A constatação de que o fenômeno urbano é altamente complexo e que só pode ser compreendido na sua totalidade a partir da integração de saberes tem feito com que a relativa fragmentação do conhecimento a partir da compartimentação da ciência em diversas disciplinas seja entendida como uma barreira à geração de cidades mais sustentáveis. Neste cenário, trabalhos inter e intradisciplinares (1) são vistos como modos de atuação que se tornarão cada vez mais frequentes entre arquitetos-urbanistas e outros especialistas, incluindo-se aí os usuários (2).
Se o processo de geração de cidades socialmente, economicamente e ecologicamente mais sustentáveis é altamente intrincado e propenso a conseqüências não antecipadas, a integração dos saberes é hoje vista como uma estratégia capaz de evitar a ‘visão em túnel’ e promover abordagens holísticas, consideradas mais eficazes para lidar com os desafios urbanos locais, regionais e/ou globais.
A relevância do trabalho colaborativo no processo de geração de cidades mais sustentáveis será ilustrada a partir da análise do Programa Pedala BH, que tem como um dos seus principais objetivos a promoção do pedalar na capital mineira. Em Belo Horizonte, assim como em outras cidades do Brasil e do mundo, espaços antes destinados principalmente à circulação ou estacionamento de veículos automotores vêm sendo transformados com o objetivo de motivar a prática rotineira do ciclismo, considerada uma das mais sustentáveis formas de transporte da atualidade (3) (4).
No Brasil, a formulação e implementação da política federal de mobilidade urbana sustentável fica a cargo da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana (SeMob), criada pelo Ministério das Cidades, que tem como uma das suas metas a promoção do acesso amplo e democrático do espaço urbano a partir da priorização do transporte coletivo e não-motorizado, como o ciclismo (5).
Em conformidade com a Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável e com a Política Municipal de Mobilidade Urbana (6), a Prefeitura de Belo Horizonte e a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A (BHTrans) instituíram o Programa Pedala BH que busca promover o pedalar na cidade (7).
Se de um lado, recursos públicos vêm sendo direcionados para promover o uso da bicicleta como meio de transporte na cidade, por outro, o número de ciclistas que vêm fazendo uso dos 36 km dos trechos cicloviários já implantados na capital mineira é irrisório, como reportado na série de contagens fotográficas de ciclistas realizadas em 2010 (8) e 2012 (9).
A partir da observação assistemática do trecho cicloviário implantado ao longo do canteiro central da Avenida Bernardo Monteiro, verificou-se que apesar do ciclismo ser uma prática esporádica, este espaço vem sendo apropriado como um local para caminhar, permanecer e socializar.
Outras subversões semelhantes de uso foram noticiadas pelo Jornal Estado de Minas na ciclovia executada ao longo da Avenida Risoleta Neves, antiga Via 240: ‘Faltam ciclistas, sobram pedestres: na Via 240, pista é usada para fazer caminhadas’ (10). Este conjunto de evidências sugere o quão complexo é o fenômeno urbano e destaca a ineficiência de algumas ações públicas e projetos urbanísticos em alcançar os objetivos originalmente pretendidos.
Os casos acima indicam que a promoção do pedalar nas grandes cidades não é função única e exclusiva da construção de trechos cicloviários, como antecipado pelo próprio poder público local de Belo Horizonte que planeja a construção de uma malha cicloviária de 381 km, instalação de bicicletários e paraciclos, além dos 52 já instalados em locais estratégicos da cidade, em adição à execução de campanhas de educação e segurança no trânsito (11) (12).
O quão eficiente será este conjunto de medidas a médio e longo prazo tendo em vista as peculiaridades físico-ambientais, socioeconômicas, políticas e culturais da cidade de Belo Horizonte?
É aqui que fica evidenciada a importância do desenvolvimento de estudos colaborativos para a elucidação desta e outras questões urbanas de grande relevância na atualidade. Trabalhos inter e transdisciplinares envolvendo, por exemplo, disciplinas interessadas no estudo da relação pessoa-ambiente, potencialmente permitiriam uma exploração aprofundada dos fenômenos urbanos de interesse.
A colaboração entre Arquitetura-Urbanismo, disciplina interessada na projetação de espaços para as pessoas, e a Psicologia, disciplina que analisa o comportamento humano, encontra-se consolidada sob denominações como Estudos Ambiente-Comportamento e Psicologia Ambiental. Ao abarcar a interrelação pessoa-ambiente, a Psicologia Ambiental possibilita trocas e enriquece as bases conceituais e metodológicas daquelas disciplinas complementares.
Maurice Merleau-Ponty, Edward Hall, Robert Sommer, James Gibson, Kevin Lynch, David Cânter, Christian Noberg-Schulz, Amos Rapoport e Yi-fu Tuan contribuíram para a consolidação da Psicologia Ambiental a partir dos anos 1950. A colaboração entre Arquitetura-Urbanismo, Psicologia e disciplinas afins, como Sociologia, Antropologia e Geografia, também tem norteado Avaliações de Pós-Ocupação (APOs), que tem como objetivo compreender o quão bem um dado ambiente atende as necessidades dos seus ocupantes.
A gradual conscientização de que os ambientes arquitetônicos e urbanísticos devem objetivar a promoção da qualidade de vida das pessoas tem contribuído para o crescimento da importância dos estudos pessoa-ambiente. Segundo o sistema de avaliação mantido pelo Sistema Integrado Capes (Sicapes), artigos de grande qualidade sobre o tema vêm sendo publicados em periódicos científicos, como Environment & Behavior e Journal of Environmental Psychology, ambos atualmente enquadrados no estrato A2 (13) (14).
Pesquisas recentes que tratam do tema pessoa-ambiente também podem ser lidas nos anais organizados pelas Environmental Design Research Association (EDRA) e International Association for People-Environment Studies (IAPS), organizações que vêm promovendo seus congressos internacionais desde 1969 e 1981, respectivamente.
No Brasil, se até meados da década de 1990 o número de produções bibliográficas sobre as inter-relações pessoa-ambiente era irrisório, hoje no Banco de Teses da Capes 111 registros atendem a uma busca por ‘psicologia ambiental’ como expressão exata: 22 teses de doutorado, 85 dissertações de mestrado e quatro trabalhos de nível profissionalizante (15).
Apesar da multiplicação de trabalhos colaborativos com enfoque nas inter-relações homem-ambiente, várias lacunas de conhecimento podem ser identificadas. Há, por exemplo, uma grande carência de estudos que tenham como enfoque como o ambiente urbano é efetivamente vivenciado pelos ciclistas (16).
Quais qualidades físico-ambientais tendem a ser mais apreciadas pelos ciclistas? Quais as necessidades básicas dos ciclistas em diferentes faixas etárias? Como a solução projetual pode contribuir para a sensação de segurança dos ciclistas?
Se de um lado pouco se sabe a respeito das necessidades e preferências dos ciclistas no Brasil e no mundo, o caso de Amsterdam e Copenhague, onde uso da bicicleta como meio de locomoção para realização das tarefas diárias é mais freqüente que o uso do automóvel (17), tem inspirado os gestores públicos de cidades como Belo Horizonte, Bogotá, Vancouver, Berkeley, Paris e Londres.
Se de um lado várias razões justificam a promoção do pedalar na contemporaneidade, a grande pergunta ainda a ser respondida pelos gestores de cada localidade é ‘Como?’. Os riscos provenientes da importação indiscriminada de modelos, como desperdício do dinheiro público na execução de projetos inconseqüentes, são frequentemente relevados no mundo globalizado.
No caso de Belo Horizonte, a elaboração de estudos inter- e transdisciplinares que tenham como objetivo identificar os fatores que têm inibido potenciais ciclistas a fazerem uso das ciclovias e facilidades já implantadas na cidade bem como a aplicação de Avaliações de Pós-Ocupação produziriam resultados capazes de colocar os agentes urbanos em melhor posição para elaboração de diretrizes, definição de ações e concepção de espaços que efetivamente viessem a funcionar como rotas cicloviárias.
Em conclusão, o que se pleiteia, neste artigo, é que a partir do desenvolvimento de trabalhos colaborativos pode-se obter uma compreensão mais aprofundada do fenômeno de interesse, conhecimento este considerado crucial para a tomada de decisões conscientes e, potencialmente, mais eficazes. Ao unificar perspectivas parciais e definir uma plataforma comum de trabalho, a inter- e transdisciplinaridade facilitaria a gestão compartilhada e processos de projeto genuinamente participativos.
notas
1
Enquanto na multidisciplinaridade recorre-se a várias disciplinas concomitantemente para obtenção de informações distintas, na interdisciplinaridade as trocas entre as várias disciplinas são profundas em função da construção de estruturas comuns a todas elas. Na transdisciplinaridade vê-se a integração total das disciplinas envolvidas a partir da dissolução das suas fronteiras.
2
Ao estabelecerem um contato direto e cotidiano com o ambiente, os usuários são vistos como detentores de um conhecimento especializado e crucial no processo de projetação, produção e manutenção de espaços de qualidade.
3
Enquanto a bicicleta é um meio de transporte barato, movido a energia humana, de fácil fabricação, dimensões reduzidas, que requer pouca manutenção e permite percorrer distâncias mais longas que o modo a pé de deslocamento, a prática do ciclismo contribui para a saúde física e mental dos seus praticantes.
4
TUMLIN, Jeffrey. Sustainable transportation planning: tools for creating vibrant, healthy, and resilient communities. Hoboken: John Wiley & Sons, 2012.
5
BRASIL. Ministério das Cidades. Transporte e Mobilidade Urbana. Disponível em:<http://www.cidades.gov.br/index.php?option=com_content&view=section&layout=blog&id=8&Itemid=66> Acesso em: 27 dez. 2012.
6
BELO HORIZONTE. Lei n° 10.134, de 18 de março de 2011. Institui a Política Municipal de Mobilidade Urbana. Acesso em: 30 jul. 2012.
7
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - BHTRANS. Programa Pedala BH. 2012. Disponível em: <http://www.bhtrans.pbh.gov.br/portal/page/portal/portalpublico/Espa%C3%A7o%20Urbano/PedalaBH> Acesso em: 30 jul. 2012.
8
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - BHTRANS. Programa Pedala BH. 2012. Disponível em: <http://www.bhtrans.pbh.gov.br/portal/page/portal/portalpublico/Espa%C3%A7o%20Urbano/PedalaBH> Acesso em: 30 jul. 2012.
9
MOUNTAIN BIKE BH. “Contagem de Ciclistas em BH”. 2010. Disponível em: <http://mountainbikebh.com.br/site/index.php/contagem-de-ciclistas-em-bh> Acesso em: 09 ago. 2012.
10
AYER, Flávia. Ciclovias ainda atraem poucos ciclistas em BH. Estado de Minas, Belo Horizonte, 12 fev. 2012. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/02/12/interna_gerais,277492/ciclovias-ainda-atraem-poucos-ciclistas-em-bh.shtml> Acesso em: 30 jul. 2012.
11
Idem. Ibidem.
12
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - BHTrans. “Rotas cicloviárias”. 2012. Disponível em: <http://www.bhtrans.pbh.gov.br/portal/page/portal/portalpublico/Espa%C3%A7o%20Urbano/Ciclovias> Acesso em: 26 dez. 2012.
13
A classificação dos periódicos, atualizada anualmente em conformidade com o Qualis, é baseada em oito estratos indicativos de qualidade: A1, mais elevado, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C, com peso zero.
14
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - BHTRANS. “Programa Pedala BH”. 2012. Disponível em: <http://www.bhtrans.pbh.gov.br/portal/page/portal/portalpublico/Espa%C3%A7o%20Urbano/PedalaBH> Acesso em: 30 jul. 2012.
15
BRASIL. SISTEMA INTEGRADO CAPES. WEBQUALIS. Disponível em: <http://qualis.capes.gov.br/webqualis/principal.seam> Acesso em: 28 dez. 2012.
16
A maioria das publicações que discutem ciclismo e projeto urbanístico foca na dimensão funcional da solução projetual.
17
BRASIL. Ministério da Educação – CAPES. “Banco de teses”. Disponível em: <http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/Teses.do>Acesso em: 26 dez. 2012.
sobre a autora
Paula Barros é doutora em Desenho Urbano pela Oxford Brookes University (2010), mestre em Requalificação Urbana pela Liverpool Hope University / Liverpool University (2003), especialista em Arquitetura Contemporânea pelo IEC/PUC-Minas (1999) e graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996).