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Julice Pontual, arquiteta e doutora em design, discute a necessária flexibilidade como o principal norteador projetual da moradia no novo cenário da sociedade contemporânea pós Covid-19.
PONTUAL, Julice. Reflexões sobre a moradia pós Covid-19. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 246.03, Vitruvius, jan. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.246/8027>.
Diante dos inúmeros debates em torno das transformações da moradia pós Covid-19, gostaria de compartilhar algumas reflexões em torno deste tema. Por ser arquiteta, mestre e doutora em design cujas pesquisas tiveram como foco o estudo da “Moradia e suas transformações decorrentes do contexto socioeconômico, tecnológico e cultural”, e por trabalhar diretamente com uma construtora/incorporadora da família, que tem o mercado imobiliário habitacional como principal produto, me senti impulsionada a participar deste rico debate.
Para os pesquisadores de qualquer que seja a área de conhecimento abordada é muito mais fácil analisar períodos anteriores do que a contemporaneidade, já que a imersão no momento atual atrapalha o distanciamento recomendado para o desenvolvimento de qualquer pesquisa, dificultando a identificação e análise de fatores que possam impactar no objeto pesquisado. Se a falta deste distanciamento para a análise do cenário presente já é complexa, vislumbrar projeções futuras é um desafio que requer uma série de conhecimentos e atributos, dentre os quais: análise histórica que permita aprender com o passado; vasto conhecimento da atualidade, para identificação dos fatores e transformações relevantes; e ousadia, que permita a elaboração de palpite sobre o futuro.
Voltando o foco para o mercado imobiliário habitacional pós Covid-19, este é um grande e enriquecedor desafio que requer um olhar apurado sobre a moradia e suas transformações anteriores, além da análise da configuração dos espaços domésticos do presente, o que vai embasar as projeções da moradia do futuro. Também é válido ressaltar que como a moradia é palco permanente das atividades condicionadas à cultura e costumes dos habitantes, o espaço doméstico reflete as constantes transformações do contexto sociocultural, político, econômico e tecnológico, o que torna o desafio de propor ou vislumbrar mudanças na moradia futura ainda mais complexo. No decorrer da história, é curioso perceber que muitas vezes fatos considerados irrelevantes tenham mais impacto nas transformações da moradia do que grandes acontecimentos históricos. A exemplo disto, o crescimento da produção de eletrodomésticos no Brasil na década de 1950 e seu consequente barateamento, fato aparentemente irrelevante na história, impactou em transformações relevantes até hoje nas moradias: compactou, racionalizou e sofisticou as cozinhas, ao tempo que casa equipada passou a ser sinônimo de casa moderna. Esta introdução dos eletrodomésticos nas moradias foi acompanhada de muita publicidade, estimulando não apenas o consumo, mas os vinculando ao ideal de modernidade, também reforçado pelas telas de cinema com a difusão do estilo de vida americano. Graças à sofisticação dos eletrodomésticos e a sua correlação com a modernidade, hoje existe a vasta comercialização das cozinhas e varandas gourmets, o que mostra o alto impacto da introdução dos eletrodomésticos no cenário doméstico (1).
Entretanto, um fato histórico de grande impacto nacional, a ditadura militar brasileira que marcou as décadas de 1960 e 1970 não teve grande impacto na configuração da moradia nacional, mesmo com a diminuição da produção artística e cultural do período. É preciso ter esta sutileza na percepção do impacto dos fatos no cenário doméstico para se pensar na habitação do futuro, para que situações aparentemente irrelevantes não passem desapercebidas.
No panorama da pandemia atual, com o consequente isolamento social, é interessante ressaltar um fato inédito na história da habitação brasileira moderna: o uso do espaço doméstico exclusivamente por seus moradores. Apenas no período colonial se tem conhecimento do uso da moradia exclusivamente pelos habitantes, e mesmo neste período, era comum a presença da mão de obra escrava. Desde a chegada da família real no Brasil, em 1808, as casas passaram a ser palco de festas e jantares tendo se ornamentado para esta função, com o mobiliário e objetos decorativos destes ambientes ressaltando mais o status social da família do que o uso em si. Este cenário do setor social da sala voltado mais para recepção dos visitantes do que para atender a necessidade de uso cotidiano dos habitantes, marca o uso do espaço doméstico até os dias atuais.
Este momento pioneiro de imersão dos moradores, sem visitantes, dentro de suas casas, possivelmente será o responsável pelo maior impacto no setor habitacional. Soma-se a isso atividades e necessidades outrora inimagináveis de serem realizados no espaço doméstico, como o ensino a distância, ballet a distância e atividade física a distância, que passaram a ser desempenhados neste ambiente. Esta imersão doméstica dos habitantes somada às novas necessidades de uso residencial acarretará numa revisão dos espaços residenciais por seus usuários e à sua consequente valorização, com o conforto como premissa.
Haverá a busca pela adaptação da moradia e de seu mobiliário às reais e novas necessidades de seus moradores, buscando atender às mais diversas demandas. Uma aliada nesta adaptação será a maior busca por tecnologia, vez que graças a ela foi possível desempenhar a maioria das novas funções que o espaço doméstico agregou, como reuniões virtuais, comemorações on-line e aulas remotas. A tecnologia também foi o braço direito dos afazeres domésticos, com seus modernos eletrodomésticos, além da principal responsável pelo quesito entretenimento, com jogos, shows e filmes virtuais.
Até mesmo as relações sociais foram mantidas graças à tecnologia e suas diversas redes sociais, o que mesmo sem a presença de visitas reais, trouxe visitantes virtuais para dentro de casa, trazendo à tona o termo “espaços instagramáveis” como sinônimo de ambiente fotografável, esteticamente harmônico, ideal para serem mostrados nas inúmeras Lives.
Também foi graças à tecnologia que as atividades corporativas têm sido realizadas com louvor na esfera doméstica, trazendo inclusive questionamentos a respeito do trabalho pós Covid-19, se voltará a ser desempenhado nos escritórios tradicionais ou se serão desenvolvidos definitivamente em casa. Este questionamento tem feito com que os novos lançamentos do mercado imobiliário residencial passem por adaptações para encaixar um espaço específico para o home office, com o intuito de atender a esta demanda. Mas será que com tanta tecnologia, com a compactação, diversidade e portabilidade dos equipamentos tecnológicos utilizados como auxiliares dos afazeres corporativos, precisaremos realmente de um espaço específico para este fim?
Vale destacar que o trabalho corporativo em casa não é novidade da vida pós Covid-19, ao contrário, nas residências coloniais era comum o térreo residencial ser voltado para a prática comercial. Apenas no início do século 20 que a habitação foi progressivamente separada do trabalho, a transformando na esfera feminina por excelência. Em meados do século ainda era comum as residências terem um cômodo voltado para o escritório, muitos com entrada independente do acesso residencial, voltado para receber clientes e colegas de trabalho. Nos anos 1960 era comum a oferta de um cômodo específico para escritórios nos apartamentos residenciais, normalmente adjacente à sala, cabendo ao usuário o uso do mesmo como home office ou como dormitório. Com a compactação dos apartamentos e a consequente supressão deste cômodo nos anos 1970, as revistas de decoração passaram a apresentar soluções de aproveitamento espacial para escritórios compactos, mesmo sem um cômodo específico para esta finalidade, sugerindo o uso de bancadas retráteis, um exemplo claro da tentativa de adaptação da mobília, através, principalmente, da multifuncionalidade (2).
É curioso que décadas depois este debate do escritório doméstico tenha voltado à tona, só que agora os ambientes domésticos estão bem mais compactos. Embora esta diminuição de área tenha sido considerável, os computadores também diminuíram de tamanho, os livros, os arquivos e as reuniões passaram a ser virtuais, aumentou a variedade de equipamentos que permite o trabalho remoto e existem mais opções de mobiliário flexível adequado a esta finalidade, o que teoricamente facilitaria a adaptação do trabalho doméstico em qualquer “cantinho” da casa. Entretanto, os debates em torno da adaptação residencial ao home office demonstram a dificuldade existente na adequação do espaço para este fim.
Se houve evolução da tecnologia, dos equipamentos e do mobiliário facilitando o desenvolvimento do trabalho em casa e mesmo assim existe esta dificuldade de adaptação do ambiente doméstico para esta finalidade, provavelmente é o espaço residencial em si que precisa ser repensado. Mesmo com tantos avanços tecnológicos os imóveis residenciais continuam sendo desenvolvidos dentro de antigos padrões, visando atender ao maior grupo de pessoas possíveis, com cômodos e layouts pré-estabelecidos, o que acarreta em estanqueidade de uso e dificuldade de apropriação espacial.
Mesmo com a difusão da tecnologia do concreto armado no país na década de 1940, o seu uso foi limitado à resolução estrutural, sem impacto na configuração da moradia, o que fez com que o princípio da planta livre com ampla flexibilidade não tenha sido totalmente atendido no Brasil. Ainda é comum o uso de paredes em alvenaria para divisão dos cômodos, mesmo sem função estrutural, usada apenas como elemento de vedação, o que dificulta a adaptação da unidade residencial a diferentes necessidades e estruturas familiares. Até mesmo a organização dos cômodos residenciais segue a mesma tripartição setorial em setor social, íntimo e de serviço estabelecido há décadas (3).
Mais de um século depois do preceito modernista de “planta-livre” ter sido levantado, a maior parte dos imóveis residenciais nacionais ainda são produzidos com pouca liberdade de uso e adaptação. A renovação deste modelo residencial até então difundido no mercado imobiliário nacional, encontra uma série de barreiras que precisam ser repensadas: barreira cultural, vez que é difícil a mudança de hábitos e conceitos preestabelecidos pela sociedade; barreira mercadológica, vez que o mercado imobiliário com um único produto busca atender ao maior número de clientes possível, padronizando a necessidade de um grupo buscando facilidade de comercialização; barreira econômica, vez que precisa se encaixar no valor de mercado; barreira legislativa e normativa, vez que muitas legislações e normas estabelecem regras rígidas como predefinição de cômodos e layouts específicos, com dimensões mínimas, que limitam as inovações.
Mesmo diante destas limitações, este momento de isolamento doméstico levantou a necessidade de revisão no conceito de habitação até então produzido e comercializado. Foram tantas as adaptações que se fizeram necessárias que as moradias ganharam uma certa elasticidade, e mesmo com a compactação características das unidades comercializadas atualmente, elas viraram de certa forma academias, escolas, escritórios e restaurantes, trazendo a flexibilidade de uso para primeiro plano da esfera residencial.
Diante de tantos usos novos e adaptações outrora inimagináveis, a habitação pós pandemia não precisa de um home office ou outro cômodo específico a mais. Ela requer flexibilidade suficiente para que seus moradores a adaptem para sua realidade, a adequem paras as mudanças que ocorram naturalmente em suas vidas e as tornem confortáveis e bonitas dentro de seus parâmetros pessoais, sem que esta adaptação dependa de grandes reformas ou apenas da adaptação do mobiliário. Esta flexibilidade precisa deixar de ser uma mera adaptação pós-obra e passar a ser o principal norteador projetual da moradia deste novo cenário.
notas
1
PONTUAL, Julice. Formas de morar no Brasil: entre os 50 e os 70. Dissertação de mestrado. Recife, Departamento de Design UFPE, 2009.
2
PONTUAL, Julice. Moradia, mobiliário e interior doméstico recifense: um processo de transformação do cenário doméstico nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Tese de doutorado. Recife, Departamento de Design UFPE, 2015.
3
TRAMONTANO, Marcelo. Habitações, metrópoles e modos de vida: por uma reflexão sobre o espaço doméstico contemporâneo. São Paulo, IAB, 1997.
sobre a autora
Julice Pontual é arquiteta e urbanista (UFPE, 2003), especialista em ergonomia (UFPE, 2006), mestre em Design (UFPE, 2009), doutora em Design (UFPE, 2015).