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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
As enchentes e suas decorrências são democráticas? Pode-se dizer que interferem no mercado imobiliário, expondo fraquezas de uns enquanto valorizam outros? Problematizamos essas questões a partir da experiência recente de bairro em Governador Valadares.

english
Are floods and their consequences democratic? Can it be said that they interfere in the real estate market, exposing frailty in some while valuing others? We problematize these questions based on the recent experience in the area in Governador Valadares.

español
¿Son democráticas las inundaciones y sus consecuencias? ¿Podemos decir que interfieren en el mercado inmobiliario? Problematizamos estas cuestiones a partir de la experiencia reciente de un barrio de Governador Valadares (MG).

how to quote

DE OLIVEIRA GUIMARÃES, Cristiana Maria. A enchente e a Ilha. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 259.01, Vitruvius, fev. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.259/8419>.


Rio Doce com o Pico da Ibituruna ao fundo, janeiro de 2022
Foto Cristiana Maria de Oliveira Guimarães


Moro numa ilha!! Dizia isso aos meus sobrinhos quando eram menores, para garantir que eles achassem a história toda super aventureira e empolgante. Uma ilha de rio, uma ilha no meio do rio Doce. Meus dizeres funcionavam, as crianças ficavam curiosas e fantasiavam sobre como seria o meu cotidiano. Não há como negar o romantismo e certa aura de fantasia que envolvem as ilhas. Abrigam histórias de piratas e heróis de um lado, de outro são reconhecidas como lugares paradisíacos, agradáveis e únicos. Morar em um local assim, sem dúvida, é coisa de cinema, nas cabecinhas imaginativas das crianças e até de alguns adultos.

A ilha a qual me refiro é bem mais real. Trata-se de uma ilha fluvial, de 1.2 km², situada na porção urbana do rio Doce, em Governador Valadares, Estado de Minas Gerais. Configura-se como um único bairro, conhecido como Ilha dos Araújos, com 7659 residentes de acordo com os dados do Censo de 2010 (1). Localizado na área central da cidade, sua ocupação imobiliária remonta aos anos 1950, em consequência de um empreendimento mercadológico (2). Morar na Ilha, mesmo entre os valadarenses, traz seu charme e excepcionalidade. É em sua orla que muitos citadinos fazem as caminhadas e corridas ao longo da calçada arborizada e bem cuidada. Além de bares e restaurantes, concentra os ensaios fotográficos, de casamento, infantis ou debutantes. Junto ao rio Doce, compõe a paisagem do cartão postal da cidade o Pico da Ibituruna.

Mapa de Zoneamento do distrito sede de Governador Valadares. Anexo I
Imagem divulgação [CÂMARA MUNICIPAL DE GOVERNADOR VALADARES. Lei Complementar n. 201, 19 out. 2015]

Contudo, nem tudo são flores. Justamente o que lhe dá a graça, o rio a sua volta, traz ameaças. A Ilha dos Araújos está mapeada como área sujeita a inundações pela Lei de Uso e Ocupação do Solo vigente configurando um zoneamento especial e único:

“AIE Ilha – corresponde ao Bairro Cidade Jardim Senhora do Carmo, conhecido como Ilha dos Araújos, que por sua restrição de acesso e influência do regime pluvial, exige uma limitação do gabarito das edificações em 9m (nove metros)” (3).

A discussão desses parâmetros e suas consequências é assunto para outra hora. Voltemos a nossa ameaça: as enchentes. São elas históricas, como nos conta a figura abaixo.

Ocorrência de enchentes e sua cota de inundação partir de 1979
Imagem divulgação [Coordenação Municipal de Defesa Civil/PMGV, 2022 (mimeo)]

Estamos vivenciando a última dessa série. Entre os dias 9 e 11 de janeiro de 2022, na esteira das grandes chuvas que caíram em Minas, o rio Doce chegou à cota de 4,35m, com prenúncios de alcançar a terrível marca de 4,70m. O sistema de medição, realizado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto – SAAE municipal, marca a cota de inundação em 2,80m. Comparando os dois números, tem-se a ideia das dimensões da enchente. No evento registrado como a terceira maior enchente em quarenta anos, água e lama invadiram casas, ruas e quintais, não só na Ilha, mas em todos os bairros ribeirinhos de Governador Valadares.

Ilustração sobre a cota de inundação do rio Doce medida pela régua do SAAE
Imagem divulgação [Instagram da Prefeitura Municipal de Governador Valadares]

Na aflição das coisas perdidas, em meio ao cenário distópico dado pela lama, restos de coisas, portões quebrados e muito desespero, vêm os inúmeros questionamentos: “a Ilha não deveria ser ocupada”, “o rio está certo, está ocupando de volta seu leito”, “isso é resposta do ambiente, efeitos do aquecimento global”, “a culpa é da lama da Samarco que assoreou o rio”, “vejam a lama cheia de minério” (4). Os rumores e explicações não cessam nas esquinas cheias de vizinhos, em suas botas enlameadas, no esforço de limpeza e restituição daquilo que é seu lar. Indo além dos burburinhos, alguns procedentes, outros nem tanto, queremos aqui levantar outro ponto, à guisa de reflexões iniciais, pois análises mais precisas, demandam tempo e uma pesquisa mais acurada: como as enchentes evidenciam as desigualdades intrabairro?

Na Ilha, como é carinhosamente chamada na cidade, convivem casas simples, antigas, térreas, ainda com grandes quintais e pomares e exemplares novíssimos daquilo que poderíamos chamar de arquitetura do espetáculo – muros envidraçados, fachadas espelhadas, pé-direito triplo e telhados aerodinâmicos.

Há, sabidamente, uma diferenciação, justamente pela sombra das enchentes, entre a parte baixa, aquela mais facilmente inundada e a parte alta, a que escapa às altas do rio. No mercado, os imóveis da parte alta são mais valorizados tanto em desejo como em preço. Até aqui nenhuma novidade, pois todos queremos uma casa ou comércio livre das ameaças das chuvas de dezembro e janeiro. Como a demanda e oferta regulam os preços, os imóveis restritos da parte alta tornam-se mais caros. A reflexão que quero apresentar ultrapassa a lógica acima, mas se faz a partir dela. Nos parece que a renovação urbana segue a diferenciação entre parte baixa e parte alta, sendo a última aquela “remoçada” mais frequentemente.

Como saber isso? Como dito, trata-se apenas de uma reflexão inicial, afirmações e análises mais detalhadas, demandam tempo e pesquisa, o que será feito proximamente. Enquanto isso, por hora, é pertinente pensarmos essa hipótese partir do que a arquitetura nos conta: o estilo dos imóveis, as tipologias, a forma de ocupação nos lotes, materiais e outros. Resumindo, a análise da arquitetura nos permite, neste momento inicial de problematização, tecer algumas considerações.

Residência antiga, localizada na parte baixa do bairro, duramente atingida pela enchente, janeiro de 2022
Foto Cristiana Maria de Oliveira Guimarães

Uma preliminar visita a campo mostra que nas ruas mais afetadas, estão as casas térreas ou não, que ocupam o meio dos lotes, deixando a vista seus quintais frontais. Acabamento em alvenaria pintada e telhado cerâmico, em sua maioria duas águas, completam o quadro. Junto a essas estão construções assobradadas, com os mesmos acabamentos e telhados. Nesse grupo, os estilos são variados, passeiam entre o neocolonial, eclético, “estilo americano” e alguns flertes com os modernismos dos anos 1950 e 1960.

Residência antiga, localizada na parte baixa do bairro, duramente atingida pela enchente, janeiro de 2022
Foto Cristiana Maria de Oliveira Guimarães

De outro lado, compõem o conjunto da parte alta, as construções novíssimas, com seus pés direitos duplos ou triplos, fachadas espelhadas e muros envidraçados. Salta aos olhos, a monumentalidade posta, além das dimensões, pelos materiais imponentes, percebidos como luxuosos nas lojas de material de construção e acabamento.

Residências recentes, construídas na parte alta do bairro, sem danos causados pela enchente, janeiro de 2022
Foto Cristiana Maria de Oliveira Guimarães

Entre os extremos, branco e preto, estão os diversos cinzas. Salpicadas, entre parte alta e parte baixa, estão as construções identificadas como representantes dos anos 90 e 2000. As localizadas na parte baixa contam com recursos arquitetônicos de proteção às oscilações do rio, o que não se percebe nas construções mais antigas. Vejamos alguns mais comuns:

  • a presença de pilotis, destinado à garagem. Nessa solução, em caso de enchente, os carros são retirados e não há maiores prejuízos;
  • são construídas elevadas em relação à rua, com escadas e rampas para o acesso;
  • revestimentos térreos em materiais impermeáveis, como azulejos, pedras e cerâmicas.

Assim, exposto o quadro geral de ocupação da Ilha, enfrentemos nossa questão: com as enchentes mais frequentes e intensas, os imóveis na ilha serão desvalorizados? Penso que a resposta não pode ser universal. Nossa hipótese é de que resulte uma polaridade: a parte alta fique cada vez mais valorizada enquanto o oposto acontece com a parte baixa. Mais desejados e exclusivos, os imóveis da parte alta, tornam-se ainda mais caros.

Na parte baixa, muito massacrada pelos resultados das últimas enchentes, o preço dos imóveis cairá bastante. Soma-se, aqui em oposição à dinâmica da parte alta, a maior quantidade de casas antigas, muitas das quais deterioradas, tanto pelo próprio tempo de construção, como pela falta das devidas manutenções e, ainda, pelos desgastes das águas. Logo, esses imóveis, e principalmente, os moradores dessas residências, muitos dos quais idosos e residentes tradicionais da Ilha, estarão sujeitos às ofertas tentadoras e indignas vindas do mercado imobiliário.

Explico o argumento: o bairro mesmo sujeito às enchentes, possui atrativos únicos. O preço jogado lá embaixo, pelas circunstâncias acima mencionadas, tornará o negócio atraente a partir do seguinte raciocínio: “estou comprando o lote e não a construção”. Assim, os futuros compradores garantem um lote na área central, na exclusividade da Ilha, por um preço irrisório, compensador dos riscos e desventuras do local anualmente ameaçado pelos humores do rio Doce. Além disso, é possível evitar eventuais futuros prejuízos utilizando-se de recursos arquitetônicos protetivos como já visto. Facilmente, a conta fecha.

Contudo, nessa operação matemática há uma sobra. Aqueles e aquelas que não conseguem participar dessa lógica mercadológica, os antigos moradores com parcos recursos econômicos. Além das negociações de mercado, quais seriam os destinos possíveis a eles? Esses moradores terão a opção de resistir a possível venda do seu imóvel, tal como o fez a personagem da Sônia Braga no filme Aquarius (5)? Terão esses as mesmas possibilidades e poder? A hipótese aqui é negativa, infelizmente.

As construções simples, que já apresentavam, antes da enchente, manutenção precária, nos permitem especular sobre uma situação de insuficiência de recursos – financeiros ou de outra ordem – para fazer frente às reformas e cuidados necessários à permanência da vida ali. Aumentados os danos, supõe-se que se aumentaram as impossibilidades.

Alcançamos o ponto de preocupação que motivou a reflexão aqui apresentada: o perigo de um tipo específico de gentrificação, a expulsão de moradores tradicionais, não provocada pela supervalorização das áreas vizinhas, mas pelo seu inverso, uma excessiva desvalorização das suas casas e comércios, que pode, potencialmente, ser usufruída pelo mercado imobiliário.

Completando nossa hipótese, a maior parte desses moradores são idosos e/ou ocupantes dos seus imóveis a décadas. Depois de anos na mesma vizinhança, relações similares, como a do pequeno comércio da caderneta, serão reencontradas em outro local? O cotidiano como fica? Há outros pontos a serem considerados: o valor, super depreciado, pago pelo seu imóvel possibilitará a compra de outro em qual região da cidade? Será possível adquirir a mesma casa grande com quintais?

Trata-se, a nosso ver, de uma população desprotegida e uma situação de vulnerabilidade. População que, caso o mercado incida sobre seu cotidiano, talvez, nossa hipótese, não tenha como fazer frente às suas ações. Desvela-se assim, objetivo deste texto, os riscos do cotidiano de um bairro – vidas, moradias, pequeno comércio, relações de vizinhança e afetos – quando à mercê do jogo do mercado imobiliário. Vidas sujeitas ao valor de troca, mandante das lógicas do fazer-se e refazer-se das nossas cidades. Infelizmente.

notas

1
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro, IBGE, 2012.

2
Dados da pesquisa desenvolvida pela mestranda Natália Lourdes dos Santos, sob orientação da professora doutora Patrícia Falco Genovez, no âmbito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Gestão Integrada do Território – GIT/Univale.

3
Para maiores informações confira a legislação de uso e ocupação do solo, especificamente a Lei Complementar nº 201 de 19 de outubro de 2015 e suas alterações: CÂMARA MUNICIPAL DE GOVERNADOR VALADARES. Lei Complementar n. 201, de 19 de outubro de 2015 <https://bit.ly/3hrsfpD>.

4
No dia 5 de novembro de 2015, aproximadamente às 15h30, aconteceu o rompimento da barragem de Fundão, situada no Complexo Industrial de Germano, no Município de Mariana/MG. Além do desastre ambiental, a tragédia ceifou a vida de 19 pessoas. O empreendimento, sob a gestão da Samarco Mineração S/A, empresa controlada pela Vale S/A e BHP Billinton, estava localizado na Bacia do rio Gualaxo do Norte, afluente do rio do Carmo, que é afluente do rio Doce. Os rejeitos e a lama da barragem chegaram em Governador Valadares causando importantes danos e impactos sociais e ambientais. No dizer miúdo dos valadarenses, depois disso o rio nunca mais foi o mesmo, nem mesmo as enchentes.

5
Aquarius. Direção de Kleber Mendonça Filho. Produção de Emilie Lesclaux e Walter Salles. Brasil/França, Vitrine Filmes e Vitagraph Films, 2016.

sobre a autora

Cristiana Maria de Oliveira Guimarães

Cristiana Guimarães é arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e Urbanismo e doutora em Ciências Humanas, sendo os três títulos concedidos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do Instituto Federal de Minas Gerais campus Governador Valadares.

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