In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.
português
A tragédia anunciada do incêndio da Estação da Luz nos coloca diante do dilema do que fazer com o patrimônio arruinado: restaurar ou manter a memória da destruição?
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Elegia para uma Estação que perdeu sua Luz. O que fazer com o edifício histórico após segundo incêndio. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 188.01, Vitruvius, mar. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.188/5941>.
A primeira vez que entrei na Estação da Luz, pelas mãos do meu avô engenheiro da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, não deveria ter mais do que cinco anos.
E a primeira catedral a gente nunca esquece!
Em 1994, quando assumi a superintendência regional do Iphan em São Paulo, encaminhei pessoalmente a Estação da Luz para tombamento, o qual foi efetivado no ano seguinte.
E o primeiro tombamento a gente nunca esquece!
Em 2001, como Conselheira da CNIC para a área de Patrimônio, coube-me analisar e relatar o processo Pronac “Estação da Língua Portuguesa”, da Fundação Roberto Marinho, inicialmente orçado em quase 40 milhões de reais, recursos provenientes de renúncia fiscal, questionando o montante do orçamento, a ausência de projetos e a decisão de substituir o acervo e a documentação da ferrovia então guardados na Estação, por um “museu” sem projeto, sem acervo e sem relação com a ferrovia.
E a primeira grande decepção com os descaminhos da política cultural a gente nunca esquece!
Em 2005, com o intuito de registar em livro a documentação da São Paulo Railway em risco, estudei e trabalhei arduamente, em parceria com Maria Inês Mazzoco, para a edição do livro De Santos a Jundiaí: nos trilhos do café com a São Paulo Railway (1).
E a satisfação pela concretização de um projeto de preservação de documentação desta envergadura a gente nunca esquece!
De alguma forma, a Estação da Luz faz parte da minha vida, e eu da vida dela, neste complicado processo simbiótico de construção de histórias e sentidos, e na tentativa de preservar valores que tenho compartilhado de bom grado com minha cidade, com o Estado de São Paulo, e com todo o país.
Quando na tarde chuvosa do dia 21 de dezembro do ano passado, pela segunda vez na sua história, a Estação da Luz ardeu, eu me recolhi atônita. Emudeci. Não conseguia escrever sobre esta tragédia anunciada, nem ao menos para esclarecer tanta desinformação veiculada e para lembrar que, muito provavelmente, estávamos diante de um crime e não de um acidente. Depoimentos oficiais e pareceres técnicos já começaram a confirmar suspeitas de que a tragédia que se abateu sobre a Estação da Luz poderia ter sido evitada se respeitados procedimentos básicos de manutenção e segurança, diga-se de passagem, obrigatórios por lei para a preservação de bens tombados; a se lamentar a perda da Estação, e não dos equipamentos culturais que lá funcionavam, ela sim monumento tombado pelas três instâncias do patrimônio por seu inestimável valor histórico e artístico.
Mas, ainda que profundamente triste e inconformada com o descaso e a irresponsabilidade com que continuam sendo tratados nossos monumentos e nossa história, não poderia deixar de apreciar o valor estético da romântica ruína apresentada nas fotografias veiculadas pela imprensa, como aquela que ilustra esse texto. Especialmente as fotos que mostram o esqueleto carbonizado do telhado do edifício em primeiro plano e a vegetação do Jardim da Luz ao fundo, me levaram a abstrair a ponto de confundi-la com uma majestosa e inusitada catedral abandonada, cercada por uma mata tropical prestes a engoli-la. Belíssima!
Por essa razão, mesmo defendendo que a Estação seja restaurada segundo o projeto original (com alguma sorte o projeto ainda estará nos arquivos da São Paulo Railway abandonados em um prédio ao lado da Estação) para que assim tenha uma chance de recuperar sua vocação de origem e um estado completo que de fato existiu durante seus primeiros 45 anos de vida – resistindo até que a incúria dos homens permitisse que o fogo a devorasse por duas vezes e que projetos ditos de “reconstrução” e de “restauração” a destruíssem lhe roubando valores e integridade –, pois mesmo defendendo uma séria e competente restauração ainda hesito, tentada a ceder a súbita e contraditória síndrome ruskiniana pós-moderna, e defender que, ao contrário, seja preservada a ruina! Sim, consolidar e conservar a bela e melancólica ruína do monumento! Postura talvez mais coerente com uma história de tantas e sucessivas agressões e mutilações, ainda justificada pela permanência de qualidades estéticas intrínsecas às ruínas e pela certeza de que a Luz nunca mais vai recuperar sua alma e as sagradas marcas da passagem do tempo e da história sobre sua pele e sua ossatura. Concordando assim com John, o Ruskin, quando afirma que a cópia resultante de numerosas e controvertidas intervenções pode até conter a estrutura das velhas paredes como se recobrisse o esqueleto, mas com que vantagem eu não percebo e nem me importa!
nota
1
SANTOS, Cecilia Rodrigues dos; MAZZOCO, Maria Inês Dias. De Santos a Jundiaí. Nos trilhos do café com a São Paulo Railway. São Paulo, Magma, 2005.
sobre a autora
Cecilia Rodrigues dos Santos é arquiteta, com mestrado pela Universidade de Paris X-Nanterre/França, e doutorado pela FAU-USP, professora adjunta e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem como principais temas de especialização e trabalho a arquitetura moderna e contemporânea e a preservação do patrimônio cultural.