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português
O artigo faz uma análise do movimento Salve o Casarão da Várzea, na cidade do Recife, cujo objetivo é restaurar um chalé de estilo eclético que está incluído como Imóvel Especial de Preservação para que o mesmo seja um dispositivo social da comunidade.
english
The article is an analysis of the movement Salve o Casarão da Várzea, in the city of Recife, whose goal is to restore a cottage eclectic style, which is included as Preservation Special property for it to be a community social device.
español
El artículo es un análisis del movimiento Salve o Casarão da Várzea, en la ciudad de Recife, cuyo objetivo es restaurar una casa de estilo ecléctico, que se incluye como Preservación propiedad especial para que sea un dispositivo social de la comunidad.
SILVA, Antonio W. Fernandes da. Salve o Casarão da Várzea. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 198.05, Vitruvius, jan. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.198/6389>.
Sobre o Casarão da Várzea
O Casarão da Várzea, como é mais conhecido, está localizado no nº 130 da Rua Azeredo Coutinho, no tradicional bairro da Várzea, zona Oeste do Recife, Estado de Pernambuco. Indicado como Imóvel de Preservação e incluído no Setor de Preservação Ambiental (SPA), da Zona Especial de Preservação Histórico-Cultural da Praça da Várzea (ZEPH-07), conforme o Plano Diretor do Município do Recife (Lei nº 17.511/2008). Foi inaugurado em 27 de maio de 1905 para fins residenciais com o nome de Villa Therezinha, e a partir de 1944, transformou-se no primeiro hospital odontológico da América Latina, denominado Hospital Magitot, no qual, segundo Barbosa (1), oferecia serviços de clínica dentária especializada, cirurgia bucomaxilofacial, além de atendimentos para doenças da boca. Com a morte do seu fundador e sem apoio institucional ou político, o Hospital encerrou suas atividades no final da década de 1960, sendo que, no anexo construído ao lado do casarão, funcionou a clínica odontológica para atendimento à população até o final da década de 1980.
Segundo o jornal Diário de Pernambuco, publicado em 01 de agosto de 2015, baseado em arquivos coletados na Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC/PCR) e arquivos da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), o hospital realizava um trabalho social, mantido por doações e através de trabalho voluntário realizado por profissionais, alunos e residentes. De acordo com Marcos Ferreira da Silva Sobrinho (2), em 1986, o local abrigou o comitê da campanha do então candidato Miguel Arraes para governador do Estado. A construção foi incorporada, nos anos 1990, a uma lista elaborada para classificação como Imóvel Especial de Preservação (IEP), que não logrou êxito. Ela só foi inserida a esse amparo em 21 de maio de 2015. Em 2008, através de um convênio entre a Prefeitura da cidade do Recife e a Universidade Federal de Pernambuco, elaborou-se uma proposta de recuperação e reutilização para o edifício, que também não prosperou. Há evidências de que movimentos em prol do casarão iniciaram suas ações há pelo menos quinze anos, lutando contra interrupções ao longo de suas trajetórias. A partir de março de 2016, o movimento denominado: Salve o Casarão da Várzea, o qual será objeto deste artigo, vem atuando no sentido de dar continuidade à luta pelo salvamento deste patrimônio arquitetônico e urbanístico.
O casarão, de acordo com DPPC/PCR (2015) e através de referências bibliográficas sobre o Quadro da arquitetura no Brasil, de Nestor Goulart Reis Filho (3), está enquadrado como sendo de estilo eclético (chalé romântico de influência inglesa), sendo considerado, conforme a DPPC/PCR (2015), o único exemplar com dois pavimentos desse estilo, na cidade do Recife, sendo um pavimento térreo e o outro superior. Possui abertura oval na fachada, muros baixos com gradil, afrescos com motivo floral nas paredes internas, guarda corpo em ferro, com motivos fitomorfos. Nas varandas, possui porão alto com grade de chumbo, também com motivos fitomorfos, pés direitos altos, e o edifício é composto por arcos plenos e olhal. O terreno onde está localizado o imóvel ocupa a frente da quadra de dimensões bastante generosas, faceando três ruas, sendo a principal delas a que margeia a Praça da Várzea, principal ponto de urbanidade do bairro. O casarão ocupa apenas uma parte do terreno, cerca de 20 por cento, locado na porção sudoeste que dá visão para a praça, interferindo o mínimo possível na área do terreno, mais especificamente na arborização, que é bastante densa, contendo árvores frutíferas, nativas e palmeiras. Além da locação descentralizada, a verticalização da edificação também contribuiu para que o jardim se tornasse mais amplo e denso.
O abandono do casarão
Antes de falar do movimento Salve o Casarão da Várzea, é importante ressaltar o que motivou parte da comunidade a se articular em torno da causa preservacionista desse patrimônio arquitetônico. A causa principal foi o abandono em que se encontrava o casarão. O prédio não foi abandonado de um dia para o outro, o descaso foi crescendo devido a uma série de eventos que se sucederam ao longo do tempo. Primeiro, os proprietários, segundo a população local, além de não dar uma função social ao imóvel, conforme definido na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto das Cidades de 2001, não pagavam o Imposto Territorial Urbano (IPTU) ao município, levando ao processo de desapropriação do bem pela Prefeitura Municipal.
A prefeitura, por sua vez, não tomou as providências devidas para que a situação de abandono não se tornasse mais grave, com isso, o imóvel ficou sem os cuidados, chegando, tragicamente, a ser incendiado em 1992, segundo Virgínia Barbosa (4). O incêndio, conforme visita ao local, comprometeu seriamente as estruturas do prédio, queimando uma boa parte das vigas de madeira, a cobertura, as esquadrias e o piso interno de madeira. Depois desse atentado ao patrimônio arquitetônico, o casarão foi ocupado por uma família, através da associação de moradores, durante aproximadamente vinte e um anos, com a intenção de resolver seu problema de moradia e ao mesmo tempo cuidar do local, conforme depoimento de um dos ocupantes. A família não habitava as dependências do casarão, visto que se encontravam bastante deterioradas, mas ocupava o anexo dentro do terreno, ao lado do imóvel, onde funcionava a clínica odontológica, construída depois, não fazendo parte, dessa maneira, do acervo arquitetônico. A família foi retirada pela prefeitura em 2013, quando o imóvel foi desapropriado e, mais uma vez, o poder público municipal não tratou de preservá-lo, aprofundando-se mais o estado de abandono. Esses eventos foram ocorrendo em sequência ou concomitantemente, como invasões das calçadas pelo comércio informal, formando-se uma feira, a qual a comunidade chama de feirinha, que ao longo dos anos vem se deslocando pelo bairro em busca de um local definitivo para se instalar.
As pessoas colocam lixo no quintal e nos espaços laterais da edificação, além do mato, bromélias e outras plantas, como ficos, invadem o que restou. O abandono pode ser verificado desde o portão, faltam madeiras nas janelas, assim como no teto e vários focos de aedes aegypti em potencial eram avistados por quem entrava. A negligência é também um problema de saúde pública.
Em 21 de setembro de 2016, aproveitando-se do período das eleições municipais, a Prefeitura interditou o local, colocou uma placa de obra apenas da feira livre, sem envolver a restauração do casarão, nem a necessidade de um mercado público, informando o prazo de cinco meses para a sua conclusão e o valor (R$ 1.332.772,94). Três dias antes, havia circulado nas redes sociais imagens da planta baixa da feira livre, causando indignação nas pessoas, visto que não houve nenhuma discussão a respeito do projeto. O Movimento Salve o Casarão da Várzea, na sua página do Facebook, em 20 de setembro de 2016, divulgou uma nota repudiando o que chamou de oportunismo por parte da Prefeitura, por não oferecer chance para discutir com toda a população do bairro um espaço que a represente, que contemple os mais variados grupos culturais, com espaço de trabalho, lazer, cultura, debates, oficinas e que traga na sua essência a memória e a resistência da comunidade.
Preocupado com essa intervenção repentina da Prefeitura, o movimento convocou uma reunião para o dia 26 do mesmo mês, aberta à população local no intuito de discutir tal conjuntura. Na reunião, formaram-se comissões para tomar conhecimento junto aos órgãos competentes, como Prefeitura e Ministério Público, do andamento do processo da obra.
Surpreendentemente, no dia 28 de setembro, circulou nas redes sociais a informação de que a caixa d’água, que integra o conjunto arquitetônico do casarão, estava sendo demolida, dando a entender que o projeto excluía ou não a reconhecia como integrante do bem protegido. O movimento imediatamente chamou a população local para impedir a continuação da demolição. No mesmo dia, houve uma reunião no espaço do casarão, onde foram tomadas duas decisões. A primeira seria a de ocupar o espaço permanentemente até a questão ser totalmente regularizada. A segunda decisão foi a formação de uma comissão para ir ao Ministério Público Estadual para tentar suspender a obra. No final da tarde, foi publicada uma cópia do documento na página do Facebook do Movimento Salve o Casarão da Várzea, como também na mídia local, recomendando a suspensão da obra pelo MPE até que a situação seja regularizada.
No dia 30 de setembro, a Prefeitura acatou a recomendação, suspendendo os trabalhos da obra. Enquanto isso, a ocupação continua firme até que seja aberto um canal para dialogar sobre propostas arquitetônicas.
Movimento Salve o Casarão da Várzea
O movimento Salve o Casarão da Várzea vem atuando desde aproximadamente o mês de fevereiro de 2016, mas as atividades eram restritas inicialmente a um grupo pequeno de pessoas, que aos poucos foram dando corpo ao movimento através de pequenas ações, de reuniões semanais, chegando ao ponto de, em março de 2016, esse grupo pequeno convocar uma reunião geral aberta a toda comunidade da Várzea, dando início de fato ao movimento, conforme atas das reuniões e a página do grupo no site da rede social Facebook (5), que foi criada para divulgação das suas atividades e facilitar a comunicação.
A situação de abandono, relatada anteriormente, em que se encontra a edificação, incomoda bastante a população do bairro, e foi o que desencadeou a criação do movimento. Este, de acordo com vídeos gravados e publicados na rede social Facebook (6), no qual integrantes se apresentam e chamam a população para também participar do movimento, está ligado a outros movimentos sociais. Chama a atenção, por exemplo, em um dos primeiros vídeos lançados na rede social, o fato de um integrante do movimento estar vestido com uma camiseta de um movimento social de expressão nacional denominado: Levante Popular da Juventude. Como também pode-se observar a participação de membros do Levante nas atividades do casarão, comprovando a existência da relação ou apoio entre movimentos sociais em nível local e nacional, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.
No entanto, existe outra demanda, a qual o movimento também incorporou, que é uma reivindicação antiga da população a respeito do mercado para feira no bairro, que sempre, conforme relatos e fotografias, funcionou de forma improvisada, ocupando irregularmente áreas públicas, como acontece atualmente na praça e nas calçadas do casarão. Então são duas necessidades que se conjugam: a restauração do patrimônio arquitetônico do casarão e o atendimento da necessidade de um espaço para feira. Conforme os vídeos e também através de conversas com os integrantes do movimento, existe um consenso em relação ao atendimento das duas demandas, mas apenas no plano da ideia, visto que não houve nenhuma discussão mais aprofundada, nem pesquisa por parte do movimento, ou quaisquer entidades representativas, e a Prefeitura, no sentido de materializá-la.
O primeiro evento convocado pelo movimento aconteceu no dia 02 de abril de 2016 na praça da Várzea, onde foram realizadas várias atividades, como oficinas e uma visita ao casarão, ao lado da praça, configurando-se como a primeira aproximação ao espaço, haja vista que até aquele momento, a vegetação e o lixo impediam a realização de qualquer atividade, a não ser a limpeza do local. Isso ocorreu no primeiro mutirão propriamente dito convocado para o dia 09 de abril de 2016, denominado mutirão da limpeza, alertando aos participantes que fossem com pás, enxadas ou qualquer ferramenta, e também que fossem protegidos para tais atividades. Mas devido à publicação e repercussão dessa atividade, a Prefeitura, através da Empresa de Limpeza Urbana, se antecipou ao mutirão e removeu uma boa parte do lixo, além de podar de forma aleatória e predatória as árvores do local. Dessa forma, o mutirão foi realizado, conforme programado, entretanto, tentando dar continuidade ao que a Prefeitura iniciou no dia anterior, procurando contornar os danos causados. No segundo mutirão, no dia 16 de abril, a missão de continuar a limpeza do terreno permaneceu, mas naquele momento já incorporavam funções de ocupação através de atividades culturais, como a instalação de uma rádio, denominada Rádio Magitot, em homenagem ao hospital Magitot, que funcionou no local, conforme citado anteriormente. A ideia é, além da ocupação do espaço, aumentar a comunicação entre o movimento e a população do bairro. No dia 07 de maio, durante o terceiro mutirão, a rádio Magitot entrou no ar com a sintonia FM 88.1, quando o comunicador, em cortejo pelas ruas do bairro, anunciou que haveria um debate sobre a comunicação livre e sobre a luta pela democracia.
Esses primeiros mutirões repercutiram na mídia local, levando o Jornal do Comércio (7) a publicar uma matéria no dia 08 de julho de 2016 sobre as ações do movimento e sobre a situação de abandono do imóvel. Na matéria do jornal, a Prefeitura se pronunciou através da assessoria de imprensa, em resposta ao jornal e a um requerimento anterior do movimento sobre a licitação das obras da feira e da restauração do casarão. Informou que tomou posse da área apenas em 2013, e que o processo de licitação do pátio da feira para atender à necessidade dos feirantes, que ocupam as calçadas, e da praça, já estava concluído, mas que não existiam recursos financeiros para a execução do projeto naquele momento, e que a previsão era para o segundo semestre de 2016, enquanto a restauração do chalé, segundo a Prefeitura, estava entregue ao Gabinete de Projetos Especiais e à Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural. Segundo ainda a matéria, a Prefeitura informou, em resposta ao requerimento do movimento, que o pátio da feira fora realmente licitado. Inclusive, informou também que o pátio teria cinquenta e cinco (55) boxes, e o valor da licitação: 1,3 milhão de reais. Esta informação do valor da obra e sobre a restauração do chalé também foi confirmada, anteriormente, pelo Jornal Diário de Pernambuco do dia 01 de agosto de 2015.
Pelo que consta na página do grupo no Facebook, houve oficialmente nove mutirões desde o mês de abril até agosto de 2016. Os mutirões foram se sucedendo, geralmente aos sábados, com atividades novas, entretanto, dando continuidade às ações anteriores, como limpeza do terreno, cuidado com a horta comunitária; ou seja, tentando manter o local habitável durante todo o tempo, inserindo na área do casarão as atividades do dia-a-dia do bairro. O terreno, como foi citado, tem um potencial paisagístico bastante interessante, configurando-se em uma tipologia muito utilizada no bairro da várzea na época da construção do imóvel, conforme se verifica no entorno e ao caminhar pelas ruas do bairro, quando os terrenos eram de grandes dimensões e arborizados. Além de manter o terreno sempre limpo, os mutirões foram criando espaços de convivência, seja embaixo das árvores ou aproveitando o piso do antigo consultório odontológico para usos diversos, como festas, rodas de maracatu, capoeira e eventos culturais.
No dia 10 de agosto, o Coletivo Arquitetura, Urbanismo e Sociedade, movimento vinculado ao centro acadêmico do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, em parceria com o Movimento Salve o Casarão da Várzea, realizaram oficinas no casarão, como oficina de agroecologia, a fim de incrementar a experiência de agricultura e horta urbana; e de mobiliário, no intuito de criar espaços de convivência nos dias de ocupação e mutirão. Na oficina, foram confeccionados móveis de madeira para compor os ambientes projetados pelos participantes.
Foi convocada uma plenária geral para o dia 06 de outubro com a pauta única: Qual é o projeto de casarão que queremos? Foi o primeiro encontro para abordar o projeto arquitetônico, entretanto, durante a ocupação, serão realizadas oficinas pelo Coletivo Arquitetura, Urbanismo e Sociedade, com o intuito de elaborar uma proposta, que atenda às necessidades dos manifestantes, para ser defendida quando o diálogo entre a população local e a prefeitura for estabelecido.
Uma crítica ao movimento
Deve-se destacar o caráter moderno e atual do Movimento Salve o Casarão da Várzea, haja vista que está sediado na internet e para além da rede, como é o caso também do grupo Direitos Urbanos do Recife. Os movimentos contemporâneos, segundo Manuel Castells (8), estão conectados em rede no ciberespaço, transcendendo o espaço urbano, multiplicando-se por contágio, produzindo um mundo ligado à rede sem fio, cuja propagação é muito rápida, viral, utilizando-se de imagens e ideias. Castells (9) descreve o comportamento dos grupos sociais na internet, apontando para a sua peculiaridade, em que a autonomia existente vai muito além do controle de governos e empresas, os quais haviam monopolizado ao longo da história os canais de comunicação para se perpetuar no poder.
Como não poderia deixar de ser, o movimento, por estar no bairro da Várzea, um bairro de tradição cultural: coco, maracatu, ciranda, e também pela proximidade à Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, utiliza-se da festa como uma prática revolucionária, conforme afirmou Antonio Sabino do Nascimento (10), como possibilidade de contaminar de não cotidianidade o cotidiano, quando a festa não deixa de estar presente totalmente, ou seja, a festa permanece nos encontros, nos mutirões do casarão, no carnaval e nas atividades políticas de uma maneira geral. Isso acontece, conforme Henri Lefebvre (11), ao afirmar que a revolução, tanto violenta ou não, assume nova perspectiva, rompendo com o cotidiano, restituindo a festa, constituindo-se na possibilidade de revolução (virtual). No Recife e mais precisamente na Várzea, a festa está presente também nesse tipo de ativismo, nesse tipo de mobilização, onde o urbano se caracteriza como espaço primeiro dos encontros, de ajuntamentos (festas) e de reinvindicações pelo direito à cidade.
Conforme foi dito, o movimento está articulado com outros movimentos sociais, como é o caso do Levante Popular da Juventude. Isto é um ponto positivo, de acordo com David Harvey (12), a esta altura da história, a luta tem que ser global, predominantemente contrária ao capital financeiro, porque é esta a escala em que o processo de urbanização está envolvido. Para Harvey (13), a luta política de organizar tal confronto não é nada fácil, se não assustadora. Mas ele afirma que as oportunidades são múltiplas, visto que as crises irrompem repetidamente em torno da urbanização, tanto local como global, sendo a metrópole o ponto de colisão massiva. Na opinião de Harvey (14), o caminho é unificar as lutas fazendo uso do direito à cidade, seja como ideal político ou como lema operacional. O autor sustenta ainda que se deve democratizar o direito à cidade e a formação de um vasto movimento social no sentido de fortalecer seu desígnio, dando força à pretensão dos despossuídos de tomar para si o controle que, há muito, lhes tem sido negado. Lefevbre (15) comenta que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo deste termo.
O movimento Salve o Casarão da Várzea, a princípio, já realizou um grande feito, que foi chamar a atenção de parte da sociedade e ocupar parcialmente o espaço que estava abandonado, dando-lhe função social. Mesmo não sendo da forma que se almejava, ou seja, ocupar com o espaço totalmente restaurado, mas se apropriar da área do terreno do casarão foi extremamente importante, tanto do ponto de vista material, como simbólico, conforme Lefebvre (16), visto que demonstra uma preocupação com o patrimônio arquitetônico de uma maneira geral, incentivando a cultura preservacionista. Trata-se, portanto, segundo o autor, de uma necessidade simbólica, criadora, através da qual vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual pode emergir a necessidade de cidade e da vida urbana e que só se exprime livremente nas perspectivas que tentam abrir os horizontes.
Na tentativa de entender a relação do movimento com os moradores da Várzea, e mais especificamente os comerciantes que ocupam a praça e as calçadas do casarão, foram realizadas entrevistas, antes da tentativa de demolição da caixa d’água, contendo questões para detectar o grau de conhecimento a respeito do movimento, a aceitação e o porquê da ausência em atividades que buscam uma coisa boa para a própria comunidade. A maioria conhece ou já ouviu falar de alguma forma a respeito do movimento e considera positiva a sua existência, considerando que, de qualquer forma, algo de bom ficará, mas apesar disso, não participam porque se sentem ainda distantes dos participantes ou não tem tempo para estar presente nos eventos. O resultado das entrevistas é preocupante, porque pessoas diretamente envolvidas com a questão não estão participando das discussões promovidas, demonstrando, até certo ponto, uma certa fragilidade. Na opinião de Lefevbre (17), é possível entender esse tipo de comportamento considerando que o movimento carrega uma certa dose de utopia, mas o autor interroga: Atualmente, quem não é utópico? Lefevbre (18) considera esse tipo de situação uma utopia experimental, em que esta pode surpreender e que se deve estudar na prática suas consequências e implicações. É importante, ainda segundo o autor, utilizar instrumentos intelectuais disponíveis, dando um pouco de atenção ao sistema de significações, visto que cada grupo de indivíduos possui o seu próprio sistema de significações. O político possui o seu sistema, o movimento Salve o Casarão o seu, a prefeitura e suas secretarias também, e o humilde habitante ou o comerciante tem seu próprio sistema de significações. Vale salientar que a tentativa de demolição da caixa d’água aproximou bastante o movimento e a população local, demonstrando que a ideia de preservação é de consenso, unindo a população local.
Ao observar o relacionamento desses personagens, percebem-se algumas questões que podem exemplificar ou esclarecer possíveis problemas que dificultam o andamento do processo. Por exemplo, na página do grupo na rede social Facebook (19), do dia 11 de maio de 2016, foi publicado um comunicado do movimento, colocando em dia uma demanda do grupo em relação à Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC). A diretoria respondeu a dúvida sobre a situação patrimonial do edifício, informou procedimentos, como encaminhamentos de recomendações para o projeto de reforma do imóvel, e também o envio de solicitação à Secretaria de Defesa Civil (SEDEC), sobre vistoria e laudo técnico das condições estruturais da edificação, mas as respostas não foram dadas totalmente. Percebe-se que o diálogo não é fácil. Isso tudo comprova a falha de comunicação e entendimento entre as partes, principalmente em relação à Prefeitura, sobre a melhor maneira de proceder diante de uma situação complicada, como o atendimento de duas necessidades simultâneas: a restauração do casarão e a feira. Esse tipo de postura por parte dos órgãos da Prefeitura, ao elaborar projetos, não a partir de significações percebidas e vividas por aqueles que habitam, mas a partir do fato de habitar, de fazer feira, por eles interpretados, caracteriza-se em um sistema fechado sobre si mesmo, a se impor, a eludir qualquer crítica. Segundo Rosália Vasconcelos (20), em matéria publicada no jornal Diário de Pernambuco, o novo uso do casarão é um tema polêmico, sendo unânime para os moradores apenas a necessidade de recuperação do chalé que é patrimônio histórico e cultural para a cidade, entretanto, os usos, sobre os quais tem se falado – transformação do espaço em mercado público – são temas polêmicos para a população, como também para arquitetos e urbanistas.
É muito importante diante de uma situação complexa, como esta do casarão, a utilização de procedimentos democráticos, fórum de discussão para avaliar e escolher o melhor caminho. Lefebvre (21) é favorável às práticas espaciais a partir de um espaço conflitivo e dialético, objetivando a transformação plena da sociedade urbana. O autor concorda que a questão urbana não se trata somente através do exercício de pensamento, porém fazendo uso da prática social. Conforme Antonio Sabino do Nascimento (22), a cidade do Recife experimenta atividades de educação para a práxis urbana nos atos de ocupação do espaço público, por meio de movimentos políticos e culturais na área do Cais Estelita e também na região central da cidade. Para ele, as atividades desse tipo provocam uma racionalidade peculiar e principalmente uma abertura, citando Lefebvre (23), abrindo possibilidades e alternativas para o uso dos espaços públicos.
Segundo Nascimento (24), diante do exposto, pode-se concluir que o movimento Salve o Casarão da Várzea, da mesma forma que acontece com o movimento Ocupe Estelita, ambos do Recife, se enquadram mais como uma ideia de utopia urbana explicitada por Lefebvre (25), visto que se esforçam em ultrapassar o institucional, utilizando-se de um problema real e do possível-impossível.
notas
1
BARBOSA, Virgínia. Hospital Magitot. Recife, Biblioteca Blanche Knopf, Fundação Joaquim Nabuco, 2013 <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=971%3Ahospital-magitot&catid=43%3Aletra-h&Itemid=120>.
2
SOBRINHO, Marcos Ferreira da Silva. Várzea: lembranças de um tempo que se foi. Recife, Bagaço, 2013.
3
REIS FILHO ,Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. Coleção Debates. São Paulo, Perspectiva, 1976.
4
BARBOSA, Virgínia. Op. cit.
5
Salve o Casarão da Várzea. Página do Facebook <www.facebook.com/Salve-o-Casarão-da-Várzea-1703872146549163/?fref=ts>.
6
Idem, ibidem.
7
ALVES, Cleide. Chalé da Várzea: moradores fazem evento e cobram obras de restauração. Jornal do Comércio, Recife, 08 jul. 2016. <http://m.jc.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2016/07/08/chale-da-varzea-moradores-fazem-evento-e-cobram-obra-de-restauracao-243450.php>.
8
CASTELLS. Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.
9
Idem, ibidem.
10
NASCIMENTO, Antonio Sabino do. Recife, a noiva da revolução: entre os circuitos espaciais da inclusão/exclusão e a resistência urbana contemporânea. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, n. 3, v. 17, 2015 <http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/article/view/5153>.
11
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
12
HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, n. 53, 2008.
13
Idem, ibidem.
14
Idem, ibidem.
15
Idem, ibidem.
16
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo, Centauro, 2004.
17
Idem, ibidem.
18
Idem, ibidem.
19
Salve o Casarão da Várzea. Op. cit.
20
VASCONCELOS, Rosália. Chalé de 110 anos será restaurado na Várzea. Diário de Pernambuco, Recife, 01 ago. 2015 <www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2015/08/01/interna_vidaurbana,589899/chale-de-110-anos-sera-restaurado-na-varzea.shtml>.
21
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade (op. cit.).
22
NASCIMENTO, Antonio Sabino do. Op. cit.
23
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade (op. cit.).
24
NASCIMENTO, Antonio Sabino do. Op. cit.
25
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade (op. cit.).
sobre o autor
Antonio W. Fernandes da Silva é arquiteto e urbanista (UFPB, 1993), mestre em Engenharia Urbana/PPGEU/UFPB (2005), doutorando em Desenvolvimento Urbano MDU/UFPE (2014) e professor Adjunto II do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Tocantins/UFT.