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português
Com base em pesquisa bibliográfica e documental, o artigo analisa dois projetos de intervenção urbana em São Paulo, que pretenderam atribuir a equipamentos culturais um papel-chave: os programas Luz Cultural (1985-1986) e Polo Luz (1995-2002).
FERNANDES, Marcelo Ricardo; JAYO, Martin. A cultura como instrumento de intervenção urbana. Dois casos no bairro da Luz, São Paulo. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 198.02, Vitruvius, jan. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.198/6359>.
Desde a década de 1970, o bairro da Luz, no município de São Paulo, foi objeto de diferentes projetos de recuperação urbana, nenhum deles bem-sucedido, com destaque para as iniciativas denominadas Renovação da Luz (1972-1979), Luz Cultural (1985-1986), Polo Luz (1995-2002) e Projeto Urbanístico Nova Luz (2005-2012) (1). No presente texto, pretendemos fazer uma análise crítica de dois desses projetos – Luz Cultural e Polo Luz – que tiveram em comum o fato de utilizarem a cultura como instrumento de intervenção urbana, ao esperarem que os equipamentos culturais ali existentes tivessem um papel indutor na transformação de uma área problemática e degradada.
Para cumprir tal objetivo, foi efetuado um levantamento bibliográfico, reunindo trabalhos acadêmicos, material jornalístico e demais documentos descritivos de ambos os projetos. A partir do exame desse material foi possível elaborar um relato histórico, apresentado a seguir, em que procuramos discutir criticamente os pressupostos e a visão de cidade compartilhados por ambos os projetos.
1985-1996: Luz Cultural
No início do ano de 1985, o então prefeito do município de São Paulo, Mário Covas, junto ao Secretário Estadual de Cultura, Jorge Cunha Lima e a diretora do Departamento de Patrimônio Histórico Municipal – DPHM, Regina Prosperi Meyer, apresentaram um projeto cultural e urbanístico batizado de Luz Cultural. O projeto pretendia promover uma revitalização na chamada “área da Luz”, a partir da utilização dos equipamentos culturais e dos edifícios e monumentos históricos da região. A expectativa era que, se o patrimônio histórico e cultural fosse atrativo, haveria um processo natural de reurbanização. A utilização da cultura como elemento de melhorias no meio urbano estivera em voga em Londres, Paris e Nova York nas décadas de 1960 e 1970, tendo servido como fonte de inspiração para o projeto paulistano (2).
A área implicada pelo Luz Cultural incluía parte dos bairros de Bom Retiro e Campos Elíseos, além do próprio bairro da Luz. Tinha o Parque da Luz como seu “marco zero” e pretendia revitalizar a região sem seu entorno, transformando-o assim em uma versão paulistana do Central Park.
O projeto Luz Cultural constituía-se de quatro elementos: (a) implantação de programas e roteiros turísticos envolvendo todos os diferentes equipamentos culturais localizados na região; (b) organização do zoneamento do bairro; (c) elaboração de um projeto gráfico de divulgação; e (d) algumas intervenções pontuais de recuperação de edifícios de interesse histórico.
A região de fato abrigava inúmeros atrativos culturais ou turísticos, como a Vila dos Ingleses, a Vila Economizadora, a Vila Sá Barbosa, o Conjunto Militar, a Chaminé da Luz, a Igreja de São Cristóvão, o Mosteiro da Luz, a antiga prisão pública, a antiga Escola Politécnica, o antigo edifício da Faculdade de Farmácia e Odontologia, a Pinacoteca do Estado, a Estação da Luz, a Estação Sorocabana, o Teatro Taib, o Colégio Feminino de Santa Inês e o Colégio Masculino de Santo Eduardo, a Igreja Armênia e o Instituto Salesianos, o Palácio dos Campos Elíseos e o palacete Santos Dumont, além de casarões localizados nas baixadas próximas à Marginal do Rio Tietê e da Avenida do Estado. Atendendo ao objetivo “(c)” acima mencionado, todos estes locais passaram a fazer parte de uma lista com 63 pontos culturais na região, que seria divulgada em forma de guia no ano de 1986, tendo como título “Guia Luz Cultural – Museus, Teatros, Bibliotecas, Cursos, Lazer e Serviços”.
Para dar conta da formulação (e implementação) dos roteiros turísticos, foram mobilizados a Secretaria Estadual de Esportes e Turismo, a Fundação de Desenvolvimento Administrativo – Fundap, a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), a TurisMetrô, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC e o Comando do Polícia Militar (3). Com todo esse contingente estatal mobilizado, foram organizados passeios, exposições, ateliês, oficinas e diversas atividades recreativas – inclusive a céu aberto, em geral no Parque da Luz. Este último estava com um “aspecto deplorável” (4), o que prejudicava a lógica de atrair população de classes mais altas, especialmente moradores da zona sudoeste.
No contexto de crise financeira vivenciado pelo Estado brasileiro nos anos 1980, o então prefeito Mário Covas gostava de anunciar que o Luz Cultural era um projeto “não-financeiro”, isto é, que não geraria gastos extras ao erário. Para contornar essa situação de escassez, Covas buscara engajar diversas secretarias, realizando uma captação de recursos entre as pastas que permitisse a realização do projeto. Por outro lado, a articulação entre esses agentes produziu uma gama diversificada de atores governamentais que buscavam influenciar de alguma forma o projeto.
Dentre as poucas obras de infraestrutura que foram orientadas pelo Luz Cultural, destacam-se a recuperação e a conservação dos edifícios da Pinacoteca, do Museu de Arte Sacra, do Liceu de Artes e Ofícios e da Faculdade de Farmácia e Odontologia (atual Oficina Cultural Oswald de Andrade), além da revitalização da praça Fernando Prestes transformada em “praça cultural”, e a controversa demolição do prédio que abrigava a Usina Termoelétrica da Luz. “Não eram previstas obras de grande porte, nem novas construções, mas, apenas recuperação, reaproveitamento e organização dos equipamentos culturais públicos e privados já existentes” (5).
Um fato polêmico – a demolição da histórica usina termoelétrica da Luz para ampliação da Rua João Teodoro – repercutiu de forma negativa sobre o projeto Luz Cultural e os seus criadores. O secretário Cunha Lima respondeu a ação penal sobre o ocorrido e o jornal O Estado de S.Paulo destacou, em sua edição de 4 de março de 1985, que o projeto que protegeria o bairro estava na verdade destruindo-o (6).
O projeto Luz Cultural contou desde o início com algum investimento privado, algo ainda pouco comum na década de 1980. A Philips e a IBM, por exemplo, fizeram doações: a primeira forneceu a nova iluminação da praça Fernando Prestes, e a segunda os equipamentos para a informatização da biblioteca municipal que funcionava na Praça Coronel Fernando Prestes, em prédio que hoje abriga o Arquivo Histórico Municipal (7). Mesmo com esses investimentos de grandes empresas, o Luz Cultural não conseguiu tornar a região da Luz atrativa para os investidores e para os usuários da classe média alta e, com isso, a almejada reforma urbana não obteve êxito. Apesar de o programa Luz Cultural não ter sido oficialmente encerrado, o desinteresse do empresariado e da classe média alta pela região frustrou o processo de reurbanização esperado.
Em janeiro de 1986, Covas se despediria da prefeitura de São Paulo e, um ano mais tarde, Cunha Lima também sairia de sua secretaria. No entanto, o advocacy do Luz Cultural estava apenas se iniciando.
1995-2002: Polo Luz
Em 1991 um grupo de empresários coordenados pelo então presidente do BankBoston, Henrique Meirelles, fundou a Associação Viva o Centro – AVC, que visava articular “arquitetos, urbanistas, empresários, comerciantes e demais segmentos da sociedade civil interessados em discutir sistematicamente os problemas da área central e apontar e dar encaminhamentos para possíveis soluções” (8).
Dois dos principais consultores da AVC eram justamente Jorge Cunha Lima e Regina Meyer, que, após saírem de seus respectivos cargos do poder público, haviam passado a se empenhar na obtenção de recursos que pudessem viabilizar os projetos que não puderam ser implementados durante a gestão Covas. Os esforços aparentemente foram bem-sucedidos, e nove anos após o insucesso do Luz Cultural, sua nova versão, o Polo Luz, pode contar com três fontes de financiamento: a) empresas de diferentes portes, que investiam montantes variados por meio da Associação Viva o Centro, e que almejavam obter melhorias em seus arredores; b) o governo federal, que fazia transferências correspondentes ao número de obras em andamento em regiões amparados pelo Programa de Renovação das Áreas Ferroviárias; c) a partir de 1997, o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que, através do programa Monumenta, auxiliava a preservação da história e da cultura dos países latino-americanos.
Polo Luz foi um termo adotado desde o início dos anos 1990 que, no entanto, não se consolidou em um programa formal ou uma política pública específica, ainda que tenha norteado diversas ações e discursos estatais (e também não-governamentais). Ainda que seja difícil determinar de forma precisa o período em que o Polo Luz vigorou, o ponto inicial de sua implementação está ligado à eleição de Mário Covas para o governo do estado, em 1994, e a consequente ida da equipe responsável pelo Luz Cultural para o Palácio dos Bandeirantes.
Ao não se configurar como uma ação específica, e sim como um conjunto de intervenções, o Polo Luz teve um complexo arranjo institucional e os mais diversificados financiamentos, que lhe permitiram um longo período de implementação sem que enfrentasse escassez de recursos. A AVC se tornaria, ao longo da década de 1990, o principal agente da sociedade civil a tratar de áreas centrais. Foi através dela que, mesmo antes da vitória eleitoral de Covas em 1994, o Polo Luz, começou a ser formulado.
A já citada Associação Viva o Centro se tornaria um dos atores sociais mais importantes nas políticas urbanísticas de São Paulo na década de 1990. Em sua página na internet, a AVC se considera “resultado da tomada de consciência das mais significativas entidades e empresas sediadas ou vinculadas ao Centro de São Paulo do seu papel de sujeitos e agentes do desenvolvimento urbano” (9). Essa repentina tomada de consciência por parte de um benevolente setor de empresários do ramo financeiro e imobiliário, nos foi elucidada, quando da publicação do livro “São Paulo centro: uma nova abordagem”, uma espécie de programa político que nortearia a atuação dessa organização sem fins lucrativos (10).
O ponto de partida dessa obra é um diagnóstico de histórica ausência de políticas públicas para a região central da cidade, que teria levado ao êxodo das classes altas. Em função disso, o programa defende uma revitalização da região central, pelo poder público em parceria com o setor privado, visando à reocupação da região, nos mais variados sentidos, pelos extratos mais elevados da sociedade paulistana:
“Ainda que a atuação do poder público tenha sido, recorrentemente, marcada por elevados investimentos nos espaços centrais, principalmente em transportes e sistema viário, estes resultaram mais como viabilizadores do crescimento extensivo da cidade, do que como indutores de reciclagem e de melhoria das condições de desempenho das atividades centrais. […] Como consequência desse processo, um conjunto de bairros próximos a centros de empregos, com todos os serviços públicos e excelentes condições de acessibilidade, passaram pelo crescente esvaziamento populacional e, em alguns casos, permaneceram ocupados por atividades incompatíveis com a localização central” (11).
Visando reocupar o centro da cidade com atividades “compatíveis”, um conjunto de políticas públicas havia sido formulado pela AVC nos primeiros anos da década de 90 e seriam aprovadas ainda nos primeiros meses da gestão Covas. A Operação Urbana Centro – OUC foi a principal delas, pois dava diretrizes a todas as intervenções que seriam feitas no centro da cidade – inclusive, as consideradas integrantes do projeto Polo Luz.
A AVC, em “São Paulo centro: uma nova abordagem”, expõe a preocupação (que ganharia cada vez mais espaço, a partir de agora) de saciar os desejos da indústria imobiliária, um dos novos interessados em “recuperar” o centro de São Paulo:
“A Operação Urbana constitui instrumento de fundamental importância para viabilizar investimentos do setor privado na Área Central. Outras formas de parcerias devem também ser buscadas, para intervenções de menor porte, que possibilitem, por um lado, soluções projetuais mais definidas e, por outro, permitam a inserção de grupos diversificados do setor imobiliário” (12).
Por fim, a publicação conclama o empresariado a investir na revitalização do centro, e assim associar suas marcas a um processo importantíssimo de reurbanização da cidade. Explica como esse processo pode ser lucrativo, e ainda defende contrapartidas fiscais por parte do governo. Esta associação em prol do centro, visava formular políticas públicas que incentivassem que a burguesia voltasse a morar, trabalhar e frequentar o centro de São Paulo. Para o setor imobiliário, prometiam terreno fértil, para o setor comercial prometia-se a desoneração e para os demais setores empresariais prometia-se um bairro seguro, rico culturalmente, arborizado, agradável e próximo aos seus locais de trabalho.
Como dito, durante o mandato de Mário Covas o governo federal atuou em conjunto com o Estadual nas políticas de revitalização do centro da capital paulista. O governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso desempenhou papel importante na criação do Polo Luz, através de três medidas: o Programa de Revitalização de Áreas Ferroviárias (1995), o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural (1997) e, a mais importante, a adesão ao Monumenta, em 1999 (13).
Como o PRAF, foi o primeiro projeto do governo Covas para intervenção na região, este foi fundamental na definição do perímetro; e, por tratar-se de um programa federal, cujo financiamento estava atrelado às intervenções próximas às áreas das antigas linhas férreas, convencionou-se que o eixo central do programa Polo Luz seria a linha do trem.
O Monumenta começou a ser articulado em 1997 pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para ser um programa de financiamento voltado a projetos de revitalização de centros urbanos. No entanto, como ressalta Desirée Ramos Tozi, o Monumenta fazia com que as cidades abandonassem as políticas de preservação desenvolvidas pela Iphan e se voltassem a busca de atrativos financeiros ao revitalizarem suas áreas centrais:
“Inicialmente chamado de ‘Programa de Preservação do Patrimônio Cultural Urbano’ (1997), o Programa Monumenta pretendia-se uma linha de financiamento para preservação do patrimônio cultural […] situados em municípios que pudesses sustentar a manutenção dos bens após o investimento de recuperação. Abandonando, após a assinatura do empréstimo, os métodos de trabalho do Iphan, e priorizando o potencial econômicos das cidades" (14).
O Governo Federal, que já recebia verbas culturais do BID desde 1996 (15) assinou o novo contrato de financiamento e implementou o programa Monumenta em 1999, ocasião em que 26 cidades foram beneficiadas, entre elas São Paulo.
Na cidade de São Paulo, a Luz foi a única região receptora de políticas com verbas do Monumenta (16). As reformas da estação e do parque da Luz, e a instalação do complexo cultural da Júlio Prestes e do Museu de Língua Portuguesa são exemplos de melhorias executadas com o financiamento do BID.
Em 1998, ainda no contexto do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, a prefeitura de São Paulo (na época sob gestão de Celso Pitta) aprovou o Projeto Luz para “dar vida” à estação da Luz e para que essa desempenhasse novamente papel crucial na mobilidade da cidade. No contexto do projeto Luz, a prefeitura cedeu os arredores da estação para melhorias que seriam feitas pelo governo do Estado.
Com o assessoramento financeiro, técnico e teórico da Viva Centro, com o financiamento do BID, com o apoio político do governo federal e com aval da prefeitura municipal, o Polo Luz começava a ganhar os seus contornos institucionais.
Apenas no ano de 2000, a Associação Viva o Centro publicaria um estudo organizado por Regina Meyer, intitulado “Polo Luz: Sala São Paulo, cultura e urbanismo”, uma declaração ulterior de autoria que continha as propostas de políticas públicas que já vinham sendo implementadas na região ao menos, desde 1995, e outras que não haviam sido aceitas pelo poder público. O conteúdo deste livro é o que passou a ser denominado como projeto Polo Luz. Nele podemos conhecer o perímetro do Polo Luz, e as principais propostas do projeto.
O Polo Luz consistiu de diversas ações localizadas na região delimitada pela rua Três Rios ao norte, rua Silva Pinto e alameda Nothmann ao Noroeste, avenida Rio Branco ao Oeste, avenida Duque de Caxias e rua Mauá ao Sul, e avenida Tiradentes ao Leste. Toda a área do Polo Luz (em tom mais claro) está contida na do Luz Cultural.
As principais ações em equipamentos culturais no Polo Luz foram: a reforma da Pinacoteca, do Parque e da Estação da Luz; a transformação da Estação Sorocabana no Complexo Cultural Júlio Prestes (com a implantação da Sala São Paulo, da Estação Pinacoteca e do Memorial da Resistência); a inauguração da Museu da Energia Elétrica e do Museu da Língua Portuguesa; e a reforma do palácio dos Campos Elíseos. Todas estas foram iniciadas durantes a gestão de Mário Covas e concretizadas em conjunto pelos três níveis de governo, através de parcerias público-privadas, tendo a AVC como principal intermediária e utilizando verbas oriundas do BID.
Diferente do Luz Cultural, o Polo Luz previa medidas de melhorias para o tráfego da região; dentre as quais as mais notáveis eram a construção de viadutos que ligariam a Avenida Duque de Caxias à Rua Prates – privilegiando o fluxo de pedestres entre o Complexo Cultural Júlio Prestes e a Estação da Luz – e a Rua Prates à Avenida do Estado, retomando a ideia já contida no projeto Renovação da Luz, dos anos 1970 (17). Além dos viadutos, previa-se também a transformação de parte das vias expressas da Avenida Tiradentes, no trecho entre as ruas Mauá e João Teodoro, em túnel para possibilitar a transformação desta em um arborizado boulevard – com quiosques para o funcionamento de cafés, bares e livrarias (18).
Mas e quanto à população da região? Cunha Lima, em entrevista a Heitor Frúgoli Jr., expõe seu ponto de vista sobre “aquela gente”, expressão pela qual se refere às classes populares residentes na região central ou afluentes a ela:
“O Centro não tem a população que se imagina. O Centro é uma servidão de passagem para sistemas de transporte idiotas que virou ponto final de todos os sistemas de ônibus. Então, aquela gente que passa no Centro, para ir de um lado para o outro, pegar condução, aquela massa popular que até é geradora de camelôs e de interesses, não tem nada a ver com o Centro. O popular do Centro é o que está prejudicado por isso aí, que é o bancário, o comerciário, o funcionário público. Esse sim, nós temos que respeitar” (19).
E Regina Meyer, também em entrevista a Frúgoli, reconhece que o centro poderia ser um interessante bairro popular. Mas, segundo frisa, não deveria ser um bairro “de pobre”:
“Minha visão é que o Centro poderá ser um bairro popular, não de pobre, mas popular, extremamente interessante dentro da cidade. Acho que seria uma conquista você trazer para essas áreas, onde você tem a vantagem locacional dada pelo transporte, pessoas que dependem do transporte público” (20).
E vai além, ao explicar porque considera errônea a utilização do termo revitalização em vez de requalificação:
“Hoje o Centro é tão ou mais vital do que em outros momentos. Acontece que ele está apropriado por uma classe social diferente, e essa nova classe social que está aí não se apropriou por escolha, ela se apropriou porque aquele espaço se tornou um espaço residual dentro da cidade, e, como diz o Raymond Williams, os pobres ocupam as brechas deixadas, e aquilo foi uma brecha. Nos anos 80, o Centro se tornou um espaço, se consolidou uma grande brecha dentro da cidade. […] Sempre estou trabalhando dentro desse parâmetro, de que o Centro é fadadamente um bairro popular dentro da cidade de São Paulo” (21).
Se para Cunha Lima o centro deveria ser um reduto de funcionários públicos e bancários, com baixa densidade habitacional, podendo ter sua composição social alterada com simples mudanças no sistema de transporte, para Meyer o centro deveria pertencer à elite econômica, mas, devido à deficiência de políticas públicas foi tomado por “uma classe social diferente” e agora está “fadado” a ser um bairro popular. Na ótica de Meyer, os equipamentos culturais poderiam atrair novos frequentadores para região, e talvez até novos moradores, mas a transformação do perfil social do bairro seria um processo de longo prazo, e, só poderia ser concluído se novas brechas fossem abertas adequadamente, o que poderia ser facilitado por parceiros do setor imobiliário (22) e por políticas habitacionais centrífugas.
Com o enfraquecimento da AVC, com a morte de Mário Covas em 2001, com a venda do Bank Boston Brasil em 1999 e com a ida de Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central em 2003, aos poucos o termo Polo Luz foi caindo em desuso, ainda que as melhorias feitas nos patrimônios culturais da região continuassem a ser sentidas – entre 2002 e 2005, segundo dados compilados por Beatriz Kara José, cerca de um milhão de pessoas visitaram a Pinacoteca (23). No entanto, estes patrimônios se consolidaram como ilhas dentro de uma região degradada, e, mais uma vez, a burguesia e a classe média alta não se sentiram atraídas para frequentar, investir, abrir negócios e, muito menos, residir na região da Luz.
Considerações finais: dois projetos para uma terra sem povo
O relato histórico apresentado nas seções anteriores procurou reconstituir os pressupostos e a visão sobre de cidade de dois projetos de intervenção no bairro da Luz, uma área demandante de políticas públicas, localizada na região central do município de São Paulo. A fazer isso, propôs-se a apresentar uma visão crítica desses dois projetos, os quais como elemento comum tiveram o fato de atribuírem um papel-chave aos equipamentos de cultura como instrumentos de requalificação urbana.
Ambos os projetos conseguiram cumprir apenas muito parcialmente seus objetivos de revitalizar ou requalificar a área. O Luz Cultural, como visto, foi bem-sucedido em seu propósito de criar um roteiro turístico cultural, porém não conseguiu organizar o zoneamento nem recuperar, ainda que pontualmente, edifícios históricos. O Polo Luz, se de um lado potencializou, ainda que em parte, a vocação cultural do bairro, e conseguiu restaurar edificações, de outro não resolveu um objetivo chave na sua formação, relacionado ao destino da população local, sobretudo habitantes de cortiços e demais habitações precárias.
A este respeito, pudemos ver que o projeto Polo Luz, na década de 1990, manteve uma visão já embutida no Luz Cultural, da década de 1980, de que para revitalizar uma região degradada seria necessário modificar o perfil social de seus frequentadores e mesmo moradores. Os idealizadores do projeto defendiam que a construção de novos equipamentos culturais, e a reforma dos já existentes, seriam as ferramentas ideais para a atração de um novo público para a região. No entanto, ambos os projetos pareciam esquecer-se dos atuais moradores e usuários do bairro, afinal não apontam alternativas para estes. Como se o centro fosse uma terra sem povo.
A política de reurbanização por meio da valorização do patrimônio histórico e cultural mostrou-se ineficaz para o caso paulistano. Enquanto o poder público pensava em formas de atração de um novo “público” para o bairro da luz, relegando a segundo plano as necessidades ou demandas de seu “público” atual, – postura essa que seria mais tarde intensificada em outro projeto, o Nova Luz (24) – novos problemas começavam a somar-se à paisagem degradada da região, assustando e causando incômodo aos transeuntes e aos frequentadores dos equipamentos destinados à elite.
Isto indica que a Luz – seja a dos anos 1980, 1990 ou a atual – demanda políticas públicas urbanas mais abrangentes, que não desconsiderem sua população, e que promovam a integração entre diferentes formas de uso do solo – contribuindo para a contenção dos danos causados por um crescimento desordenado da cidade que não foi acompanhado pela expansão de serviços públicos, e ajudando o bairro a preservar o que ainda resta de sua memória.
notas
NA – Derivado do trabalho de conclusão do curso de graduação em Gestão de Políticas Públicas, do primeiro autor, elaborado em 2015 sob orientação do segundo, o presente artigo é uma republicação ligeiramente modificada do seguinte texto: FERNANDES, Marcelo Ricardo; JAYO, Martin. A cultura como instrumento de intervenção urbana: dois casos no bairro da Luz (São Paulo). Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas, Bebedouro, vol.4, n. 2, jul./dez. 2016.
1
Essas iniciativas são discutidas por FERNANDES, Marcelo Ricardo. Políticas urbanas na área da Luz: 40 anos de fracassos governamentais. Trabalho de conclusão de curso (bacharelado em Gestão de Políticas Públicas). São Paulo, EACH-USP, 2015; e também por FERNANDES, Marcelo Ricardo; JAYO, Martin. Renovação da Luz. Uma intervenção urbana que não saiu do papel. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 170.04, Vitruvius, fev. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/16.170/5943>.
2
KARA JOSÉ, Beatriz. Políticas culturais e negócios urbanos: a instrumentalização da cultura na revitalização do centro de São Paulo (1975-2000). São Paulo, Annablume, 2007.
3
Essa articulação foi facilitada pelo fato de que o prefeito, assim como os secretários de Estado, era nomeado pelo Governador do Estado – naquele momento, André Franco Montoro.
4
IZZO Jr., Alcino. Reflexões e propostas. In: MEYER, Regina Maria Prosperi (Org.). Pólo Luz: Sala São Paulo, cultura e urbanismo. São Paulo, Terceiro Nome, 2000.
5
KARA JOSÉ, Beatriz. Op. cit.
6
Idem, ibidem.
7
FERREIRA, Sílvio. Projeto pode revitalizar o bairro da Luz. Folha de São Paulo, São Paulo, Primeiro Caderno, 8 out. 1985, p. 22.
8
ABRAHÃO, Sérgio Espaço Público: do urbano ao político. São Paulo, Annablume, 2008.
9
AVC. Quem somos. São Paulo, Associação Viva o Centro <www.vivaocentro.org.br/quem-somos/a-associa%C3%A7%C3%A3o-viva-o-centro.aspx>. Consulta em 03/03/2016.
10
AVC. São Paulo Centro: uma nova abordagem. São Paulo, Associação Viva o Centro, 1996 <http://www.vivaocentro.org.br/media/369758/s_o_paulo_centro_-_uma_nova_abordagem.pdf>.
11
Idem, ibidem, p. 9.
12
Idem, ibidem.
13
TOZI, Desirée Ramos. Primavera de estações: o programa Monumenta e as políticas públicas de preservação do patrimônio cultural na região do bairro da Luz/São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 2007.
14
Idem, ibidem.
15
KARA JOSÉ, Beatriz. Op. cit.
16
DUARTE JR., Romeu. Programa Monumenta: uma experiência em preservação urbana no Brasil. Revista CPC, São Paulo, n. 10, mai./out. 2010.
17
OLIVEIRA, Carolina Fidalgo de. Do tombamento às reabilitações urbanas: um estudo sobre a preservação no centro histórico de São Paulo (1970-2007). Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2009.
18
TOZI, Desirée Ramos. Op. cit.
19
FRÚGOLI JR., Heitor. O projeto da Associação Viva o Centro e as classes populares da área central de São Paulo. Anais do XXII Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS, Caxambu, 1998.
20
Idem, ibidem.
21
Idem, ibidem.
22
Embora a AVC possuísse maior participação do capital financeiro, suas Ações Locais (AL), espécie de associações ou iniciativas destinadas à preservação de apenas uma rua ou quarteirão do centro, costumavam ser dominadas por especuladores imobiliários, conforme relata FRÚGOLI JR., Heitor. Op. cit.
23
KARA JOSÉ, Beatriz. Op. cit.
24
FERNANDES, Marcelo Ricardo. Op. cit.
sobre os autores
Marcelo Ricardo Fernandes é bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela EACH USP.
Martin Jayo é professor da EACH-USP, atuando nos cursos de bacharelado e mestrado em Gestão de Políticas Públicas.