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Terça-feira, 10 de abril, o Pátio do Colégio amanheceu com um garrafal “OLHAI POR NÓIS” pixado em sua fachada, provocando imediata reação do poder público e da grande imprensa, que focou sua crítica no ato de vandalismo e desconsiderando sua mensagem.
JAYO, Martin. Olhai por nóis. Uma falsificação arquitetônica se reveste de verdade. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 213.03, Vitruvius, abr. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.213/6945>.
Erguido entre 1954 e 1979, o falso conjunto jesuítico do Pátio do Colégio (ou Pateo do Collegio como alguns teimam em grafar afetadamente) é uma réplica do que se supõe ter sido a construção que originou o núcleo inicial da atual cidade de São Paulo. Embora ele tente parecer (e muitos incautos acreditem ser de fato) remanescente do século 16, o prédio é na verdade um exemplar paulistano de “falso histórico”. Finge ser antigo, e até engana bem, mas na verdade foi construído em época bastante recente.
A história do prédio é conhecida e não vale a pena retomá-la aqui. Interessa, sim, comentar o acontecimento que causou comoção na mídia e nas redes sociais nesta semana: na terça-feira, 10 de abril, o edifício amanheceu com um garrafal “OLHAI POR NÓIS” pixado (ou pichado, como preferem os puristas da língua) em sua fachada.
A intervenção usou técnica difundida desde a década de 1990 em cidades como Paris, Los Angeles e Nova York, mas que só em 2012 desembarcou em muros brasileiros: o uso de extintores de incêndio carregados com tinta, o que permite intervenções de grande proporção (1). Graças a essa técnica, numa ação que durou pouco mais de um minuto, gravada pelas câmeras de segurança do local, a fachada estava inteiramente coberta, o que teria sido impossível de se produzir com os tradicionais sprays.
Reações indignadas vieram instantaneamente. Uma das primeiras foi a do próprio poder público: poucas horas depois da ação, em uma inflamada postagem no Facebook, o subprefeito da Sé, Eduardo Odloak, qualificava a intervenção como “um CRIME contra a cidade e TODOS os paulistanos de bem” (grifos no original). Em vídeo gravado no próprio local, o subprefeito anunciava: “Nós não vamos deixar quieto. Isto aqui é um ato criminoso contra a nossa cidade!” (2).
Veículos de mídia aderiram ao discurso de criminalização, classificando a pixação como “ato de vandalismo” e o prédio pixado como “edifício histórico” (3) e até mesmo “primeira construção de São Paulo” (4). Essa construção discursiva – a de um condenável ato criminoso cometido contra edifício histórico – dominou também o debate que se seguiu nas redes sociais. Este último, como sói acontecer, se deu de maneira desalentadoramente rasa e estereotipada. Não faltou nem mesmo quem atribuísse o crime a apoiadores do recentemente preso ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enxergando indícios de autoria na cor vermelha usada na intervenção!
Também não faltou, no raso debate, quem se incomodasse com a grafia do pronome pessoal empregado na pixação: não bastasse agredir o patrimônio, agrediu-se também a língua portuguesa. “É nós e não nóis!”, “Nem escrever direito sabem?”, gritaram não poucos puristas da língua, para os quais até os crimes devem ser cometidos respeitando a norma culta.
Não entenderam, estes zeladores do prédio e do idioma, que a súplica pixada no Pátio do Colégio não é para ninguém olhar por nós. Ao contrário, nós é que fomos chamados a olhar por “nóis”, aqueles para os quais jamais olhamos. É sintomático que, mesmo após uma súplica tão eloquente, toda nossa atenção e indignação tenham se dirigido à agressão ao prédio, incapazes que somos de olhar para “nóis”. A própria população que se refugia no Pátio, embora captada pelas mesmas imagens de segurança, não mereceu qualquer parcela de atenção.
Para tranquilidade dos indignados, em pouco tempo a situação se normalizará. A fachada ficará branca de novo (oh, desperdício de recursos!), e “nós” poderemos voltar a admirar orgulhosos esse prédio histórico de 1979. Ainda que, para tanto, tenhamos que desviar de uns tantos “nóis” inconvenientes que insistem em ficar por lá atrapalhando.
Tudo isto pra dizer que São Paulo precisava mesmo ouvir um vigoroso “olhai por nóis”. Podem me pixar.
notas
1
CORREA, Vanessa. Ultravandalismo. Folha de S.Paulo, 04 mar. 2012, p. C-4.
2
ODLOAK, Eduardo. Pateo do Collegio pichado. Postagem e vídeo <https://www.facebook.com/odloak/videos/1876018039088772>.
3
MAIA, Dhiego. Fachada do Pateo do Collegio em SP é pichada com letras gigantes; veja vídeo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 abr. 2018 <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/04/fachada-do-pateo-do-collegio-em-sp-e-pichada-com-letras-gigantes-veja.shtml>
4
O GLOBO. Primeira construção de São Paulo, Pateo do Collegio é pichado: ‘Olhai por nois’”. O Globo, Rio de Janeiro, 10 abr. 2018 <https://oglobo.globo.com/brasil/primeira-construcao-de-sao-paulo-pateo-do-collegio-pichado-olhai-por-nois-22576317>.
sobre o autor
Martin Jayo é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.