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português
Neste artigo apresento as razões pelas quais considero o antigo Estádio da Fonte Nova e os Arcos da Ladeira da Conceição edificações representativas da paisagem soteropolitana. Para tanto, recorro à noção de lugar, em sua acepção fenomenológica.
english
In this article, I present the reasons why I consider the former Fonte Nova Stadium and the arches of Ladeira da Conceição representative of the landscape of Salvador, Bahia. Therefore, I employ the notion of place, in its phenomenological meaning.
español
En este artículo presento las razones por las que considero el antiguo Estadio de la Fuente Nova y los Arcos de la Ladera de la Conceição edificaciones representativas del paisaje de Salvador, Bahia. Uso la noción de lugar, en su acepción fenomenológica.
SALES JÚNIOR, Dário Ribeiro de. A arquitetura soteropolitana e o espírito do lugar. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 211.01, Vitruvius, fev. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.211/6870>.
No início deste ano, o jornal Correio (1) consultou as opiniões de nove arquitetos baianos sobre quais seriam os prédios mais representativos de Salvador. Posteriormente, os leitores do jornal foram solicitados a escolher dentre os nove prédios selecionados pelos arquitetos aquele que “tem a cara de Salvador”. Creio que todos os apaixonados por arquitetura se puseram a refletir sobre aquelas escolhas e a elaborar suas próprias listas mentais. Comigo não foi diferente. Diante da constatação de que nenhum daqueles prédios, por diversas razões, me parecia suficientemente representativo, comecei a elencar critérios para elaborar a minha própria relação. Faço questão de ressaltar que não me cabe questionar as escolhas dos arquitetos que contribuíram para a elaboração da lista anterior, logo não é este o meu propósito aqui. O que proponho são critérios alternativos para se obter uma classificação. Sem fazer qualquer tipo de apelo a uma suposta “essência” do povo soteropolitano, minha questão é saber quais são as edificações soteropolitanas que compõem de modo significativo aquilo que chamamos de genius loci ou “espírito do lugar”.
Ao contrário do que o termo espírito sugere, ao falarmos do “espírito do lugar” estamos nos referindo sobretudo às propriedades concretas dos ambientes. Os lugares são constituídos por entes caracterizadas por formas, matizes, sons, sabores, texturas, odores, graus distintos de rigidez etc. Interrompa brevemente a leitura e observe o lugar onde você se encontra. Se você me lê, por exemplo, no seu local de trabalho ou dentro do ônibus, é bem provável que a “atmosfera” desses locais difira daquela do seu quarto ou da praça próxima ao local onde você mora. Conforme nos ensina o arquiteto norueguês Christian Norberg-Schulz (2), são as relações entre os entes que compõem os lugares que conferem aos mesmos sua “qualidade ambiental”, por conseguinte, o lugar é irredutível a qualquer um dos elementos que o compõe. O arquiteto norueguês também nos lembra que o caráter de um lugar varia em função do tempo, logo das condições meteorológicas e de luminosidade. É impossível falar de um lugar a partir de um único elemento, assim como é impossível falar de Salvador – ou de qualquer outra cidade – como um único lugar, o que torna o exercício de escolher apenas um prédio que lhe represente um tanto arbitrário. Além disso, uma vez que os lugares são constituídos pelas relações de uma multiplicidade de elementos e nenhum destes elementos é a priori mais importante que os demais, faz sentido eleger uma única edificação que o “represente”? Creio que sim e irei argumentar neste sentido. Todavia, é importante esclarecer que o faço a partir do ponto de vista de alguém que está interessado em um certo tipo de construção paradigmática que denominamos arquitetura. É provável que para alguém com objetivos distintos as escolhas fossem outras.
Assim, escolhi algumas edificações que, a meu ver, em conjunto com os demais elementos do seu entorno compõem, em um dos casos, compunha, o caráter de dois lugares bastante específicos de Salvador. As minhas escolhas foram o antigo Estádio da Fonte Nova, solapado pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas” e os casarões dos Arcos da Ladeira da Conceição, que resistem a destino semelhante. De acordo com Norberg-Schulz, ao analisarmos de que modo uma construção compõe o “espírito do lugar”, devemos observar o modo como ela foi implantada e a composição de suas fachadas, elementos fundamentais na determinação do caráter do entorno. Em sua própria expressão, de inspiração heideggeriana, “temos de examinar como ela repousa sobre o solo e como se ergue para o céu”.
Deve ser muito difícil para os que nasceram após a década de 1950 imaginar a região do Dique do Tororó sem o Estádio da Fonte Nova. O modo irretocável como a edificação repousava sobre o solo sugeria que a própria encosta do bairro de Nazaré já insinuava ao arquiteto que ali deveriam ser erigidas arquibancadas. As arquibancadas de concreto eram os principais elementos que constituíam a fronteira entre interior e exterior. Uma vez que os assentos não circundavam completamente o perímetro do estádio, em certos setores era possível entrever as águas do Dique do Tororó. O espírito do lugar se modificava completamente nos dias de jogos, como bem devem saber os moradores da vizinhança. O estádio e os entes do seu entorno estavam tão imbricados em suas existências que, a meu ver, era impossível imaginá-los em qualquer outro lugar. O estádio foi concebido em 1942 pelo arquiteto baiano Diógenes Rebouças como parte de um projeto mais amplo denominado Praça de Esportes da Bahia. Em 2010, após anos de negligência com a manutenção da sua estrutura e um acidente que vitimou sete pessoas, a edificação foi demolida para dar lugar a uma das arenas da Copa do Mundo de 2014. É bem verdade que o novo estádio reproduz características significativas do anterior e que, a esta altura, é impossível dissociá-lo daquele lugar. A minha opção pelo projeto de Rebouças também se explica pelo outro sentido que se pode atribuir à expressão “a cara de Salvador”. O desleixo com seu próprio patrimônio é também “a cara” de Salvador. Neste sentido, o antigo Estádio da Fonte Nova ou mesmo o Centro de Convenções da Bahia são extremamente representativos.
O geógrafo baiano Milton Santos (3) descreveu de modo magistral a atmosfera do Centro Antigo de Salvador. A expressão “mosaico dos séculos”, utilizada por ele para classificar a diversidade de traçados e construções da região, é verdadeiramente lapidar. A impressão de se estar percorrendo temporalidades distintas é exatamente a que se tem ao caminhar na Ladeira da Conceição da Praia e observar, ao longe, a Baía de Todos os Santos, o Forte São Marcelo, os edifícios modernos do Comércio, as torres da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e o Elevador Lacerda, apenas para citar alguns elementos da paisagem. De um lado da larga rua retilínea há um emaranhado de fios das redes de comunicação e eletricidade, do outro, há imensos arcos erguidos em pedra no século 19 e abaixo deles vários casarões que vão aumentando de tamanho à medida em que se desce a ladeira, no interior dos casarões artífices exercem as profissões que aprenderam ao longo de gerações.
Atualmente, os trabalhadores da Ladeira da Conceição estão envolvidos em um imbróglio com os poderes públicos municipal e federal. Circula há pelo menos dois anos na imprensa baiana (4) a notícia de que o Iphan possui interesse em reformar os casarões dos Arcos da Ladeira da Conceição. Em 2015, algumas imagens do projeto do arquiteto cubano Yoanny Rodríguez Calvo para a região, orçado em R$ 3,5 milhões, foram apresentadas à imprensa. No entanto, o projeto nunca foi executado. No âmbito municipal, a lei que institui o Programa Revitalizar, decretada pela Câmara Municipal e sancionado pelo Prefeito ACM Neto em 2017, obriga os proprietários dos imóveis a ocupá-los e reformá-los em um prazo máximo de cinco anos, sob pena de aplicação do IPTU Progressivo no Tempo e posterior arrecadação do imóvel pelo Município. A lei concede diversos benefícios fiscais para as obras de edificação, reparo, restauro ou reforma dos imóveis do Centro Histórico de Salvador tombado pelo Iphan desde 1984. Contudo, cabe perguntar qual destino será dado aos atuais moradores do Centro Histórico, caso os proprietários, que muitas vezes não coincidem com os ocupantes dos imóveis, não tenham interesse ou grana para realizar tais obras? Há o justificado receio dos moradores de que assim como em ocasiões anteriores, o projeto de “revitalização” resulte na expulsão dos pretos e pobres que ali residem para as periferias da cidade.
É certo que os lugares constituem nosso solo existencial. As pessoas que residem sob os Arcos da Ladeira da Conceição há gerações estabeleceram relações com as propriedades concretas daquele ambiente que contribuíram tanto para estabelecer o “espírito” do lugar quanto o que elas mesmas são. A meu ver, isso não apenas é uma consideração importante ao se projetar qualquer intervenção na dinâmica do lugar, mas também faz dos casarões marcas indeléveis em uma das muitas caras de Salvador.
notas
1
LIMA, Fernanda; FIGUEIREDO, Kelven. Escolha o prédio que tem a cara de Salvador. Dez prédios foram listados na votação que terminará na próxima sexta-feira. Correio, Salvador, 03 jan. 2018 <www.correio24horas.com.br/noticia/nid/escolha-o-predio-que-tem-a-cara-de-salvador>.
2
NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In: NESBITT, Katte (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). 2ª edição. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 443-461.
3
SANTOS, Milton. O centro da cidade do Salvador: estudo de geografia urbana. 2ª edição. São Paulo, Edusp, 2012.
4
Mendonça, Tatiana. Vida sob os arcos. A Tarde, Salvador, 22 fev. 2015 <http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1661771-vida-sob-os-arcos>.
sobre o autor
Dário Sales é sociólogo. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e estudante de Arquitetura e Urbanismo na mesma universidade.