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Em texto inflamado, a geógrafa Maria Adélia Souza, professora aposentada da USP, desafia os arquitetos a discutir com seriedade e profundidade os reais problemas da megalópole São Paulo antes de se preocupar com detalhes insignificantes como o Minhocão.
SOUZA, Maria Adélia. Minhocão não é prioridade. Sobre a necessidade de se compreender o que é a cidade na contemporaneidade. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 223.03, Vitruvius, fev. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.223/7270>.
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Tentei não me aborrecer, nem comentar tamanha inversão de valores políticos na cidade de São Paulo! E que dura há séculos!
Nada contra a estética urbana, o embelezamento da cidade, a criação de parques lineares e essa discussão que se arrasta em São Paulo sobre o Minhocão, motivada e reivindicada por urbanistas, políticos, gestores velada ou claramente, também, por especuladores.
Nada contra a mesmice de pensamento de alguns bem sucedidos urbanistas, que veem ainda essa prática a partir de seu quintal, de seu umbigo que como tal se repete indefinidamente.
Nada contra o urbanismo funcionalista e embelezador, falido há tanto tempo.
Nada contra o urbanismo colonizado, que sempre pretende trazer Nova York, Londres, Paris para São Paulo, com suas mãos desenhadoras, imaginando que isso resolva os perversos problemas das cidades e, especialmente, de São Paulo!
Bouvard, o espertalhão clandestino, juntamente com o Artur Prado que o digam, lá de onde estiverem desde 1911, se não me falha a memória... E Prestes Maia também, com Faria Lima e todos os demais.
Mas, o problema de São Paulo, não é seu urbanismo e seus parques lineares, nem mesmo suas ciclovias.
Desculpem-me, a cidade é um monte de cimento, materialidade morta. O que dá vida a ela são as pessoas constituindo seus lugares, usando o território dessa massa morta que é a cidade. Pessoas e sua necessidade de existir com dignidade e livremente!
A cidade é fria, lugar da morte! A cidade é a morte! Besteira enorme o direito à cidade! A cidade surge para zelar por seus mortos! Ela apenas cresce com o comércio... Mas o nômade se agrupa lá na antiguidade, para zelar e velar seus mortos! Isso é a cidade!
Por compreendê-la equivocadamente é que não conseguimos ser felizes nela, que manda seus recados com enorme clareza.
O assombroso problema e urgência de São Paulo é o acelerado e crescente processo de desigualdade socioespacial, essa perversidade e indignidade que assola a maioria do povo que vive nessa cidade, onde tudo lhe é subtraído!
Há tanto o que fazer pelo povo de São Paulo, antes dessa besteira de cuidar do Minhocão... que aliás, queiramos ou não, ajudou a melhorar a fluidez do território paulistano, ligando a zona oeste a Zona Leste! Ou não???
Será que os gestores e doutos urbanistas não percebem que nosso problema é politico e ético e de outra natureza?!
Sim ético, pois, trata-se em São Paulo, de brigar pela manutenção da vida na periferia, especialmente dos pretos e pretas jovens de 15 a 29 anos, esse genocídio para o qual sempre muitos de nós têm chamado a atenção da classe politica. Mas, os ouvidos são moucos!
E a incompetência sobre a compreensão do que seja a cidade nesta contemporaneidade é enorme! Lida-se com ela como se estivéssemos no inicio do século passado!!! A nomenclatura ainda é a mesma, com adereços metafóricos e neoliberais de esquerda, como sempre dizia Darcy Ribeiro!
Ela é vista sempre como se fosse cercada por muros!!!
São Paulo tem problemas seríssimos, cuja gênese está fora dela! Em tempos idos chamamos a atenção para isso na Primeira Politica Urbana que fizemos para o Brasil, alguns de nós!
Além do genocídio dos pretos é preciso cuidar das mulheres, especialmente as pobres, violentadas, mortas, espancadas na grande cidade! E da comunidade LGBT e todas as ditas minorias, do povo da rua submetido a violência de toda ordem e que tem aumentado assustadoramente nestas ultimas décadas.
Eu mesma, em trabalhos sérios e com responsabilidade que fiz com meus alunos e colegas competentes para minha querida São Paulo, precisei encarar essa discussão sobre o Minhocão, sempre interesseira e fora de foco, diante das imensas carências que temos na oferta de equipamentos e serviços de interesse coletivo para os pobres, tema recorrente quando se trata de uma das maiores metrópoles pobres do planeta.
Isso mesmo, discussão descabida e fora de foco para uma metrópole pobre, carente, violenta, com uma imensidão de pessoas completamente abandonadas pelos sucessivos gestores dessa cidade, com pontuais e raríssimas exceções.
Nada sabem esses arrojados urbanistas e políticos arrivistas sobre o sentido do espaço banal, essa totalidade em movimento, esse espaço da existência de todas as pessoas, todas as instituições, todas as organizações... Que exige outro tipo de tratamento.
E, nada sabem sobre o sentido do território usado e da constituição dos lugares, neste período popular da história, que apesar da atual tragédia brasileira, se inicia em todo lugar da dita Polis e, oxalá, os doutos urbanistas e seus chefes políticos se deem conta dele, para não se surpreenderem e serem por ele devorados.
Esse maldito pedacinho do centro de São Paulo, que guarda uma enormidade de potencialidade de valorização, ainda quer engolir recursos que poderiam amenizar essas desigualdades imensas existentes nessa sofrida, maltratada e desrespeitada metrópole por parte de alguns seus urbanistas de plantão, daqui e de acolá e, seus prefeitos arrivistas e alpinistas políticos.
Não se iludam, pois não se faz mais a história de uma cidade fazendo obras faraônicas, tornando seletivo o uso do território, aumentando suas densidades técnicas e estéticas em beneficio de alguns!
Basta olhar no presente, o recado que está sendo dado pela cidade, à politica! Não percebem???!!!
O uso do território berra, como dizia um querido e competente geógrafo negro, amigo e mestre de muitos de nós e que se mudou para São Paulo, para estudá-la, amá-la e aqui morrer.
Com a tragédia que vivemos hoje em nosso país, apesar dela, não houve nem haverá interrupção no desenrolar do tempo.
E, lembremos que ele é acelerado nesta contemporaneidade! Tudo passará bem depressa.
Quanta energia, quanto dinheiro, quanta esperteza acobertada por desenhos, cores, traços, enganadores do povo!
Triste assistir como o urbanismo não acompanhou a história do mundo.
Pobre São Paulo! Triste Pauliceia Desvairada e abandonada.
Desigualdade socioespacial, o que é???
Veja os desenhos do parque e reflita se o Minhocão é o tema prioritário, que arruma São Paulo!
Por favor...!!!!!
Eu prossigo e, longamente! Não há outro modo de ter conversa seria feita por estudiosos, não palpiteiros...
O Facebook é um elo com o mundo, basta saber usá-lo e saber dos seus limites. Para um professor acostumado a dar longas aulas é um espaço restrito, muito restrito. Por isso me alongo! E, o limite, eu o defino!
Não escrevo para quem não queira ler, mas para aqueles que querem debater questões, com argumentos, já que os fóruns adequados inexistem!
O que nos resta? As sociedades e associações científicas que viraram megaeventos, onde o que menos cabe é discussão séria! Dez, quinze minutos para você apresentar o resultado de uma reflexão de vinte, trinta anos, ou uma pesquisa de “doutorado fast”, mesmo assim refletindo quatro anos de trabalho!!!??? Sem falar no clube de amigos que se revezam nas suas respectivas direções, organizados regionalmente!!!
Escrever livros? Enorme responsabilidade! E depois para editá-los? Complicações não faltam! E, agora com essa crise brutal, livrarias falindo, editoras importantes e grandes fechando.
Compreendo quem reclama de que o texto é longo. Não há texto longo desde que se tenha interesse por ele! O que há é texto desinteressante ou mal escrito!
Aqui temos noticias tristes e agradáveis, fazemos, recuperamos amigos. E, conhecemos melhor os indesejáveis.
A técnica e, por conseguinte, a tecnologia são facas de dois gumes. Depende de como as utilizamos.
Agradeço os comentários sobre essa discussão que coloquei usando o Minhocão, como pretexto. Continuo refletindo sobre ela, dialogando com quem quiser me honrar.
Três motivações:
1. A discussão sobre a metrópole como um todo, no caso de São Paulo, nos seus limites paulistanos, precisa ter uma estratégia territorial, logo política, que precede a discussão dos objetos técnicos, particularizados, como é o caso do Minhocão e outros megaequipamentos técnicos da metrópole que sempre nos são impostos, sem essa estratégia.
Zonear é uma ferramenta técnica do urbanismo que quase sempre não está precedida de uma politica territorial. Fala-se em Plano, sem estar precedido de Politicas!!! Outra discussão Politica, não técnica! E, de conhecimento sobre a fantástica e complexa lida com o futuro... que o planejamento sempre insinua, dai ser ele uma prática politica multidisciplinar, não técnica!
Produz-se a cidade (não o espaço), um megaobjeto coletivo, apenas consultando os donos da terra! E isso é uma questão apenas de urbanismo, de desenho, de zoneamento?
E, somos soit-disant uma federação! Cadê as politicas para acertar a existência e a coexistência na e da nação? Não é utopia apenas! A Politica requer utopias para move-las! Parece que nas cidades e nas metrópoles, a única utopia se chama área verde, mobilidade, condomínios fechados e habitação para todas e todos!!! Muito pouco e inatingível! Muita energia para não se atingir o ponto crucial que é o direito ao uso do território para existir e usar não é apenas morar, mover-se, ter jardim na porta de casa! usar é existir, não tem outro modo! Não levitamos! Existir, antes mesmo de trabalhar!!!! Desde quando saímos da barriga de nossas mães ou, modernamente, de hospedeiras!
Como veem, a coisa do Minhocão é bem mais complicada do que ser simpática ou não a essa ideia, a esse maluco projeto de parque linear!!! Um grão de areia caríssimo, numa megametrópole carente de politica territorial, pois impregnada de desigualdades de toda ordem, facilmente exibidas com uma boa e fácil cartográfica! Basta saber ler mapas!!!
Nesse sentido, em função da minha compreensão sobre o que seja a metrópole paulistana, suas dinâmicas, suas carências e seu papel na formação territorial brasileira é que afirmo: “Minhocão não é prioridade”.
Poderia apresentar argumentos muito bem construídos científica e tecnicamente para desmontar esse projeto.
Esse mundo é uma totalidade dinâmica – e que não seja confundido com o planeta Terra – um conjunto de possibilidades geradas pela ação do sujeito: “el mundo soy yo, mi vida y mis circunstancias”, nos ensina Ortega y Gasset, mas também o casal Sartre/Beauvoir!
É disso que estou falando! De uma totalidade em movimento, este acionado por modernizações sempre incompletas. Outra discussão na qual se insere a moda dos parques lineares, o Minhocão...
Daí precisar sair do olhar a partir do próprio umbigo e da Carta de Atenas, ou do estágio em Nova York, Londres ou Paris!!! Desafio sim os arquitetos e urbanistas, pois tive a honra e o privilégio de frequentá-los por 14 anos, tempo em que muito aprendi sobre a ideia naquele tempo de “complexidade”, hoje para mim “totalidade”: vocês, desculpem-me, estão aquém destes tempos acelerados, mutantes, fugazes, desiguais, violentos, carentes, onde os problemas também se complicaram! E sei que muitos de vocês pensam como eu!!! Há que encarar o aggiornamento paradigmático!!!
Alguns geógrafos, fizemos isso com nossa disciplina! Digo alguns poucos... A briga nunca foi e, hoje é menos ainda, setorial: a habitação, o lazer, a circulação, o trabalho! Pensem um pouco!!!
O espaço humano, o espaço geográfico é uma instância social, uma totalidade em movimento, um “indissociável sistema de objetos e sistema de ações” (1), que historicizado pelas relações sociais, em seus enquadramentos políticos, étnicos, antropológicos, afetivos etc. usam o território para historicamente se constituir! E, as ações são concebidas por sujeitos! Há que nominá-los!
Vou complicar ainda mais, para irritar o incautos, valendo-me mais uma vez, de minha didática baseada na provocação, vale dizer na emoção, como queria meu amigo que se foi: espaço geográfico, repito, esse indissociável e contraditório sistema de objetos e ações expresso, historicamente, pelo uso do território, essa redutibilidade entre tecnoesfera e psicoesfera! Entendeu?
É nisso tudo que penso quando discuto, profundamente o malfadado Minhocão, e ele me intriga, desde quando se iniciava essa ideia lá pelos idos... deixa pra lá! Não é de hoje! Quero aqui discutir politicas territoriais, não setoriais! Estas decorrem das primeiras, reveladoras daquela visão de mundo à qual me referi acima!
2. A tese comprovada de que a discussão da fluidez do território da metrópole (que, como materialidade, é sistêmica) precisa ser muito bem discutida, para depois se falar em Minhocão e o que fazer com ele. Essa funcionalização do uso do território de uma megametrópole não se desfaz sem profundas e complexas discussões técnicas e políticas! Falar de fluidez é bem mais complicado do que lidar com a metáfora da mobilidade. Outra enorme discussão...
3. Destacar, embora criticamente e no meu estilo, o fundamental e essencial papel dos urbanistas e arquitetos, propositores e construtores de todas as possibilidades de vida das pessoas na cidade! Os urbanistas são construtores de cidades, de ambientes construídos, de desejos, de ilusões e sonhos realizados, sejam eles quais forem, para a vida das pessoas vivendo aglutinadas, seja lá como for, em aldeias, aldeotas, tabas, ocas, cidades pequenas, medias (outra besteira que criamos no passado), grandes ou megas!!! Os urbanistas e arquitetos são materializadores, concretizadores do futuro de usos do território!!! São projetistas, no sentido em que aprendi com Flávio Mota – o projeto como desígnio!
E isso não é pouco! Uma vez usado, definem-se seus usuários, sejam eles pessoas, organizações, instituições! E as paisagens escancaram esse usos, evidenciando belezas e podridão!
E isso não é uma banalidade, embora o espaço banal assim indique, esse magnifico conceito legado por Milton Santos, geógrafo ainda execrado em muitas faculdades de Arquitetura e Urbanismo! E em Departamentos de Geografia também!
Por hoje é só!
Bom domingo e até uma nova inspiração...
Obrigada pela leitura, para quem chegou até aqui. Difícil exercício este meu! Mas divertido e importante para mim e, para São Paulo!
Abraço!
notas
NE – o presente texto foi publicado na página Facebook da autora, em duas postagens sequenciais, no sábado, dia 23 de fevereiro de 2019. Sua publicação no portal Vitruvius foi autorizada pela autora.
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Citação de memória de passagem de Milton Santos. No contexto original, a passagem que define o conceito de espaço geográfico é o seguinte: “um conjunto indissociável e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único na qual a história se dá”. SANTOS, Milton (1978). O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. 5a edição. São Paulo, Hucitec, 1997, p. 51.
sobre a autora
Maria Adélia Souza é professora aposentada titular de Geografia Humana da Universidade de São Paulo – USP.