onde vivem.

Reportando-nos ao artigo 38 do Estatuto da Cidade, percebemos que a Prefeitura de João Pessoa não realizou estudos de impacto de vizinhança (EIV) e de impacto ambiental (EIA) sobre o “Caminho Livre” – ou não os disponibilizou, o que também contraria o Estatuto. No Brasil, os EIAs são regulamentados pela Resolução 237/1997 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), que dispõe sobre o licenciamento ambiental no território nacional. O artigo 1º desta Resolução conceitua os EIAs como “todos e quaisquer estudos relativos aos aspectos ambientais relacionados à localização, instalação, operação e ampliação de uma atividade ou empreendimento.”

Ao EIA se associa o “Relatório de Impacto Ambiental” (RIMA), que prescinde da realização de audiências públicas. Por fim, esta Resolução do CONAMA lista, dentre as atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental, obras civis tais como “rodovias, ferrovias, hidrovias e metropolitanos”. Quando foram feitas audiências públicas prévias ao lançamento do “Caminho Livre”?

Entre os impactos ambientais possíveis, por exemplo, está a ampliação da Av. Epitácio Pessoa que, no trecho entre o entroncamento da Av. Ruy Carneiro até a Av. Nossa Senhora de Navegantes, passará a ter três faixas em cada sentido. Se hoje temos duas faixas por sentido, supomos que o alargamento desta via só implicará na diminuição de calçadas e na retirada de árvores. Qual o impacto social da diminuição das calçadas? O que vai restar de espaço para pedestres? E qual o impacto ambiental da retirada de árvores, que estão ali plantadas há décadas? Teremos a Epitácio Pessoa transmutada num grande corredor asfaltado e não-arborizado? O mesmo questionamento vale para a duplicação da Avenida Beira Rio. A Prefeitura não disponibilizou a resposta na apresentação do projeto.

O projeto também prevê que a Av. João Cyrilo da Silva, no Altiplano, será duplicada no trecho que se estende entre o final da Av. Beira Rio até a Av. Antônio Mariz. Ou seja, será duplicada aquela via sobre a barreira do Cabo Branco, conhecida como “Avenida Panorâmica”. Há algum EIA para verificar que carga ou volume de tráfego de veículos esta avenida é capaz de suportar sem impactar negativamente a barreira do Cabo Branco, provocando eventuais deslizamentos de terra? Lembremos que, por este mesmo motivo, já foi bloqueado, há muitos anos, o acesso de veículos ao Farol do Cabo Branco.

Não é demais lembrar que a preservação da Barreira do Cabo Branco é fundamental para manter a qualidade de vida na cidade, de acordo com o que preconiza o Estatuto da Cidade, preservando seu ambiente natural e cultural – porque o verde das árvores e a Barreira do Cabo Branco são patrimônios culturais cidade, e parte central da sua identidade urbana. Mais ainda, abaixo da duplicação da Avenida Panorâmica, à margem da barreira, há anos está localizada uma comunidade popular, que seria a principal vítima de eventuais deslizamentos de terra, como já foi no passado. Ora, se a Prefeitura fez um EIA-RIMA, por que não o está divulgando? Foi realizada audiência pública sobre este EIA-RIMA?

O “Caminho Livre” é uma política pública que será implementada por ações de engenharia civil. Daí vem outro questionamento: por que a Prefeitura não optou por instituir medidas relacionadas ao princípio da sustentabilidade para a contratação e construção das obras do “Caminho Livre”? Seria uma boa forma de aplicar o princípio do desenvolvimento sustentável em João Pessoa, promovendo uma boa articulação entre utopia e vida prática, constituindo-se como uma contribuição da cidade à preservação das condições de vida no Planeta.

Esta não é uma idéia nova ou original. Desde 2007 foi constituído o Conselho Brasileiro de Construção Sustentável, que preconiza práticas sustentáveis na construção civil. A Agenda 21 brasileira há mais de dez anos enumera a produção sustentável e ecoeficiente, principalmente na construção civil, como um dos seus objetivos prioritários. Baseado neste princípio, o Ministério do Planejamento emitiu instrução normativa regulamentando a adoção de critérios de sustentabilidade na aquisição de bens, contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal (MPOG, Instrução Normativa Nº 01/2010). Sabendo que o erário público é um dos principais financiadores da construção civil mundial, o conceito de “obras públicas sustentáveis”, tal como empregado pelo MPOG, presta uma contribuição inestimável para o futuro do planeta e dos seus ecossistemas.

Também é estranho que a Prefeitura tenha unilateralmente decidido adotar, sem realizar prévias audiências públicas sobre o assunto, um único sistema de transporte público na cidade, o BRT, movido a óleo diesel - um insumo de origem fóssil e de elevado potencial poluente. Se a Prefeitura pretende melhorar as condições de mobilidade em João Pessoa, beneficiando a vida urbana, porque não aproveitar a oportunidade para adotar um transporte público mais eficiente e energeticamente mais limpo? Ao menos a obrigatoriedade do uso de biocombustíveis pelos BRTs poderia ter sido adotada pela Prefeitura, como condicionante sustentável à exploração privada do serviço de transporte público na cidade. Mas nada disso consta do “Caminho Livre”.

A cidade é um ecossistema, nos ensina Ignacy Sachs, e como tal tem uma ecologia natural e cultural próprias, que devem ser compatibilizadas com os objetivos do crescimento econômico e da inclusão social, segundo o princípio do desenvolvimento sustentável. Por isso, somos da tese de que apenas a incorporação do critério da sustentabilidade poderá garantir a eficácia de um projeto como o “Caminho Livre”. A utopia das cidades sustentáveis deve orientar as ações dos gestores públicos, e João Pessoa merece um planejamento orientado por esta utopia.

nota

NE
Artigo originalmente publicado, em uma versão ampliada, no portal Ponto Crítico PB <www.pontocriticopb.com.br>.

sobre os autores

Rodrigo Freire é doutor em Ciências Sociais (UnB) e professor de Ciência Política (UFPB).

David Soares é mestre em Ciências Sociais (UFRN).

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