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português
Essa crônica é fruto do desconfortável choque entre a ousada reflexão do processo de projeto de Paulo Mendes da Rocha e aquilo que vemos no uso cotidiano do MuBE, uma de suas obras-manifesto.
english
This chronicle is the result of the uncomfortable clash between the bold reflection of Paulo Mendes da Rocha´s design process and what we see in the daily use of MuBE, one of his manifesto-works.
español
Esta crónica es el resultado del incómodo choque entre la audaz reflexión del proceso de diseño de Paulo Mendes da Rocha y lo que vemos en el uso diário de MuBE, uno de sus manifiestos-obras.
BARBOUR, Vivian. Entre o Paulo-livrinho e o Paulo-MuBE. Um convite à ação. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 261.03, Vitruvius, abr. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.261/8506>.
Acordei de manhã e, sem planejar, peguei aquele livrinho do Paulo Mendes da Rocha que estava descansando na prateleira. Com muitas recomendações de que o Maquetes de Papel (1) era um singelo mas potente mergulho no fazer arquitetônico, comprei o livrinho — edição incrível da saudosa Cosac Naify — e o deixei na prateleira pra ler num momento de ócio.
Pois nessa manhã de domingo o livrinho me chamou. Não foi premeditado nem nada. Foi como desses encontros que acontecem sem nenhuma previsão nas ruas da cidade. Foi como flanar por aí e ter seu olhar tomado por algo que você não esperava. Pois flanando pela sala o livrinho tomou minha mão.
Que oportuno! Como a boa e intencional arquitetura definida por Paulo Mendes da Rocha, o livrinho foi muito oportuno naquele momento. Mergulhei em suas páginas, o li de cabo a rabo numa sentada. Lendo no ano em que Paulo se foi, o sentimento e o apego pela leitura ficaram ainda mais fortes.
O livrinho é uma conversa descontraída sobre o fazer arquitetônico, sobre o processo de projeto. Projeto, como nos mostra Paulo, é criação, experimentação, interdisciplinaridade. Mais do que tudo, projeto é intenção. E mais, ouso complementar, projeto é intencionalidade política. O que eu quero com esse projeto? Como ele se relaciona com as pessoas e com a cidade? Paulo nos convida a um constante olhar crítico: perguntem-se, por que o projeto é dessa forma e não de outra? Por quê? Essa pergunta traz inexoravelmente engajamento e intenção aos processos de projetar, contemplar e experienciar a arquitetura.
Ler a aula generosa de Paulo na manhã de domingo foi absolutamente inspirador. Como disseram Catherine Otondo e Marina Grinover na apresentação do livrinho, dá pra ouvir a voz do arquiteto ressoando em nosso ouvido. Inspirada por suas reflexões, fui viver a cidade.
Fazia tempo que queria visitar a exposição de Amílcar de Castro no Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia — MuBE. Citando Paulo, essa foi uma conexão oportuna: por ele inspirada, vou a uma exposição sediada em projeto por ele assinado! Mas não vou de carro — essa saia de uma tonelada pra acomodar meu corpo e seus cinquenta e poucos quilos (citando Paulo). Vou de bicicleta. Vou viver a cidade, me abrir para as suas oportunidades, ao nível do pedestre, ao nível da rua. Vou deixar meu domingo ser guiado pelo Paulo!
Lá fui eu então ao MuBE passando, no caminho, por uma Paulista aberta, silenciosa de carros e pulsante de batuques, passantes, bicicletas, pessoas, risadas. A cidade é mesmo uma fonte inesgotável de encontros e possibilidades! No meio de tantos retrocessos vividos atualmente em nossa vida pública, em nossa cultura e democracia, brindo a subversão latente de ideias e experiências como a Paulista aberta.
Mergulhada cada vez mais nas provocações de Paulo e da cidade, chego no MuBE. Desço da bicicleta, busco informações da entrada. “É aqui moça, mas você não pode entrar com a bicicleta”, “Por quê? Vocês não têm bicicletário?”, “Não, você tem que deixar sua bike na rua”. Eu e o Paulo que pulsava em mim tomamos uma rasteira. Livre na cidade de fora, me senti repelida pela cidade-MuBE. Como pode que um projeto-manifesto como este não tenha bicicletário? Fica a questão tal como proposta por Paulo: por quê?
Por que uma instituição como o MuBE não tem lugar para estacionar bicicletas? É culpa do Paulo, que não previu um cantinho para encostar as magrelas? É culpa dos órgãos de preservação, que em suas decisões muitas vezes puristas e descoladas da realidade brindam a originalidade dos projetos sem se sensibilizarem pelo cotidiano, pelas pessoas e pelos usos no presente? Ou é culpa da instituição apenas, que nunca se preocupou com a recepção dos visitantes que optam por irem ao museu de bicicleta?
Foi uma grande decepção esse desencontro entre o Paulo-livrinho e o Paulo-MuBE. Estava ali latente um descolamento entre reflexão e prática. Uma dolorosa oposição entre a dinâmica da vida e a paralisia dos edifícios e das instituições. No campo do patrimônio cultural, tais descolamentos são muito comuns. Avanços teóricos para uma compreensão alargada do patrimônio, versus uma prática hegemônica, que reverbera vieses elitistas e a busca de originais, achatando a história e virando as costas para o presente.
Será que o MuBE, tombado em 2018 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo — Conpresp, é uma vítima desse modus operandi? Talvez sim, mas não só. Pesquisando sobre como os edifícios públicos em São Paulo acolhem as bicicletas, fica claro que o museu não é um caso isolado de falha para com o básico da cartilha do “cidade para pessoas” (2). Dói pensar, de todo modo, que por trás dessa negativa, há toda a filosofia, crítica e intencionalidade de Paulo. Fica então a questão: o que nos impede de pensar a cidade para as pessoas e também fazer a cidade para as pessoas? Quando foi que nós, pessoas e instituições, nos acomodamos com o regurgitar nossas reflexões e intenções para o mundo, sem nos preocuparmos com o quanto tudo isso de fato transforma e afeta nossa realidade, nossa experiência cotidiana?
Olhando para a cidade a partir da ótica do patrimônio cultural, não consigo me acostumar com a ideia de que bens reconhecidos como de interesse para a preservação permaneçam sem uso e/ou deteriorados e/ou avessos à cidade. É a realidade contradizendo todas as nossas argamassas discursivas... Não importa se é porque tem burocracia entre órgãos públicos, não importa se é porque tem imbróglio jurídico, de herança, se é porque falta dinheiro. Nunca me acostumei com essas edificações sem uso ou em ruínas ou fechadas para a cidade. Não consigo me acostumar.
É possível fazer muito mais pela nossa cultura, pelos bens culturais, pela nossa cidade. Temos um cardápio de ideias e instrumentos, do mais básico ao mais sofisticado, todos com muita potência e toda condição de sair do papel e transformar a realidade. Não é possível que nos acostumemos com revezes burocráticos ou com tecnicidades comezinhas no pensar as instituições, a cultura e a cidade. A começar pela simples instalação de um bicicletário no MuBE, não consigo me acostumar que nos acomodemos longe de nossa responsabilidade de construir uma cidade democrática, livre e para as pessoas.
O choque entre o Paulo-livrinho e o Paulo-MuBE foi tão grande que, uma vez dentro do Museu, não consegui ver exposição alguma. Peguei o caderninho e, em fúria, comecei a escrever. Diante de todo esse paradoxo, abracei a pergunta-crise do Paulo-livrinho: por quê?
notas
1
ROCHA, Paulo Mendes da. Maquetes de papel. São Paulo, Cosac Naify, 2007.
2
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo, Perspectiva, 2013.
sobre a autora
Vivian Barbour é consultora e pesquisadora em patrimônio cultural e urbanismo e advogada. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP, é membro da Association of Critical Heritage Studies. Autora do livro O patrimônio existe? Sentidos da Vila Itororó (Letramento, 2019).