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português
Este trabalho discute o papel da mobilidade por bicicleta no contexto da pandemia do Covid-19, abordando os potenciais, limitações e desafios para a consolidação da ciclomobilidade nas cidades e no planejamento dos transportes.
english
This paper discusses the role of bicycle mobility in the context of the Covid-19 pandemic, addressing the potentials, limitations and challenges for the consolidation of cyclomobility in cities and in transport planning.
español
Este documento discute el papel de la movilidad en bicicleta en el contexto de la pandemia de Covid-19, abordar los potenciales, limitaciones y desafíos para la consolidación de la ciclismo en las ciudades y en la planificación del transporte.
CASTRO, Alexandre Augusto Bezerra da Cunha; BARROS FILHO, Mauro Normando Macêdo. A vez das bicicletas? Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 248.01, Vitruvius, mar. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.248/8039>.
No contexto da pandemia do Covid-19, discute-se sobre a revisão de antigos hábitos, práticas e costumes, em busca de uma melhor qualidade de vida urbana. Ações de controle da doença, como o isolamento social e consequente redução do uso do automóvel, contribuíram para a melhoria da qualidade do ar no ambiente urbano – em algumas cidades chinesas, a redução de emissões foi de 30% (1). Neste sentido, ao longo do primeiro semestre de 2020, a ciclomobilidade tem se destacado e sendo noticiada em diversos veículos de comunicação, por ser uma forma popular e sustentável de transporte. Seria o momento das bicicletas? Pretende-se fazer aqui alguns apontamentos que podem trazer luz à questão e alimentar a discussão sobre a mobilidade urbana na pandemia.
A bicicleta é um dos modos de transporte mais sustentáveis, por não emitir nenhum poluente, usar tração humana e por ter a melhor eficiência energética. Para um ciclista se deslocar por 1km, são gastos 0,06 Megajoules de energia, contra 0,16 do pedestre e 2,1 do automóvel (2). Por não consumir combustíveis fósseis, há ainda o ladi econômico da sustentabilidade, por ser acessível à população de diferentes faixas de renda e onerar menos o orçamento familiar. Este dado é importante para a realidade brasileira, pois os meios de transportes particulares e coletivos respondem a 18% das despesas mensais familiares (3).
Com o agravamento da crise financeira do país, a bicicleta tem atraído novos adeptos que buscam reduzir estas despesas. Outro aspecto positivo importante é o menor espaço ocupado no sistema viário: um ciclista ocupa 4,5m² de espaço viário, sendo o terceiro modo de transporte mais eficiente em relação ao espaço ocupado. Apenas o pedestre (0,8m² por pessoa) e o metrô em operação ideal (4m² por pessoa) ocupam menos espaço (4), o que ajuda a reduzir congestionamentos.
Outro ponto a se destacar sobre a ciclomobilidade é seu uso para aplicar medidas de biosegurança. A Organização Mundial da Saúde – OMS recomendou o uso de bicicletas como modo de transporte, como alternativa para reduzir o contato físico e possíveis aglomerações (5). Além disso, a prática do ciclismo favorece o aumento de vitamina D e redução da obesidade, o que pode contribuir para aumentar a imunidade contra o Covid-19.
Sob esta chancela, algumas cidades no Brasil e no mundo começaram a adotar a bicicleta como solução para evitar a concentração de pessoas no trânsito. Em São Paulo, o governo do estado reabriu bicicletários e ampliou o horário permitido para o transporte de bicicletas no serviço de metrô e trens. Já a prefeitura de São Paulo suspendeu o atendimento presencial ao do comércio, exceto os serviços de manutenção de bicicletas, dada a importância do veículo durante a quarentena. Ações similares foram tomadas em Nova York, São Francisco e Berlim (6). Londres, em detrimento dos receios da população em utilizar transporte público – espaços fechados e com alta probabilidade de aglomeração – começam a investir na ciclomobilidade (7). A cidade de Bogotá construiu 76 km de novas ciclovias para acomodar novos usuários e manter o distanciamento social (8).
As experiências já desenvolvidas de aumentar a implantação de infraestruturas cicloviárias podem servir de exemplo para um planejamento mais estruturado. Vale salientar que o Brasil possui uma taxa de transmissão do coronavírus mais alta, em comparação com outros países, a exemplo da Itália, França, Reino Unido e Espanha (9). Por conta disto, é preciso ampliar as possibilidades de ações que visem salvaguardar a saúde da população, e as estratégias de incentivo ao uso da bicicleta podem se aliar com a tendência de uso deste meio de transporte no país.
No Brasil, tem aumentando a procura pelo transporte cicloviário nos últimos anos. Mesmo que o percentual de participação da ciclomobilidade em relação a todos os modos de transporte ainda seja muito baixo (4%), o número total de viagens por bicicleta nas cidades subiu de 1,4 bilhão em 2014 (10) para 1,6 bilhão em 2017 (11), o que representa um aumento de 14% em 3 anos. Incentivos também surgiram recentemente com a Lei nº 12.587/12, que estabelece a prioridade à modos de transporte não motorizados na formulação de planos de mobilidade urbana e a Lei nº 13.724/18, que institui o Programa Bicicleta Brasil, com a finalidade de incentivar a inserção deste meio de transporte no planejamento das cidades. Além disso, registra-se um aumento nas vendas de bicicletas durante a pandemia (12), o que demonstra um futuro aumento na demanda por espaços cicláveis.
Este cenário pré-pandemia construiu uma situação favorável ao incentivo do uso da bicicleta. No meio de diversas previsões sobre o futuro das cidades pós-pandemia, observa-se que o “novo normal” já existe no Brasil, no que diz respeito à ciclomobilidade (13), e que as tendências de uso da bicicleta se devem mais a este retrospecto do que às reflexões sobre a cidade e o isolamento social. Estudos realizados nos últimos 5 anos mostram que há um perfil bem definido do ciclista urbano no país: pessoas de baixas renda e escolaridade, que pedalam para ir ao trabalho ou às compras, ao menos 5 vezes por semana, em viagens de 20 minutos de duração (14).
Esse perfil, com vulnerabilidade socioeconômica, é reforçado pelos problemas do sistema de transporte público dos municípios em dar respostas quanto à segurança sanitária de seus usuários. A redução da frota durante a quarentena, objetivando reduzir o número de passageiros, pode ter o efeito contrário, ao adensar mais indivíduos em menos veículos disponíveis, agravando o risco de contaminação (15). O uso da bicicleta permite que o ciclista mantenha uma distância segura dos outros cidadãos, reduzindo a possibilidade de transmissão do coronavírus, tendo sido apontada, por estes motivos, como uma solução para a mobilidade em favelas e periferias, como forma de mitigar agrupamentos de pessoas e, consequentemente, mais contágios (16), como também facilitar o acesso às oportunidades urbanas, como emprego, equipamentos institucionais e de saúde. Assim, a bicicleta exerce um papel social, cuja demanda é anterior à pandemia.
Percebe-se que a ciclomobilidade desempenha um papel importante na resiliência das cidades durante a pandemia do Covid-19 e para futuros problemas de saúde que possam surgir. Por este motivo, novas infraestruturas precisam ser planejadas e implantadas para suportar a demanda maior de ciclistas (17). Além disso, instituições de planejamento e pesquisa em transportes têm se debruçado nas respostas que os espaços livres públicos podem oferecer à esta nova demanda de distanciamento social, levando em consideração uma proposta mais humanizada para o uso da rua (18). Estas medidas, mesmo que em caráter temporário, disciplinam o uso do espaço público para dar mais resguardo quanto ao espaçamento entre as pessoas. Estas soluções também apresentam um caráter mais humano para o espaço público, o que na microescala propicia espaços com um potencial maior de vitalidade e qualidade ambiental.
No entanto, apesar dos aspectos positivos supracitados, a realidade das cidades brasileiras limita o acesso a equipamentos e infraestruturas cicloviárias. Apenas 13% da população com renda mensal abaixo de um salário mínimo reside a trezentos metros de ciclovias, ciclofaixas ou ciclorrotas, enquanto 30% dos moradores com renda acima de três salários mínimos residem próximos de uma rota segura para o uso da bicicleta (19). Portanto, a desigualdade no acesso à infraestrutura pode ser um fator que influencie na proteção da saúde em tempos de pandemia e em possíveis quarentenas intermites. A instalação de ciclovias temporárias tem sido vista como uma solução paliativa para a demanda por infraestrutura cicloviária durante a pandemia (20), desde que conecte os destinos de interesse da população, principalmente a de baixa renda.
Além da infraestrutura viária, outros fatores também dificultam a ciclomobilidade nas cidades brasileiras, tais como a carência de planos de mobilidade urbana, que inclua ou dê a devida importância à bicicleta como modo de transporte e suas possibilidades na intermodalidade dos transportes; o espraiamento urbano, que gera viagens mais longas que a capacidade da bicicleta; e a distribuição desigual dos equipamentos e usos do solo urbanos (ex.: escolas, parques, hospitais), o que também aumenta os percursos dos ciclistas.
Com isso, faz-se necessário identificar os locais adequados para receber novos equipamentos, bem como entender o potencial de acesso ao solo urbano que a malha urbana provém. O sistema de barreiras e permeabilidade do tecido urbano pode gerar ambientes mais ou menos propícios para o deslocamento humano (21). Portanto, a configuração espacial pode potencializar ou não o uso da bicicleta em determinadas vias, a partir da densidade (demográfica e edilícia), comprimento de ruas, conectividade e integração das vias (22). Alguns destes atributos podem ser mensurados a partir da Teoria da Lógica Social do Espaço para aferir o potencial de movimento dos ciclistas, uma vez que há estudos que demonstram uma correlação positiva entre as medidas sintáticas e o fluxo real (23). Apesar dos achados, é preciso investigar a relação da forma urbana com o movimento de bicicletas, visto que as relações entre variáveis morfológicas e o fluxo de bicicletas não são conclusivas em todas as variáveis ou tipos de vias (24).
A partir do exposto, pode-se perceber que o transporte cicloviário pode exercer um importante papel social, econômico e sanitário nas cidades, imersas em restrições e externalidades ocasionadas pelo Covid-19 e com um futuro ainda incerto sobre o “pós-pandemia”. Os benefícios da bicicleta já são conhecidos, mas há desafios a serem debatidos para efetivar e consolidar a ciclomobilidade. Os dados aqui apresentados são otimistas quanto ao futuro da bicicleta como modo de transporte, mas é preciso reduzir a desigualdade social e ampliar a justiça espacial para que a mobilidade urbana e o direito à cidade possam ser plenamente concretizados, sob o risco de repetir os erros do “antigo normal”.
notas
1
SILVA, Cleyton M. da; SOARES, Ricardo; MACHADO, Wilson; ARBILLA, Graciela. A Pandemia de COVID-19: vivendo no antropoceno. Revista Virtual de Química, v. 12, n. 4, Niterói, jul. 2020, p. 1-16 <https://bit.ly/2QakWYZ>.
2
BANISTER, David. Sustainable Transport and Public Policy. In: KIM, T.J. (Org.). Transportation Engineering and Planning. Volume II. S.L., Unesco/Encyclopedia Life Support Systems, 2013.
3
IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: primeiros resultados. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019 <https://bit.ly/38Irx3m>.
4
MOBILIZE – MOBILIDADE URBANO SUSTENTÁVEL. Espaço ocupado por modos de transporte ativos e motorizados <https://bit.ly/3tr7Apo>.
5
WORLD HEALTH ORGANISATION. Moving around during the Covid-19 outbreak. 2020 <https://bit.ly/3vvzBhG>.
6
SUMMIT MOBILIDADE URBANA 2020. Governo reabre bicicletários e aumenta o período permitido a bicicletas em metrô e trens <https://bit.ly/2OTcpsJ>.
7
FRANCE PRESS. Governo britânico lança plano para promover caminhada e ciclismo. Rio de Janeiro, G1, 28 jul. 2020 <https://glo.bo/2Ouk0yf>.
8
ITDP BRASIL. Enquanto os impactos do novo coronavírus aumentam, a micromobilidade preenche espaços. Rio de Janeiro, Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, 1 abr. 2020 <https://bit.ly/3cABgtu>.
9
PINHEIRO, Lara. Cada pessoa infectada com Covid-19 transmitiu doença para outras 3 nos primeiros meses da epidemia no Brasil, mostra estudo. Rio de Janeiro, G1, 31 jul. 2020 <https://glo.bo/2NlZbnS>.
10
ANTP. Sistema de informações da mobilidade urbana da Associação Nacional de Transportes Público – relatório geral 2014. São Paulo, Associação Nacional de Transportes Públicos, 2018 <https://bit.ly/30Nqt9N>.
11
ANTP. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transportes Público – relatório geral 2017. São Paulo, Associação Nacional de Transportes Públicos, 2020 <https://bit.ly/3bP9w58>.
12
SALGADO, Diego. Associação do setor de bicicleta registra aumento de 50% nas vendas de maio. São Paulo, UOL, 25 jun. 2020 <https://bit.ly/3bRnGTg>.
13
RODRIGUES, Juciano. O ciclista do “novo normal” já existe, a cidade é que vai ter que mudar. Rio de Janeiro, Observatório das Metrópoles, 11 jun. 2020 <https://bit.ly/3tuIeXZ>.
14
TRANSPORTE ATIVO. Pesquisa Perfil do Ciclista 2018. Rio de Janeiro, Transporte Ativo, 2019.
15
BONDUKI, Nabil. Redução da frota de ônibus na capital paulista. Prefeitura agrava o risco de contaminação durante a semana crítica da pandemia. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 237.01, Vitruvius, abr. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.237/7697>.
16
VELOSO, Lucas. “Com bicicletas, a periferia sairia melhor da pandemia”, dizem ciclistas em SP. São Paulo, Agência Mural, 22 jun. 2020 <https://bit.ly/38LbIsJ>.
17
SCHWEDHELM, Alejandro; LI, Wei; HARMS, Lucas; ADRIAZOLA-STEIL, Claudia. Bicicletas têm papel crucial na resiliência das cidades durante crise da Covid-19. São Paulo/Porto Alegre, WRI Brasil, 22 abr. 2020 <https://bit.ly/2OYltMW>.
18
NACTO. Streets for Pandemic: Response & Recovery. Nova York, National Association Of City Transportation Officials, 2020 <https://bit.ly/38HDRAz>.
19
ITDP BRASIL. ITDP avalia percentual de pessoas próximas a infraestruturas cicloviárias. Rio de Janeiro, Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, 15 mai. 2020 <https://bit.ly/3eJWyrb>.
20
RIBEIRO, Andressa; CORRÊA, Fernando. Ciclovias temporárias são resposta sustentável de cidades do Brasil e da América Latina à Covid-19. WRI Brasil, 22 jul. 2020 <https://bit.ly/2NmHggS>.
21
HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The Social Logic of Space. Cambridge, University Press, 1984.
22
RYBARCZYK, Greg; WU, Changshan. Examining the Impact of Urban Morphology on Bicycle Mode Choice. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 41, n. 2, mar. 2014, p. 272-288 <https://bit.ly/2OFIQev>.
23
HILLIER, Bill; PENN, Alan; HANSON, Julienne; GRAJEWSKI, Tadeusz; XU, Ju. Natural Movement: Or, Configuration and Attraction in Urban Pedestrian Movement. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 20, n. 1, 1993, p. 29-66 <https://bit.ly/2OC3hZM>.
24
KOOHSARI, Mohammad Javad; COLE, Rachel; OKA, Koichiro; SHIBATA, Ai; YASUNAGA, Akitomo; HANIBUCHI, Tomoya; OWEN, Neville; SUGIYAMA, Takemi. Associations of built environment attributes with bicycle use for transport. Environment and Planning B: Urban Analytics and City Science, v. 47, n. 9, 2020, p. 1745-1757 <https://bit.ly/2OBHAsN>.
sobre os autores
Alexandre Augusto Bezerra da Cunha Castro é arquiteto e urbanista, mestre em Engenharia Urbana e Ambiental, doutorando em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFRN). Membro do grupo de pesquisa Morfologia e Usos da Arquitetura (MUsA), Professor Assistente I na UNIFIP Centro Universitário.
Mauro Normando Macêdo Barros Filho é arquiteto e urbanista, especialista em Geoprocessamento, mestre e doutor em Desenvolvimento Urbano, Pós-Graduado em Regularização de Assentamentos Informais e Gerenciamento do Solo. Professor e pesquisador da Universidade Federal de Campina Grande.