In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.
português
Este artigo trata dos conflitos entre população e poder público sobre a preservação da Fábrica de Sal, um edifício fabril do final do século XIX às margens da Estrada de Ferro Santos Jundiaí, em Ribeirão Pires SP.
PAIVA, Marcelo de. Fábrica de Sal. Patrimônio cultural e disputa pelo espaço público. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 188.03, Vitruvius, mar. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.188/5965>.
No dia 01 de fevereiro de 2016, confirmando os rumores que já circulavam pela cidade, a Câmara Municipal de Ribeirão Pires, em sua primeira sessão do ano, teve em sua pauta a votação do Projeto de Lei 004/16, proposto pelo Prefeito Saulo Benevides, que autoriza “direito real de uso gratuito de área para construção de Shopping Center” sendo a área em questão um terreno da Prefeitura Municipal onde se encontra a Escola Municipal Lavinia de Figueiredo Arnoni, a Biblioteca Municipal Olavo Bilac e o edifício conhecido na cidade como Fábrica de Sal. Por mais de vinte dias os vereadores, temendo a reação dos cidadãos que encheram a plenária nas sessões ordinárias e extraordinárias, adiaram a pauta. Pressionados pela população marcaram audiência pública que contou com a presença maciça de cidadãos interessados no Futuro da Fábrica de Sal.
A iniciativa do Prefeito Saulo Benevides entra em choque com as declaradas intenções do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Cultural e Natural de Ribeirão Pires – CMDPCN de preservar o edifício da Fábrica de Sal e seu entorno. Sem apoio do chefe do Executivo, ao qual está subordinado, o CMDPCN encaminhou um dossiê ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephaat, que abriu o processo de tombamento estadual da Fábrica, conforme publicado oficialmente no Diário Oficial do Estado no dia 03 de fevereiro. Desse modo, recai sobre a Fábrica de Sal, todos os efeitos legais de um bem tombado, que só será suspenso caso o Conselho estadual não aprove o tombamento. A alteração ou a demolição do bem acarretará, portanto, penalidades previstas por lei para os responsáveis.
Diversos são os argumentos a favor do tombamento da Fábrica de Sal. O dossiê organizado pelo CMDPCN apresenta documentos que indicam ser o Molino de Semole Fratelli Maciotta – uso original do edifício – um dos mais antigos do Estado, já que funcionou de 1898 a 1916. Mais antigo inclusive que o Moinho Matarazzo, no bairro do Brás em São Paulo, construído um ano depois, em 1899 e inaugurado em 1900, este já tombado pelo Conpresp e pelo Condephaat. A denominação de Fábrica de Sal se deve ao funcionamento da moenda e refinaria de sal Carmino Cotolessa, última ocupação industrial do imóvel. O Moinho Fratelli Maciotta é, portanto, contemporâneo às estações ferroviárias de Ribeirão Pires e de Rio Grande da Serra, ambas tombadas pelo Condephaat em 2012, e à Vila Ferroviária de Paranapiacaba, tombada pelo Iphan em 2008. É um dos poucos remanescentes de edifícios fabris datados de antes dos anos 1950 em toda a região do Grande ABC. Trata-se, portanto, de um raro exemplar dos processos históricos de industrialização, urbanização e imigração tão características não só da região do Grande ABC como de todo o Estado de São Paulo. Mais do que isso, faz parte da memória de diversos trabalhadores e suas famílias que a partir dali estabeleceram suas histórias de vida.
Os valores culturais do conjunto vão além do valor histórico. Em 2001 a área foi desapropriada pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Pires para compor o Centro Cultural e Educacional Ibrahim Alves de Lima, junto à Escola Municipal Lavínia de Figueiredo Arnoni e à Biblioteca Municipal Olavo Bilac, abrigando o acervo do Museu Municipal e a Escola Municipal de Música passando a ser apropriado e frequentado cotidianamente pelos munícipes. O projeto de arquitetura e paisagismo do conjunto, de autoria dos arquitetos Rafael Perrone e Márcio do Amaral, deu destaque visual para a Fábrica com gramado e uma calçada de concreto servindo de passagem de pedestres entre as avenidas Santo André e Humberto de Campos e acesso ao então Centro de Exposições Dom Helder Câmara, instalado no antigo Moinho. Perroni e Amaral requalificaram a Fábrica com linhas sutis respeitando e valorizando as linhas originais da edificação ostentando a intervenção posterior. O projeto rendeu aos arquitetos um Prêmio “Ex-aequo” oferecido pelo IAB-SP em 2004.
Por último e mais importante, há a vontade manifesta da população pela preservação e manutenção do Moinho, do seu entorno e, acima de tudo, do seu uso público. O edifício foi interditado em 2009 devido à sua contaminação por cloreto de sódio e desde então se encontra sem uso e sem cuidados pelo poder público. O prefeito Clóvis Volpi (2005-2012) chegou a encomendar um laudo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – IPT sobre o seu estado de conservação, mas, embora os pesquisadores do IPT tenham afirmado que os danos do edifício são de pequena magnitude e contornáveis desde que seja feita a devida manutenção e limpeza, nenhuma iniciativa foi tomada para sua restauração e uso. Já o Prefeito Saulo Benevides, além das intenções de se desfazer da área do Centro Ibrahim Alves de Lima, na reta final de seu mandato, ainda interditou o Parque Milton Marinho de Moraes, o camping e o Complexo Ayrton Senna, onde se concentram a maioria dos equipamentos municipais dos ribeirão-pirenses, para a realização do seu projeto mais caro, um teleférico, cujas obras foram interrompidas após a Cetesb negar o licenciamento ambiental do empreendimento. Assim, a cidade ficou praticamente sem espaços públicos para os cidadãos.
Há portanto, diversas camadas de significados que qualificam a Fábrica de Sal como patrimônio cultural: o valor histórico relativo à industrialização do Estado de São Paulo, o valor da sua arquitetura industrial, o valor de uso como equipamento público, o valor urbanístico de um espaço qualificado da cidade e marcante em sua paisagem e o valor afetivo da população que há anos vem fazendo investidas para sensibilizar o poder público pela preservação da área.
As questões legais e administrativas também pesam a favor da preservação. Além da proteção da Fábrica pela abertura do processo de tombamento estadual, por periculum in mora o Ministério Público, acionado pelo vereador Renato Foresto, obteve do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo uma liminar exigindo policiamento ininterrupto para evitar uma demolição inesperada. Além disso, o projeto de lei do Prefeito Saulo Benevides depende de aprovação da Câmara Municipal para a desafetação de bens públicos. Alguns vereadores alegaram que o projeto seria prejudicial a Ribeirão Pires por não prever qualquer contrapartida à municipalidade nem pelo imóvel, que seria doado e não vendido, e nem por arrecadação de impostos, pois prevê incentivos fiscais aos empreendedores do shopping. Além disso, seria extremamente necessário se avaliar os impactos econômicos de um empreendimento dessas dimensões sobre os comerciantes locais, como defendeu Marcelo Menato, representante da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Ribeirão Pires – ACIARP durante a audiência pública.
Motivos para a preservação da Fábrica de Sal não faltam. Mas as questões do patrimônio cultural extrapolam o próprio patrimônio cultural. Trata-se também de uma disputa de poder em que a população usa os recursos que tem: as instituições democráticas e a pressão sobre as autoridades responsáveis. O que está em jogo é mais do que a defesa do patrimônio cultural. É a defesa de espaços públicos, de convivência, de fruição, de serviços, de educação, de cultura, de lazer etc. contra uma tradição perversa de nossos governantes de privilegiar interesses privados às custas dos bens públicos e contra os interesses da população que deveriam representar. Essas práticas há anos vêm gerando tensões em várias regiões do país e provocando reações de movimentos populares como o movimento Ocupe Estelita no Recife e o movimento Viva Gasômetro em Porto Alegre.
Seja qual for o desfecho do caso da Fábrica de Sal, ficam duas lições. Aos governantes, a obrigação de respeitar as instituições democráticas e a legitimidade da participação social em qualquer setor da gestão pública conforme prevê a Constituição Federal de 1988 e toda a legislação que se seguiu a ela. À população, o aprendizado de que não há democracia sem participação, seja por meio dos órgãos democráticos com participação da sociedade civil, como o CMDPCN, seja pela ação direta de movimentos sociais defendendo sempre, junto às autoridades, as questões de interesse público das nossas cidades.
sobre o autor
Marcelo de Paiva é historiador e professor formado pela FFLCH-USP, mestre em arquitetura e urbanismo pela FAU-USP e doutorando pela FAU-USP, autor do livro Águas, trilhos e manacás: as cores da memória (Santo André, Solvay, 2010) disponível na internet.
legendas