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Milton Hatoum comenta períodos distintos da história de Manaus, sua terra natal, onde 80% da população não tem uma vida minimamente digna
HATOUM, Milton. Manaus, AM, Brasil: séculos de flagelos. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 249.01, Vitruvius, abr. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.249/8060>.
“Cruel como brasa mandada […] incontido e impune como o rol dos flagelos”.
Guimarães Rosa, Estória nº 3 in Tutaméia: terceiras estórias
Talvez a velhice seja um naufrágio. Mas, mesmo antes de ir a pique, muita gente deseja regressar ao porto de origem. Kaváfis, no belo poema “A cidade”, evoca esse tema:
“Não encontrarás novas terras nem outros mares./ A cidade irá contigo. Andarás sem rumo pelas mesmas ruas./ Vais envelhecer no mesmo bairro […]. Sempre chegarás a esta cidade”.
Muitas cidades cresceram (e crescem) sem perder sua memória histórica e sua dignidade. Infelizmente Manaus está perdendo tudo isso. Mas essa morte anunciada tem uma história.
Como exaltar a modernidade e o progresso de Manaus diante das espantosas violência e miséria, do colapso dos sistemas de saúde, educação, transporte, da destruição da memória arquitetônica...?
A zona franca foi criada por um decreto-lei de dezembro de 1967. Desde então, centenas de indústrias foram atraídas pela renúncia fiscal, pelo valor baixo do terreno, pela mão de obra barata. Mas para quem serviu o desenvolvimento econômico do exuberante polo industrial de Manaus? Que modernidade é essa, que exclui 80% da população de uma vida minimamente digna? Foi assim durante o ciclo da borracha (1880-1915), quando a modernidade e o fausto de Manaus eram para poucos, enquanto na floresta os seringueiros trabalhavam para escravizar-se, como disse Euclides da Cunha.
Algo parecido aconteceu com o novo fausto da zona franca. Durante a ditadura, os prefeitos não tinham noção de cidadania, muito menos de urbanismo. Nos anos 1970, um certo coronel-prefeito empenhou-se em “modernizar” Manaus. Esse interventor era um homem bruto, tosco, especialista no combate à guerrilha e na repressão política, mas não no planejamento e na gestão de uma cidade, que já crescia vertiginosamente.
Atraídos pela oferta de empregos nas indústrias, no comércio e nos serviços, milhares de brasileiros da Amazônia e de outras regiões migraram para Manaus. Era o milagre da industrialização, a ilusão de um novo Eldorado. A cidade perdeu sua relação atávica com o rio Negro, os igarapés e a floresta. Os manauaras assimilaram da cultura indígena esse elo vital com a natureza, embora uma grande parte da elite e da classe média tenha sempre desprezado, explorado e humilhado indígenas, caboclos e negros.
Com a migração maciça, a política urbana, feita na base do remendo, da incompetência e de “tenebrosas transações” resultou numa cidade caótica. Os igarapés foram poluídos ou aterrados; a floresta no entorno de Manaus foi (e ainda é) invadida, derrubada, queimada. Essas áreas desoladas foram ocupadas por favelas, hoje bairros populosos, sem saneamento básico.
Com mais de 2 milhões de habitantes, Manaus teve em 2020 o pior Índice de Desenvolvimento Humano entre 16 regiões metropolitanas do país. Não é para menos: a desigualdade social é obscena.
Não é preciso citar as cenas de horror e sofrimento nos hospitais da cidade, nem as cenas macabras nos cemitérios da maior necrópole da Amazônia. Mas é preciso dizer que os amazonenses vêm sendo abandonados e humilhados há muito tempo pelos poderes públicos.
Em 2018, na esteira da operação “Maus caminhos” da PF, a juíza federal Jaiza Fraxe – uma magistrada notável e corajosa – decretou prisão preventiva de um ex-governador e sua esposa, acusados de participar de um gigantesco desvio de recursos públicos do Fundo Estadual de Saúde do Amazonas. Nas últimas décadas, são incontáveis os desvios de recursos destinados à saúde e à educação. Soma-se a isso a construção de obras tão monumentais quanto inúteis. Cito apenas dois exemplos, em períodos e contextos políticos distintos: o estádio Vivaldo Lima (1970) e a Arena da Amazônia (2014). Sem contar a terrível destruição ambiental e humana causada por rodovias e hidrelétricas.
A tragédia atual é fruto dessa longuíssima história de desgoverno, que não se esgota no ilícito, no descaso e no desperdício. No Amazonas, a exploração sexual de crianças e adolescentes é estarrecedora, como provaram duas CPIs sobre esses crimes, em que se envolveram políticos, empresários e até membros do judiciário. A suposta renovação política na figura do atual governador – um ex-radialista e apresentador de tevê – é um simulacro. Para serem eleitos em 2018, ele e outros aliaram-se a um candidato que se tornaria, de longe, o pior e o mais abjeto presidente da história.
Os adeptos mais fanáticos do capitão culpam e execram o governador e o prefeito pela tragédia. Mas esqueceram que são aliados? Em novembro de 2019, ao participar de um culto evangélico ao lado de Bolsonaro, o governador ressaltou que “a igreja tem um papel fundamental no combate à pobreza”, e pediu “sabedoria a Deus para conduzir o estado”.
Num Estado laico, é a gestão pública eficiente que desempenha um papel-chave no combate às iniquidades. E é o poder judiciário que julga e pune governantes e secretários acusados de superfaturar respiradores, comprados sem licitação. São muitos os crimes graves, por ação ou omissão, que culminaram em mais uma catástrofe. O governador do AM foi covarde ao ceder à pressão de deputados crapulosos e da parte mais irresponsável da população para abrir as atividades do comércio e de serviços em Manaus nas festas natalinas de 2020. Foi omisso por não bradar à imprensa e ao país que não havia estoque de oxigênio para abastecer os hospitais da capital e de cidades do interior. Aliás, o prefeito, o governador, o ministro da Saúde e o presidente já sabiam disso.
Cada um deles, a seu modo, lembra um personagem do conto “Estória nº3”, de Guimarães Rosa: “Cruel como brasa mandada […] incontido e impune como o rol dos flagelos”.
nota
NE – texto originalmente publicado em coluna do autor no Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo em 5 de fevereiro de 2021.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes. Da série “O lugar mais sombrio”, já publicou A noite da espera (2017) e Pontos de fuga (2019).