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português
A modernização da praça Portugal, em Bauru, esconde ambiguidades entre projeto de mobilidade e projeto urbano, e principalmente, do jogo de interesses entre poder público e empreendimentos privados de grande porte.
english
The modernization of praça Portugal, in Bauru, hides ambiguities between the mobility project and the urban project, and mainly, the game of interests between public authorities and large private enterprises.
español
La modernización de la praça Portugal, em Bauru, esconde ambigüedades entre el proyecto de movilidad y el proyecto urbano, y principalmente, el juego de intereses entre las administraciones públicas y las grandes empresas privadas.
RETTO JR., Adalberto. Sobre a modernização da praça Portugal. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 262.03, Vitruvius, maio 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.262/8502>.
Uma figura nodal aparece no debate da cidade de Bauru rompendo a inércia do período pandêmico: a denominada “modernização da praça Portugal”. Uma praça-rotatória, nuance terminológica que esconde uma ambiguidade entre movimento e forma, relações entre projeto de mobilidade e projeto urbano e jogo de interesses entre poder público e empreendimentos privados de grande porte.
Para melhor compreender os contornos desse estatuto ambíguo, vale reconstruir a genealogia dessa figura, tanto na história da cidade europeia como na estruturação da expansão da cidade do Oeste Paulista, em quadrícula regular.
Na cidade europeia, o surgimento e a experimentação das rotatórias (rond-point em francês) nos remete aos parques de caça da burguesia e aos jardins clássicos no século 18. Mais tarde, aos Grandes Trabalhos do Barão Haussmann, na construção da Cidade Luz, Paris do século 19. Aquele foi um momento decisivo quando os inventores da nova ciência chamada "urbanismo" (Ildefonso Cerdá, Camillo Sitte e Joseph Stübben) buscavam soluções para os conflitos entre veículos em encruzilhadas urbanas. Mas é a Eugène Hénard, em 1906, que devemos a invenção da "rotatória", elemento que os arquitetos e engenheiros de tráfego do século 20 continuaram a usar na construção da cidade moderna.
Quando analisamos as cidades em quadrícula, ou seja, a maioria das cidades do Centro-Oeste do Estado, formadas pelo binômio café-ferrovia, temos a passagem de uma trama ortogonal a um dispositivo centrípeto e centrífugo que, no caso de Bauru, forma um anel externo sinalizando a expansão da cidade em várias direções. Algumas dessas praças rotatórias aludem a países cujos imigrantes foram relevantes na formação e construção da cidade: praça Portugal, praça do Líbano, praça Itália, praça Chiujiro Otake (Japão), praça Alemanha.
Se a eficácia das rotatórias está comprovada em termos de tráfego, sua sistematização, resultante de uma visão excessivamente instrumental, entra pouco a pouco em colapso, no momento em que uma nova concepção de cidade e de espaço público está em voga. Nessa nova concepção, estruturas semelhantes são reinventadas até mesmo como pontos de drenagem urbana e, por que não dizer, como mecanismos de articulação e construção de urbanidade da matriz viária contemporânea.
Seguindo esta linha de raciocínio, uma cuidadosa abordagem de planejamento poderia construir uma narrativa importante articulando mobilidade, planejamento urbano e história da cidade e, a partir de um "paradigma sistêmico”, repensar a estrutura excêntrica ao centro histórico como nós de urbanidade, mobilidade e acessibilidade, funcionando como peças do vocabulário atual do projeto da cidade contemporânea. Pensar uma praça-rotatória com tais características, dentro de um plano de mobilidade mais amplo, não só daria visibilidade a uma articulação constitutiva funcional e física, mas também faria repensar a noção de pertencimento e equilíbrio da cidade, que iria além do privilégio de obras apenas no vetor Sul de Bauru. Do ponto de vista funcional, abrangeria as funções urbanas e suas inter-relações, enquanto do ponto de vista físico seria a congregação de todos os espaços — da tridimensionalidade, da matéria da realidade urbana, dos canais materiais de ligação e da denominada “cidade física”. O aspecto simbólico e político seria traduzido na construção de uma narrativa para a cidade pensada de forma equânime e inclusiva.
Portanto, a denominada “modernização da praça” poderia ser pensada com ações projetuais que demonstrassem eficiências e acionassem novas relações entre infraestrutura e espaço público, dando corpo à necessidade de reagir à demanda de acessibilidade mediante estruturas capazes de incidir de fato no desenho urbano.
Dentro dessa perspectiva, em vez de propor meras faixas de pedestres, marcadas em vermelho na proposição publicada, a ação projetual poderia responder, de forma responsável, às linhas de orientação e opções estratégicas apresentadas em instrumentos legais que alertam para a necessidade de reflexão mais ampla e integrada de todos os sistemas identificados e baseados no Desenho Universal. Nesse contexto, se visto apenas como ideia da eliminação de barreiras arquitetônicas, o conceito de acessibilidade parece simplista e limitado, pois seu único propósito é cumprir uma obrigação legal que só conseguirá beneficiar e satisfazer às exigências de duas “categorias” de usuário: do automóvel e do habitante do grande equipamento beneficiado.
A investigação no âmbito do projeto urbano, portanto, poderia valorizar os fenômenos de descontinuidade de superfícies, recuperando não só a visão da praça para a escala humana, mas também a necessidade de redesenho de calçadas e, assim, ligar questões relativas à qualidade morfológica e espacial da estrutura urbana. Estaríamos, assim, respondendo a um dos maiores desafios da cidade contemporânea que, para arquitetos e urbanistas, consiste em colocar a acessibilidade como instrumento de projeto para elevar a qualidade dos espaços, e conceituando o projeto urbano como motor fundamental e imprescindível de cada cidade e atividade.
Pensar o projeto da cidade contemporânea significa relacionar-se com elementos urbanos e promover sistemas qualitativos de conexões, como elementos estruturantes da própria forma da cidade, pois a qualidade do urbano não reside somente na dotação de serviços e equipamentos de grande impacto, mas na qualidade da experiência do cidadão, que se apropria da cidade quando e se esta lhe for acessível.
As intervenções a favor da mobilidade urbana, portanto, não contemplam somente a exigência de atingir o lugar de destinação, mas devem propor uma releitura do espaço valorizando a fruição e a percepção, a fim de recompor as diversas partes urbanas em uma sequência narrativa unitária para garantir, a cada uma e ao todo, efetivo reconhecimento. Ocorre integrar as perspectivas na grande e na pequena escala, nesse momento em que a acessibilidade deriva da interação entre os dois elementos principais, componentes da estrutura urbana: espaço-funcional (as atividades urbanas) e espaço-temporal (as redes de transporte), através dos quais pode haver integração osmótica, como forma de regeneração da excessiva fragmentação da cidade contemporânea.
E assim, cada elemento, cada material, cada superfície, cada volume, cada feixe de luz é funcional para a proposta e compõe o discurso de uma visão, uma especificidade, uma linguagem e uma vontade comunicativa. Essas escolhas são fundamentais para delinear o experimento perceptivo que dá vida tanto às narrativas experienciais pessoais quanto às percepções coletivas, e à capacidade dos homens de ver e compreender a realidade que os cerca.
nota
NE — Este artigo foi originalmente publicado no Jornal da Cidade de Bauru. RETTO JÚNIOR, Adalberto da Silva. Sobre a modernização da praça Portugal. Jornal da Cidade de Bauru, Bauru, 29 ago. 2021.
sobre o autor
Adalberto da Silva Retto Júnior é professor (Unesp), doutor (FAU USP/Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia, 2003) e pós-doutor (IAUV, 2007). Atual coordenador do curso internacional de especialização lato sensu “Planejamento urbano e políticas públicas: urbanismo, paisagem, território”, foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).