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português
A autora faz um depoimento de sua vivência do Centro de Vitória, ES, descrevendo a situação desse bairro na década de 1980, e expondo o influxo desse convívio em sua formação em Arquitetura e Urbanismo.
english
The author writes a testimony of her life experience in the City Center of Vitória, during her adolescence, back in the decade of 1980. She exposes the influence of that experience in her education as a student of Architecture and Urbanism.
español
La autora escribe un testimonio de su experiencia en el Centro de Vitória, en su adolescencia, en los años 1980. Ella expone el influjo de esa experiencia en su educación como estudiante de Arquitectura y Urbanismo.
LORDELLO, Eliane. 1980. Uma memória do Centro da Cidade de Vitória ES. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 246.01, Vitruvius, jan. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.246/8016>.
Uma curta biografia, que nasce no Centro e ao Centro retorna
"Preserve your memories,
They’re all that’s left you".
Paul Simon, Old Friends, 1968
Sou capixaba, nasci em 1967, morando na Rua Antonio Aguirre, no Centro de Vitória. Em 1969, eu e minha família mudamos para a parte continental da cidade, para o emergente bairro de Jardim da Penha, cujo nome deriva da vista do Convento da Penha, que a verticalização do bairro Praia do Canto ocultou. Moramos numa casa geminada, parte de um conjunto habitacional de 106 casas, daí o nome do clube do bairro, o 106, ainda hoje existente.
Em 1979, saímos de Jardim da Penha para morar em outro bairro do continente, Mata da Praia. Eu tinha então doze anos, cursava o primeiro grau, o atual ensino fundamental. Em 1982, ingressei no segundo grau, que atualmente se chama ensino médio. Eu o cursei na Escola Técnica Federal do Espírito Santo – ETFES, hoje Instituto Federal de Ensino Superior – IFES. Na Escola Técnica, fiz o curso de Edificações, obtendo, em 1984 o grau de técnica em edificações.
Importante citar essa formação, pois foi durante o tempo de estudo técnico que eu iniciei minha maior convivência com o Centro de Vitória. A localização da escola, no bairro de Jucutuquara, ajudava muito, pois muitas linhas de ônibus que passavam por ali levavam ao Centro de Vitória, bem próximo.
Naquele tempo, a Rua Duque de Caxias era a rua das livrarias não apenas do Centro, mas de toda a cidade de Vitória. Frequentei-a desde a minha adolescência e continuei a frequentá-la durante todo o meu tempo de estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
Na Duque de Caxias, eu vagueava entre livrarias e caldos de cana, entre caldos de cana e livrarias. A Capixaba, a Âncora, os sebos, e o Caldo Ita, com seu inigualável pastel de bacalhau. Mas era na Âncora que eu me sentia em meu elemento! Vejo-me ainda ali, sentada no chão dessa livraria, folheando as páginas, a escolher que livro levar, sem que ninguém me incomodasse. Resolvida a escolha, era só falar com o Carlos Alberto, funcionário que tudo sabia do acervo da Âncora.
Essa rua era o meu coração no Centro de Vitória. No Centro havia, entretanto, outros atrativos para uma adolescente naquele tempo... Os concertos da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, no Teatro Carlos Gomes, as apresentações de peças teatrais da impagável trupe A Canalhada, as salas de cinema, tão profusas ali – o São Luiz, o Paz, o Odeon, o Jandaia, o Glória, entre outros. Para escolhermos os filmes, líamos, nos jornais locais, as críticas provocadoras de Amylton de Almeida, sempre suscitando polêmicas.
Os cinéfilos ainda contavam com a sala de videocassete do Instituto Brasil Estados Unidos de Vitória – IBEUV do Centro da Cidade, com seletíssima programação. Na saída, no mesmo prédio desta escola de inglês, eram obrigatórios os sanduíches e os sucos da lanchonete Riviera Sucos, cujos atendentes divertiam os fregueses fazendo malabarismos com as frutas.
Outro atrativo muito forte do Centro: as lojas de discos, como Golias Discos, Messias Discos, quanta novidade traziam os LPs!
Livros, cinema, teatro, música faziam do Centro dos anos 1980 o lugar da vida cultural da cidade. Este texto é o depoimento do que considero a época áurea do Centro de Vitória.
Minha convivência com o Centro de Vitória nos anos 1980
Antes de passar à narrativa anunciada pelo título propriamente, preciso fazer aqui um intermezzo, para lembrar o pragamatismo local dos que, naqueles anos 1980, profetizavam a “morte” do Centro. Que morte?, perguntava-me eu então.
Tanto se falava na “morte” do Centro, que entraram em voga, no Município de Vitória, os projetos de revitalização do Centro. Eu estranhava essa terminologia, que enfocava o Centro como lugar que precisava ser ressuscitado. Esse foi o discurso dominante sobre o Centro nos anos 1980. Tanto se falava nessa morte, que os projetos de ressureição, digo, revitalização, do Centro de Vitória se multiplicaram.
Para mim, na verdade, esse lugar parecia, sob muitos aspectos, criar uma vida que a essas ideias revitalizantes passava despercebida. Vida que estava nas apropriações do espaço urbano feitas pelo lumpesinato, pelos comportamentos ditos desviantes, em meio a tanto planejamento, projetos arquitetônicos, trabalhos de desenho urbano, muitos deles pautados em visões serializantes.
Além disso, nos anos 1980, em terras capixabas, a imprensa, a mídia em geral, os discursos políticos apregoavam a preservação do meio-ambiente, e distiguiam a cidade da natureza. Era comum, nesses discursos, a menção das filosofias orientais, do esoterismo, e a procura de refúgio em comunidades alternativas, nos condomínios que se diziam naturais. Assim, negava-se a cidade, e, mais ainda, o seu Centro.
Feito o intermezzo, vamos ao Centro.
Em termos espaciais, trata-se de um centro pequeno, facilmente transponível a pé, situado em uma ilha. De um lado, tem-se a Baía de Vitória, de outro, os morros onipresentes, visíveis de todos os cantos, de onde quer que parta o olhar. Em termos estéticos, o Centro então escondia fachadas autênticas de outrora, atrás de fachadas falsas, tiras de metal, fachadas-letreiros, para serem vistas de longe, à velocidade dos ônibus e carros, como cartazes, comunicação visual; não mais parte de uma arquitetura companheira do caminhar do pedestre pelo Centro.
Era um Centro que, de tão pequeno, podia ainda, naqueles anos 1980, tornar célebres algumas personagens de seu cotidiano, passado ou presente, inscrevendo-os em seu folclore. Eram então personagens do Centro de Vitória: as prostitutas Maria-Tomba-Homem e Aurora-Gorda, a jornalista Carmélia Maria de Souza; o ex-prefeito Adelpho Poli Monjardim. Este último, ilustre morador da Rua Barão de Monjardim. Diariamente, o Centro o via passar no início da tarde, indo almoçar a bordo da distinção de um terno bem cortado.
Era um Centro de arquiteturas tão diversas: a casa com a Cruz de Malta, a que se dava ares de castelo oriental, há décadas abandonado no alto de uma ladeira. Centro de arquiteturas do Ecletismo propiciadas pela economia do café, e, nos anos 1980, escondidas atrás de placas metálicas protéticas. Havia ainda os altos edifícios do Modernismo, e os espigões genéricos no modesto skyline da cidade. Nestes, vale registrar dois casos marcantes da ambição de cosmopolitismo: o novaiorquino edifício Presidente Kennedy, e o hotel que toma o nome da cidade portuguesa: Estoril.
Era um Centro onde o camelô que fazia ponto na Avenida Princesa Isabel colocava os pôsteres num ritmo que acompanhava o das janelas da antiga Faculdade de Filosofia – FAFI. Sobre esta última, me perguntou uma senhora, no ônibus: “De que religião é essa igreja?” (em trivial associação do antigo ao sacro e ao secular).
Centro de pedra e água. Navios e automóveis, embarcações e guindastes, juntos, pareciam agregar-se no passeio da avenida, no ocupar da paisagem. Permanecem tão presentes, quanto o enorme Penedo no meio do canal.
Era esse o Centro que diziam precisar ser “revitalizado”, mas que fervilhava o dia inteiro com o movimento das ruas, do almoço rápido nos restaurantes, dos bares lotados depois do expediente – fim de tarde. Centro que era habitado de forma obscena (literalmente: fora de cena) por trás das fachadas dos pequenos cortiços e hotéis que abrigavam a prostituição, ela mesma criadora de fluxos noturnos e itinerários vivos depois do pôr-do-sol.
Centro que se transformava totalmente nos domingos, quando bicicletas o invadiam, ainda mais nos dias de regatas, com seus barcos cortando as águas do canal e suas calçadas lotadas de torcedores dos clubes – Álvares Cabral, Náutico, Saldanha da Gama. Para qual deles você torcia?
Centro de tantas possibilidades subjetivas, pelas teias que teciam o ideário de seus personagens-espaços-ocupações, desvelando surpresas pelas sinuosidades de seu desenho e de seus sentidos.
Centro insinuante. Sobre as coleantes paisagens de morros, margeando as ruas e avenidas, criou-se uma redoma de prédios, numa verticalização que solapa até hoje os caminhos dos relevos (natural e construído) acidentados do Centro, fazendo a cidade ser vista por fendas.
Eram fendas que revestiam o corpo-cidade de decotes. Fendas que se faziam por entre as gretas dos prédios, assentados sobre um desenho que remontava ao passado colonial desse espaço de centralidade. As fendas, que nesse antigo traçado eram feitas pelas próprias ruas, naqueles vertiginosos anos 1980 eram feitas no espaço vertical dos ditos “arranha-céus” da cidade. Muitas delas garantidas pelas escadarias monumentais que ligam, até hoje, a Cidade Alta às avenidas ue margeiam o Porto.
Elementos sensuais do desenho das cidades, as fendas, que nos castelos medievais apareciam na forma de seteiras e ameias, emergiam dia a dia dos novos castelos verticais, erigidos nas cidades como um todo e, no Centro de Vitória, desde a década anterior. São fendas que persistem fazendo a cidade mostrar-se aos poucos, permeando o espaço visual do Centro, com decotes. Assim é que os encantos e belezas do Centro iam aos poucos se mostrando para quem se devotasse a olhá-lo.
Percorrer este Centro da cidade ganhava, assim, também a dimensão de percorrer as fendas que permeavam seus caminhos. Se você já experimentou, por exemplo, subir a escadaria São Diogo e, contornando a Catedral, seguiu pela Rua Pedro Palácios até o Palácio Anchieta, sabe do que estou falando. É que nesse percurso, as fendas vão mostrando a baía e o porto por recortes, flashes, até que, depois de passada a escadaria Maria Ortiz e a Praça João Clímaco, chega-se ao largo do Palácio do Governo. Aí paisagem do porto se abre como numa lente grande angular, defronte à Escadaria Bárbara Lindenberg. Mas é a balaustrada dessa parte do largo do palácio que desvela inusitadas vistas.
Seguindo em frente, e tomando a Avenida Florentino Avidos, de novo o Porto vai aparecendo por recortes. Novas fendas surgem no caminho, e este é apenas um percurso, entre tantos outros, que ainda se pode fazer acompanhando-as. Entre elas, sempre se pode ver um pedacinho de guindaste, um trechinho de navio, uma porção dos armazéns.
Um agradecimento
Esse é o Centro que me tomou de paixão e me fez querer estudar centros e cidades outras, aprender a lê-los, a vivê-los. Assim, nos anos 1980 fiz do Centro de Vitória o objeto empírico de minha monografia de graduação, intitulada Cidades e Subjetividades. Ela me faz relembrar, agora, com carinho, o texto, o orientador, os amigos, os colegas, a plateia no dia da defesa, a formatura. A todos que participaram desta memória, agradeço de coração!
nota
NE – Devido à manutenção de sua plataforma, o portal Vitruvius está publicando a edição de janeiro de 2021 da revista Minha Cidade em março de 2021.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura na área de Teoria e Projeto (UFRJ, 2003), doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada (UFPE, 2008). Servidora pública municipal há 28 anos, atualmente é arquiteta e urbanista da Secretaria Municipal de Desenvolvimento da Cidade de Vitória, ES, integrando a equipe da Coordenação de Revitalização Urbana.