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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
O texto comenta as obras de reurbanização do Vale do Anhangabaú, sua recepção e primeiras impressões quanto a forma do novo espaço localizado no centro de São Paulo, buscando posicionar alguns dos discursos que permearam a sua concepção.

english
The text comment the re-urbanization works in the Vale do Anhangabaú, its reception and first impressions about the form of the new space located in São Paulo downtown, seeking to position some of the speeches that permeated its conception.

español
El texto comenta sobre las obras de reurbanización en el Vale do Anhangabaú, su recepción y primeras impresiones sobre la forma del nuevo espacio ubicado en el centro de São Paulo, buscando posicionar algunos de los discursos que impregnaron su concepción

how to quote

LUCCA NETO, Luiz de. Sobre o Vale do Anhangabaú, sua nova forma e recepção. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 250.02, Vitruvius, maio 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.250/8083>.


Vale do Anhangabaú a partir do Viaduto do Chá, São Paulo, junho de 2020
Foto Luiz de Lucca Neto


Fechado por tapumes desde meados de 2019 e transformado em um imenso canteiro de obras no centro da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú começa a tomar forma após a intervenção a qual esteve submetido no último ano, em um intenso processo de reconstrução. A fase de conclusão das obras coincide com o inesperado momento de isolamento social em razão da pandemia de Covid-19 que, no mês de junho de 2020, passou a mostrar sinais de enfraquecimento (1). Assim, apesar da volta das pessoas às ruas da cidade, é certo que ainda teremos de esperar algum tempo para que o espaço, inicialmente imaginado como palco da Virada Cultural, seja ocupado pela população.

O plano para a reurbanização do Vale surgiu em 2013, através de uma doação do banco Itaú à prefeitura de São Paulo (2), durante o governo de Fernando Haddad (PT). Com custo de execução estimado na casa dos milhões de reais (3) manteve-se na pauta do governo seguinte, de João Dória e de seu sucessor e atual prefeito Bruno Covas (PSDB), até o início das obras em 2019. Desde a sua divulgação, a proposta enfrentou a contestação de parte da população civil, movimentos sociais e grupos que sempre ocuparam a região do Vale do Anhangabaú, como os que se mobilizaram contra a supressão do espaço tradicionalmente usufruído pelos praticantes do skate.

A prioridade dada pela prefeitura à reurbanização do Vale, definida pelos vultuosos investimentos destinados a uma área consolidada e carente de manutenção e conservação, suscitava desconfiança, já que, na mesma época, o município passava por uma crise fiscal (4). Além disso, outras regiões da cidade demandavam atenção igual ou mais urgente. Este paradoxo esteve acompanhado por outras demandas não colocadas à população durante a concepção do projeto, levantando a questão da prioridade da reforma naquele momento, ou da real necessidade de uma completa reconstrução do Vale, que levaria a destruição completa do projeto de Jorge Wilheim e Rosa Kliass. Neste cenário, emerge a dúvida quanto aos limites da relação entre empresas privadas e poder público na definição dos espaços urbanos, que acabam por tolher a participação social em benefício de interesses privados de valorização.

Manchete do jornal Folha de S.Paulo, Vale do Anhangabaú durante comício da campanha Diretas Já, São Paulo, 17 de abril de 1984 [Acervo Folha de S.Paulo]

O intuito deste processo é operar, através do investimento em novas estruturas, a valorização de um determinado espaço urbano com resultados muito bem conhecidos. Na última década, as cidades brasileiras se voltaram profundamente a este modelo, potencializado com a realização dos megaeventos esportivos de 2014 e 2016 (5), cujo o caso da região portuária do Rio de Janeiro tornou-se emblemático do aprofundamento da gentrificação e da especulação imobiliária. Basta lembrarmos que o Vale do Anhangabaú também esteve no centro destes interesses, quando foi fechado para a realização de um dos eventos da Fifa durante a Copa do Mundo de 2014. Numa primeira versão dos atuais tapumes de obra, o espaço público foi reservado para a realização de um evento privado.

Esta dinâmica é geralmente pautada pela reunião de três atores: instituições financeiras, grandes empresas da construção civil e arquitetos mundialmente reconhecidos (6). Estes atores se reuniram, por exemplo, em ocasião do projeto “Nova Luz” em 2005, no governo de Gilberto Kassab (PSD), com a contratação do escritório de arquitetura suíço Herzog e De Meuron para a elaboração de um complexo cultural na região. O projeto, entretanto, foi abandonado após a organização de movimentos sociais locais que se opunham ao plano.

O projeto para o Vale do Anhangabaú carrega o nome do arquiteto dinamarquês Jan Gehl, cujas propostas buscam sustentar uma possível dimensão humana do planejamento das cidades, em oposição aos postulados urbanísticos modernos. Seu pensamento filia-se a uma tradição vinculada à obra da jornalista e ativista estadunidense Jane Jacobs, que, na década de 1950, protagonizou um embate ferrenho contra os planos de modernização do engenheiro Robert Moses para Nova Iorque. Sua obra Vida e morte das grandes cidades (7) tornou-se referência à crítica do urbanismo moderno e uma alternativa ao modelo de planejamento urbano definido como “rodoviarista”, tendo influenciado gerações de planejadores nas décadas seguintes.

Crítico das cidades modernas, Gehl cunhou o termo “síndrome de Brasília” para se referir à persistência do planejamento urbano moderno na segunda metade do século 20 (8). No entanto, a insistência de Gehl em pautar o debate urbanístico na chave do moderno e do antimoderno, nos parece hoje datada, deslocada no tempo, já que não representa mais a potência que teve no episódio protagonizado por Jane Jacobs nos anos 1950. Principalmente se pensarmos no certo consenso que se tem hoje em torno das ideias de adensamento, usos mistos em oposição à separação das funções urbanas, ou da decadência da ideia de priorização do automóvel nos deslocamentos urbanos. A ênfase neste discurso, portanto, não aparece mais como força transformadora da cidade como nos tempos de Jacobs, mas como algo que reafirma certos consensos (9) em torno do planejamento das cidades contemporâneas.

Acesso ao Vale do Anhangabaú a partir da Rua Libero Bardaró, São Paulo, junho de 2020
Foto Luiz de Lucca Neto

É neste ponto que o discurso e o modelo de planejamento defendidos pelo urbanista dinamarquês se unem perfeitamente aos interesses de renovação pautados para o centro de São Paulo. Apesar da relevância de suas intervenções em várias cidades pelo mundo, a defesa apologética da escala humana, ou de uma dimensão humanística do planejamento, soa como intenção vaga para as grandes cidades brasileiras, marcadas pela urbanização acelerada e pouco controlada. Expansão caótica, a primeira vista, mas que oblitera uma lógica intrínseca ao seu funcionamento, como nos ensinou Lúcio Kowarick (10). Do mesmo modo, a crítica de Gehl à Brasília nos remete às críticas desferidas à mesma por Bruno Zevi em 1959 (11), na medida em que aparece como algo estranho, que foge ao padrão das cidades europeias.

Visto do alto do Viaduto do Chá, enquanto ainda permanecem os tapumes que isolam o seu acesso, o Vale do Anhangabaú toma a forma de um grande eixo racionalizado, que pouco lembra a vitalidade das ruas e calçadas. Desta forma, ironicamente, remete a ampla perspectiva do Eixo Monumental de Brasília, mesmo que apresente uma finalidade distinta. Retirados os jardins centrais, que organizavam os seus espaços e que deram lugar às fontes iluminadas instaladas no piso, a ênfase parece estar no controle do espaço urbano.

Neste aspecto, o Anhangabaú segue a lógica da espetacularização, mas também inverte-se o seu uso tradicional como espaço público ao ser transformado em lugar comercial e palco para eventos, intenção exposta pelo modelo de sua implantação: investimento púbico prontamente cedido através de uma concessão (12). Será necessário aguardar algum tempo até a retomada do centro pelas pessoas após o período de isolamento social. Por enquanto, coloca-se em questão a viabilidade da importação acrítica dos modelos de intervenção urbana para as cidades brasileiras e latino-americanas.

notas

NA – Este texto participou do 3º Concurso de Ensaísmo da Revista Serrote e foi escrito em meados de junho de 2020, a partir da percepção das primeiras manifestações que surgiam sobre a finalização das obras do Vale do Anhangabaú.

1
NE – O artigo é de novembro de 2020 e não foi publicado na ocasião por problemas internos da redação. Nesse interim, houve um recrudescimento da pandemia, com a chegada da segunda onda com maior gravidade.

2
DURAN, Sabrina. Privatização da rua: como o banco Itaú, com aval da prefeitura, pretende redefinir o uso do centro de SP. Repórter Brasil, São Paulo, 2013 <https://bit.ly/3v5yt3L>.

3
O custo total anunciado das obras foi de 80 milhões de reais.

4
VANUCCHI, Luanda. Projeto para o Anhangabaú não deve ser prioridade. São Paulo, Labcidade FAU USP, 16 jan. 2016 <https://bit.ly/3buVRQh>.

5
WHITAKER, João Sette Ferreira. Um teatro milionário. In: JENNINGS, Andrew; ROLNIK, Raquel; LASSANCE, Antonio (Org.). Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? São Paulo, Boitempo/Carta Maior, 2014, p. 7-15.

6
MARICATO, Erminia. A Copa do Mundo no Brasil: tsunami de capitais aprofunda a desigualdade urbana. In: JENNINGS, Andrew; ROLNIK, Raquel; LASSANCE, Antonio (Org.). Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? São Paulo, Boitempo/Carta Maior, 2014, p. 17-24.

7
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2011.

8
SALVADOR, Laís Margiota; BARONE, Gabriela Pereira. Jan Gehl e o desenho urbano das cidades contemporâneas. De Copenhague a São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 217.04, Vitruvius, jun. 2018 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.217/7020>.

9
MARICATO, Ermínia; ARANTES, Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos B. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 7a edição. Petrópolis, Vozes, 2012.

10
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

11
DAUFENBACH, Karine. O capítulo brasileiro. Bruno Zevi e a narrativa por uma arquitetura orgânica. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 228.00, Vitruvius, maio 2019 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.228/7390>.

12
RODRIGUES, Artur. Após reforma milionária gestão Covas quer conceder Anhangabaú por 10 anos. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 mai. 2020 <https://bit.ly/2Qo2yMJ>.

sobre o autor

Luiz de Lucca Neto é arquiteto urbanista e graduado em história, mestrando em arquitetura e urbanismo e membro do grupo de pesquisa Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina da FAU USP.

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