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português
A partir de um estudo de caso em uma residência de 1930, em Pelotas/RS, que foi recentemente demolida, registra-se a história dessa edificação e alerta-se às perdas sociais que estão ocorrendo com a especulação imobiliária e expansão dos centros urbanos.
english
Based on a case study in 1930’s residence, in Pelotas/RS, which was recently demolished, the history of this building is recorded and the social losses that are occurring with real estate speculation and expansion of centers urban areas are explained.
español
A partir de un estudio de caso en una residencia de 1930, en Pelotas/RS, recientemente demolida, se registra la historia de esta casa y las pérdidas sociales que se están produciendo con la especulación inmobiliaria y la expansión de los centros urbanos.
CABRAL, Lisiê Kremer; CORDEIRO, José Henrique Carlucio; OLIVEIRA, Ana Lúcia Costa de. A casa da Rua Andrade Neves. Arquitetura e memórias. Minha Cidade, São Paulo, ano 23, n. 269.02, Vitruvius, dez. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/23.269/8673>.
No ano de 2020, em Pelotas RS, a possível demolição de uma residência construída nos anos de 1930, situada na esquina das ruas Antônio dos Anjos e General Osório, popularmente conhecida como casa Kraft, foi motivo de protesto pelos habitantes da cidade. O prédio, que teve sua demolição iniciada, estava liberando espaço para a obra de uma farmácia, porém uma liminar da justiça acabou interrompendo a atividade. O contexto mobilizou e uniu membros da sociedade, incluindo arquitetos e representantes da Universidade Federal de Pelotas, com a finalidade de impedir a destruição do prédio, em conformidade com a relevância da casa, enquanto memória cultural relatada pela população (1).
Os espaços urbanos são organizados e remodelados de acordo com as necessidades sociais, sendo atualmente caracterizados pela cultura do consumo, ocasionando expansão do centro comercial, descentralização territorial residencial e locais de adensamento em pontos afastados da urbe. A cidade de Pelotas, localizada na região sul do Rio Grande do Sul, antes delimitada pelas áreas de centro e periferia, teve como particularidade a existência de espacializações para outras zonas, configurando ambientes fragmentados e de acesso apenas à parte da população. Essa separação entre zonas, aliada a expansão do centro comercial da cidade, potencializou movimentos de especulação do mercado imobiliário (2).
Este trabalho aborda o problema da perda da memória coletiva no contexto das demolições do patrimônio edificado em benefício do mercado imobiliário. Dessa maneira tem-se como objetivo identificar e registrar os bens de caráter material e imaterial que se encontram relacionados às edificações residenciais sujeitas à especulação. Assim, o presente estudo apresenta e valoriza um momento da arquitetura pelotense, conscientizando e colaborando com ações de preservação.
Tendo em vista o processo de expansão do centro comercial ocorrido na cidade de Pelotas/RS, desenvolveu-se um estudo de caso, constituído de uma residência localizada na Rua Andrade Neves nº 3109, demolida em 2011, e teve como metodologia pesquisa bibliográfica, documental e conversas com antigos moradores dessa edificação. Observa-se que até os dias atuais o terreno permanece vazio, consolidando o argumento que sua demolição ocorreu em virtude de especulação imobiliária.
A Casa da Rua Andrade Neves e sua arquitetura
No século 19, a arquitetura colonial começou a apresentar sutis modificações em seu modo de construir. A implantação no lote permitiu o uso de recuos laterais e frontais ajardinados e resguardados por gradis de ferro; as fachadas receberam ornamentação com frontões, colunas e escadas; aumentaram o número de águas das coberturas; surgiu o acabamento nas platibandas, às vezes demarcadas com louças; as residências foram elevadas com porão e óculos permitindo a circulação de ar. O fim do sistema escravocrata e a introdução de imigrantes no país expandiu a renovação no modo de morar, sendo atualizadas as técnicas construtivas, com uso de tijolos, valorizando-se a iluminação e a ventilação, por meio de recuos, e a higiene, com redes de esgoto e calçadas revestidas. A consolidação dessa nova forma de construir se fortaleceu a partir dos anos 1900, com a arquitetura eclética (3).
Em 1920, iniciou a propagação do estilo neocolonial, o qual possui semelhanças com o estilo Missões, diferenciando-se, o último, pela presença de menor rigidez na implantação, ornamentos mais elaborados e telhado cerâmico com maior número de águas (4). De influência hispano-americana, o estilo Missões foi referenciado em parâmetros utilizados no período colonial pelas missões espanholas na California e no México (5). Entre os elementos decorativos eram usualmente encontrados azulejos, arcos, colunas torcidas, pinhas e frontões. O espaço para alpendre era comum, às vezes com cobertura individual e as construções de dois pavimentos poderiam contar com balcões (6).
O estilo Missões, também denominado como Californiano, ou ainda, neocolonial hispano-americano, atingiu seu ápice, no Brasil, em São Paulo, entre os anos de 1920-1930. A nova técnica construtiva com concreto armado, em conciliação com a propagação da linguagem Art Déco, permitiu sua multiplicação em edificações de uso residencial (7). No Rio Grande do Sul, o estilo Missões foi disseminado nos anos 1940 e tinha como intuito restabelecer a ligação entre a cidade e o ambiente rural (8). Essa linguagem, devido ao amplo repertório estilístico, foi difundida em diversos municípios do estado gaúcho, encontra-se presente em Dois Irmãos, Garibaldi, Jaguarão, Novo Hamburgo, Pelotas, Porto Alegre, Presidente Lucena, São Leopoldo, São Lourenço do Sul, Três Passos e Torres (9).
Ao longo dos anos, na cidade de Pelotas, como no restante do país, ocorreram transformações na forma de morar. A construção colonial retirou-se para a consolidação da arquitetura eclética, a qual passou a representar o prestígio social. A presença de recuos laterais, além de melhorar o conforto e a higiene dos ambientes, possibilitou a eliminação das alcovas. Posteriormente, entre 1900 e 1930, com o desenvolvimento industrial, as residências, grande parte em madeira, foram idealizadas para atender aos trabalhadores e aos ambientes comerciais, surgindo as vilas operárias e os loteamentos populares. Em 1924, foi edificada a primeira residência da cidade em estilo neocolonial e a partir do final dos anos 1930 ocorreu a propagação do movimento moderno (10).
Schlee (11), apresenta uma lista de projetos arquitetônicos, do Arquivo da Prefeitura Municipal de Pelotas, que foram realizados entre os anos de 1930 e 1949 e exemplificam a produção arquitetônica do município à época. Nessa relação, nove construções são representantes do estilo Missões, e entre elas encontra-se o “Bungalow sem proprietário” localizado na Rua Andrade Neves nº 1059. Observa-se que a numeração das construções dessa rua foi alterada no decorrer dos anos, de forma que o nº 1059 tornou-se nº 3109. A Rua Andrade Neves foi estabelecida no ano de 1815 e três anos após contava com 14 edificações, era caracterizada pela alegria de seus graciosos jardins, chamou-se Rua das Flores até o ano de 1869 quando passou a denominar-se Rua Andrade Neves (12).
De maneira a relatar a trajetória dessa residência, tem-se o documento de registro do imóvel, do 1º Cartório de Notas, notário Dr. Martim Soares da Silva, em Pelotas, apresenta um terreno localizado na Rua Andrade Neves, nº 1059, com 20 metros de frente por 40 metros de fundos que foi comprado por Martial José Dias no ano de 1929 por oito contos de reis. Posteriormente, consta que o primeiro notário vendeu o terreno com uma residência de material, com aberturas, para a Rua Andrade Neves ao espanhol Miguel Castro Fuentes, por 20 contos de reis, em 1935. Na década de 1940 a casa foi adquirida por Tito Bojunga Kremer e passou por reformas.
A fachada frontal da residência, podia ser dividida em três blocos. O bloco mais à direita, que permitia o acesso aos ambientes internos, era caracterizado pelo alpendre, possuía o guarda corpo vazado, quatro colunas referentes à ordem dórica, direcionando ao ecletismo, e cobertura com telhado cerâmico aparente. O volume central contava com generosa esquadria com arco pleno, com elemento decorativo na base. Pela lateral, no alpendre, encontrava-se uma porta de entrada. Duas pilastras emolduravam o espaço, acima do ábaco havia um adorno com telhas cerâmicas que eram finalizadas com um pináculo. Os frontões de forma sinuosa, referência ao estilo barroco, possuíam em seu centro um elemento de forma circular. O terceiro elemento, à esquerda, seguia características semelhantes ao seu próximo, apenas com diferenciações na esquadria e a parede que era levemente recuada.
À esquerda da construção, posição em que se encontravam os ambientes de serviço e banheiros, existia um bloco independente, de um único pavimento, sem porão, que acomodava a lavandeira e o depósito. A implantação, com recuo frontal, lateral e de fundos, propiciou espaços de lazer cobertos por vegetação. A entrada dava-se pela Rua Andrade Neves, porém o terreno tinha extensão até a Rua General Osório, onde encontrava-se a garagem para veículos na linguagem Art Déco, que provavelmente foi construída posteriormente.
A implantação da residência foi encontrada no mapa aerofotogramétrico de Pelotas, de março de 1998, código de localização 730485. Segundo esse arquivo pode-se identificar que a construção encotrava-se recuada frontalmente a 5,30 metros do alinhamento predial, o volume principal da casa possuia área de 179,00 m², a garagem 39,26 m² e o lote 997,70 m². Observa-se que havia a presença consideravel de vegetação.
Imigração da família Kremer
Propõe-se um breve retrospecto sobre a origem da família Kremer para identificar os moradores da casa da Rua Andrade Neves. Tendo em vista que se trata de um sobrenome alemão, investigou-se a respeito da imigração e genealogia dessa família.
A campanha de imigração europeia, com destino ao Brasil, iniciou no ano de 1822, com intuito de equilibrar os costumes de origem portuguesa, propiciar mão de obra e branquear a população (13). A partir de 1824, os estrangeiros de nacionalidade alemã começaram a migrar para o estado do Rio Grande do Sul (14).
O sobrenome Kremer, originário da Renânia, na região oeste da Alemanha, fixou-se no Rio Grande do Sul através do casal de imigrantes Johann Kremer, nascido em Mettnich, e Julianne Kremer, de Künbdchen (15). Pedro Guilherme Kremer (1850-1925), brasileiro, filho desses imigrantes alemães, consolidou sua família em Picada das Antas, zona rural de São Lourenço do Sul, no ano de 1872. Sua profissão como caixeiro viajante permitiu a construção, no ano de 1902, de uma edificação que atendia aos usos residencial e comercial (16). Segundo Hammes (17), a construção foi erguida pelo próprio proprietário Sr. Pedro Guilherme Kremer, o qual foi intitulado pelo autor como construtor. Essa casa foi habitada até meados de 1948, sendo posteriormente vendida.
Frederico Guilherme Kremer, um dos filhos de Pedro, nascido na colônia de São Lourenço do Sul em 1874-1948 casou-se, no ano de 1899, com a pelotense Maria Luiza Siqueira Bojunga (1882-1936) (18). O casal estabeleceu-se na cidade de Pelotas, na Rua Miguel Barcelos nº 109. Dessa união nasceu Tito Bojunga Kremer (1908-1998), o qual adquiriu o imóvel da Rua Andrade Neves, nº 3109, em 31 de julho de 1941 na cidade de Pelotas, fixando residência. Nessa casa nasceu Flávio Azambuja Kremer (1941-2012), que posteriormente, casou-se com Gilda dos Santos Kremer (1939-2020) consolidando sua família, tendo duas filhas e seis netos.
A família Kremer foi ativa no contexto comercial tendo em vista sua relação com os seguintes serviços: a tipografia da firma Franck & Kremer, importadores de fazendas e miudezas, situada na Rua Andrade Neves, nº 124; a Drogaria H.C. Bojunga, que se encontrava na Rua General Neto, nº 60, e em 1925 no endereço da Rua Quinze de novembro nº 713; uma sala, localizada no entorno da Praça Cel. Pedro Osório, em que o Sr. Tito prestou serviços para companhia de seguros.
Memórias em perda
A cultura é formada pela transmissão de saberes que ocorrem entre diferentes indivíduos com o passar dos anos, portanto, a experiência adquirida por gerações acaba desenvolvendo uma memória acumulada nesses indivíduos. Dessa forma, a cultura de uma sociedade é consolidada e reconfigurada a todo instante, em cada produção artística, religiosa, intelectual, entre outros (19). A arquitetura de uma edificação é um símbolo consolidado de forma material das questões históricas, sociais e políticas, portanto é um produto dos comportamentos sociais de um grupo de pessoas. Assim, entende-se que a arquitetura é uma forma de manifestação cultural (20).
A casa e o habitar, temas relacionados ao contexto político social, representam autonomia para os seres que habitam. O homem busca um espaço para consolidar e fixar sua família, comprovando autonomia, individualidade e assegurando proteção. Ao exercer sua existência e ao habitar uma edificação, o indivíduo consolida seu espaço, delimitando seu ambiente e materializando suas experiências e saberes (21).
A localização, as dimensões e a variação nos detalhes construtivos de uma residência se tornam alegoria de ascensão social, fundamentada no poder e valor de posse (22). Os espaços externos remetem à condição social e os internos a organizações mais particulares. O ambiente construído revela parte da trajetória das cidades e das pessoas, de maneira que as mudanças estilísticas que ocorrem, com o passar dos anos, são resultado dessas transformações culturais (23).
De acordo com as suas relações de apego e emoções, criam-se laços de identidade e memórias. O sujeito, através da interação com o objeto, nesse caso a moradia, poderá atribuir valores ao bem (24). O lugar, de caráter físico, é um meio em que ocorrem diversas representações de sentidos abstratos e imaginários, direcionando-se condutas e interações sociais (25).
“Cenário da vida privada e das aprendizagens mais pessoais, tópico das recordações de infância, a casa é o sítio de uma memória fundamental que nosso imaginário habita para sempre” (26).
A memória, compreendida como uma forma de representação, poderá manifestar-se de maneiras distintas de acordo com as situações culturais e contextuais. Através do processo alternado de recordações, perdas e reinterpretações de dado acontecimento consolidam-se as significações, que posteriormente apoiarão outras memórias. Segundo Candau (27), a memória propriamente dita configura-se pela lembrança de acontecimentos passados, sendo relacionada aos saberes, sentimentos, entre outros, enquanto a metamemória refere-se à interpretação que um sujeito realiza sobre determinada situação, por meio de significados individuais, e através dessas representações consolida sua identidade.
O indivíduo, com suas características próprias e únicas, irá organizar suas memórias de acordo com o momento temporal e histórico em que está inserido e as lembranças que conserva e emite. A memória pessoal, quando compartilhada, ou ao se aproximar de situações vivenciadas por outros membros de uma comunidade, tende a absorver características de memórias impessoais. Assim, observa-se que a memória coletiva poderá ser incorporada na memória individual (28).
A memória coletiva é consolidada através da união de lembranças de um grupo, quando essas recordações são evocadas e reproduzidas, tornam-se ferramentas de comunicação e representação cultural (29). Com o suporte de pessoas ou lugares, as memórias podem ser estimuladas, pois quando vivenciamos determinada situação poderemos estar acompanhados de outros indivíduos, em algum local específico, ou por exemplo na presença de algum objeto, assim “nossas lembranças permanecem coletivas, pois nunca estamos sós” (30).
McGuire (31), retrata o desenvolvimento de um dado espaço, seguindo uma linha do tempo, apresenta os diferentes usos de um terreno, as construções que foram consolidadas, demolidas e as novas edificações que surgiram no decorrer dos anos. Em cada parte dessa formação, diferentes pessoas, famílias, apropriam-se desses lugares, vivenciam experiências e constroem suas histórias. Mostrando a importância do entorno e do ambiente construído na formação cultural e social. E segundo Halbwachs (32) “o único meio de preservar essas lembranças é fixá-los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem”.
A cidade é um contínuo processo de transformações urbanas, seja por apagamentos, conservações, ou surgimento de novas edificações. Esse complexo sistema pode direcionar-se a caminhos arriscados de investimentos imobiliários, que exijam a demolição de um patrimônio, que podem provocar o apagamento de memórias coletivas. O progresso direcionado ao consumo e ao acúmulo de capital traz vulnerabilidade à diversidade social e cultural. A especulação de terrenos com potencial construtivo, gerada pelos investidores, rejeita preexistências e remete a homogeneidade e a arbitrariedade da cidade. O esvaziamento desses locais elimina também significados e memórias (33).
Entrevista
Com auxílio de um roteiro básico, com ficha de perguntas e caderno de campo, foi realizada um entrevista on-line, por chamada de vídeo pelo aplicativo WhatsApp, gravada em áudio, com duração de aproximadamente 45 minutos, sendo posteriormente transcrita para a análise do conteúdo. A interlocução, guiada pelos entrevistadores, enquadra-se no modelo de História Oral Temática, pois permitiu a reconstrução de memórias coletivas, e revelou a importância da preservação do patrimônio material, e consequentemente, imaterial, referências da história cultural da cidade de Pelotas.
A Sra. Soraia Kremer, filha de Gilda e Flávio Kremer, nasceu e viveu na residência da Rua Andrade Neves até seus 15 anos, frequentando, assiduamente, o local até o momento da alienação do imóvel. Pode-se perceber que as lembranças marcantes de Soraia se relacionam principalmente com o ambiente externo da casa, o pátio e sua vegetação, e com a presença do seu avô Sr. Tito. A entrevistada aceitou nossa solicitação para conversarmos sobre o assunto, mostrando-se solicita e muitas vezes emocionada ao rememorar alguns acontecimentos.
“o pátio, a gente brincava muito. E eu ia muito com o meu avô aos domingos, quando ele ia limpar o pátio de manhã, eu ia muito com ele pro pátio, eu brincava embaixo de uma pitangueira, fazia que ali era casinha. Embaixo da pitangueira, e em cima de uma extremosa eu também brincava” (34).
Quando questionada sobre as características da casa, Soraia fez um “passeio mental”, descrevendo que a construção era pintada na cor creme com gradis verde claro. Os ambientes foram relembrados da porta principal à dos fundos, sendo essa última área entendida como um espaço de lazer.
“A gente se sentava ali, eu brincava ali, às vezes de pular os degraus, ali brincávamos bastante, agora eu tô me lembrando, é [...] eu brincava, eu brincava sozinha, ou às vezes com alguma amiga minha, com a Denise, que morava na mesma quadra e vinha brincar comigo, ou com a minha prima, com a Renata”(35).
A casa estava localizada em um terreno que possuía duas frentes de quadra, a entrada principal pela Rua Andrade Neves e a garagem pela Rua General Osório. O acesso à garagem era estreito, como um corredor. Soraia comentou que, inicialmente, a casa ocupava o lote cheio, porém com o alto valor do IPTU, evitando despesas, foi vendida certa parte deixando apenas uma área de circulação. A garagem tinha espaço para dois automóveis e armários. No Citroen preto do avô eram fantasiadas brincadeiras de condução do veículo e no corredor era realizada uma fogueira com os resíduos da limpeza do pátio (36).
Sobre a vizinhança, foi comentado a respeito da construção do edifício Olimpus, em terreno lindeiro, que anteriormente era ocupado por uma residência, de amplo espaço ajardinado, que foi demolida. Soraia destacou as memórias relacionadas à sua infância, que andava de bicicleta na rua, dando a volta na quadra, que brincava na casa de alguns vizinhos e encontrava-os constantemente durante comemorações de aniversários. A entrevistada colocou que o custo elevado para manter a residência, somado à vulnerabilidade do morar de um casal idoso frente à insegurança da cidade, foram os principais pontos na decisão de venda da propriedade.
Ao ser apresentada a fotografias atuais do local, Soraia se disse chocada com a imagem que exibia o aspecto de destruição, e que sua irmã ficava triste quando passava pelo local e via a destruição e abandono do imóvel. Nota-se o desinteresse da sociedade em manter um patrimônio que demanda altas despesas e manutenções, exceto pessoas relacionadas a áreas de preservação, como arquitetos, engenheiros e restauradores (37).
Soraia acredita, também, que as casas antigas não atendem de forma plena às necessidades atuais, sendo hoje observadas moradias mais compactas, e, quando maiores, encontram-se localizadas em condomínios fechados, com novas tecnologias, portanto. Pensa que uma opção, para a residência da Rua Andrade Neves, assim como outras casas antigas, manterem-se em funcionamento seria para o uso comercial, como exemplo de clínicas médicas que já são encontradas na região. O entorno da Rua Andrade Neves conta, atualmente, com a ocupação de muitos prédios para o uso comercial (38).
Resultados e discussões
Através das imagens obtidas pelo Google Street View, dos anos de 2011 e 2019, e auxílio do programa Photoshop, foi possível identificar o processo de transformação que está ocorrendo na Rua Andrade Neves, entre as Ruas Padre Felício e Antônio dos Anjos. Pode-se observar que construções antigas estão sendo demolidas para liberarem espaço a novas construções modernas de racionalismo simplificado, que em sua maioria atendem ao uso comercial. Aos poucos, a Rua Andrade Neves está sendo descaracterizada e, consequentemente, perdendo a sua memória para introduzir uma nova cultura social local.
A moradia nº 3109 da Rua Andrade Neves abraçou quatro gerações da genealogia Kremer, foi palco de memórias coletivas, que devem ser rememoradas e transmitidas. As lembranças marcantes dos finais de ano em família, simbolizadas pelo pinheiro natural montado na sala de visitas, as histórias da Dona Melanciana e Menino do Dedo Verde, contadas pelo Sr. Tito às bisnetas na sala de visitas, o pé de chuchu, a parreira e a goiabeira do quintal, os tatus-bolas e os besouros guitarristas, o cenário construído para comemorar um casamento, são ocasiões que fazem parte da formação e personalidade das pessoas e ficarão para sempre na memória familiar.
“Elevada do solo, com porão, a varanda de acesso principal levava à sala de jantar, no centro do ambiente uma mesa, ao lado a cristaleira, um grande quadro decorativo e um móvel lateral que exibia o rádio. A circulação, à esquerda, direcionava para a sala de visitas, onde encontravam-se poltronas e um piano, e logo, ainda a esquerda, o escritório do Sr. Tito. Seguindo o corredor, à esquerda, localizava-se o dormitório do Sr. Tito. À direita, dois banheiros, ambos com banheira em ferro fundido, e seguindo à direita havia a sala de refeições, que tinha janela para um pequeno jardim. Desse ponto logo vinha a ampla cozinha, e à direita uma biblioteca, e o quarto do casal” (39).
A vegetação natural estava presente nas vivências em família, começando pela calçada onde encontrava-se uma árvore extremosa. Em frente ao alpendre da casa um arbusto de camélias cor de rosa, ao lado das escadas de acesso repousava uma estátua de jardim e mais aos fundos uma mesa de ferro na cor branca. A delicadeza da caliandra misturava-se à alegria de jardim e a outras espécies, enchendo o ambiente de perfume, convidando os pássaros e insetos a aventurarem-se. O pé de chuchu, que podia ser avistado pela janela da copa, trazia felicidade quando se achava carregado de legumes, como também acontecia com os pés de goiabeira, pitangueira, parreira e bananeiras.
“lembro de eu estar no alpendre da casa olhando o céu cheio de estrelas ou até sentada nos degraus do alpendre olhando o céu” (40).
Com o decorrer dos anos, o Sr. Flávio Kremer e a sua esposa resolveram se mudar da residência, pois encontravam-se já em idade avançada e mantinham receio em morarem sozinhos no local. Primeiramente, o imóvel foi alugado por um escritório de arquitetura, depois atendeu como espaço para um restaurante, denominado Ma Ville, e por fim, acabou sendo demolido no ano de 2011. Após nove anos da construção ter sido derrubada, o lote ainda se encontra vazio. O local, antes habitado e marcado pelo seu papel fundamental de moradia e experiências na vida de uma família, transfigurou-se em um espaço abandonado e inseguro. O antigo sentimento de apego e aconchego, simbolizados pela casa, foram misturados a novas sensações, sobrando apenas a fachada da garagem e os gradis de ferro do muro frontal.
A preservação do patrimônio cultural, de caráter imóvel, na cidade de Pelotas desenvolveu-se através do Sistema Municipal de Preservação Cultural – Simpac, o qual abrangeu questões como cadastro e classificações de bens, formas de preservação, incentivos, restrições, entre outros (41). Fundamentada no sistema de proteção, no ano de 2000, foi instituída a Lei 4568/00, que por meio de uma listagem de bens fixou Zonas de Preservação do Patrimônio Cultural (ZPPC), conforme disponibilizado no mapa do III Plano Diretor da cidade de Pelotas (2008).
A casa da Rua Andrade Neves encontrava-se a uma quadra do limite constituído pela ZPPC, não estava incluída na lista de bens inventariados, o que não garantiu por lei a sua salvaguarda. Percebe-se que as áreas que abrangem o inventário de bens imóveis de Pelotas não atingem de forma plena os exemplares a serem protegidos, e, necessita de constante atualização. Segundo Magalhães (42), muitas construções não irão resistir às atividades do tempo, tornando-se ainda mais difícil conservá-las das ações dos homens, porém alguns exemplares ainda resistem, permitindo a continuidade das lembranças de um dado período.
Conclusões
A casa é objeto de memórias coletivas, encontra-se presente em rememorações de festividades, momentos felizes ou tristes, de cheiros e sabores, e de texturas, é palco de experiências e imaginário. As lembranças podem ser estimuladas através da percepção de representações já conhecidas, como a construção em si, sua vizinhança, artefatos, ou até mesmo antigas fotografias. Dessa maneira, se faz importante documentar e, se possível, preservar os exemplares construídos de caráter material, os quais fortalecem as memórias coletivas imateriais.
A demolição de edificações presentes no entorno urbano dificulta o processo de reconhecimento daquele espaço como um lugar, novas composições surgem, junto a renovação da cultura local. A especulação imobiliária e o consumo exacerbado devem ser observados com atenção pela sociedade e os órgãos públicos. A identidade local deve ser valorizada e preservada, pois o que já foi apagado, se não documentado, está fadado ao esquecimento.
notas
1
SANTOS, Renan. Demolição da casa Kraft gera polêmica. Jornal Diário Popular, Pelotas, set. 2020 <https://bityli.com/ukc84>.
2
LITHNOV, Dione Dutra; VIEIRA, Sidney Gonçalves. Localização comercial no tempo e no espaço: dinâmica na cidade de Pelotas, RS. V Colóquio Internacional sobre o comércio e a cidade: uma relação de origem. São Paulo, mar. 2016<https://bit.ly/3FIl1dy>.
3
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. 11ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2011. p. 53-70.
4
FERREIRA, Camila Corsi. Difusão do neocolonial estilo missões em Espírito Santo do Pinhal SP. O Palacete Norma Barsotini. Arquitextos, São Paulo, n. 242.01, Vitruvius, jul. 2020 <https://bit.ly/3FIMM5T>.
5
D'ALAMBERT, Clara Correia. Manifestações da arquitetura residencial paulista entre as grandes guerras. Orientador Carlos Alberto C. Lemos. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2003.
6
FERREIRA, Camila Corsi. Op. cit.
7
D'ALAMBERT, Clara Correia. Op. cit.
8
GRIENEISEN, Vera. A origem de quatro arquitetos imigrantes alemães e sua obra habitacional no Rio Grande do Sul no início do século 20. Orientador Renato Holmer Fiore. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PROPAR, 2013, p. 346.
9
STOCKER JR. Jorge Luís. Um pouco do estilo Missões. Dzeit, Rio Grande do Sul, ago. 2011 <https://bit.ly/2y4ByWa>.
10
SCHLEE, Andrey Rosenthal. O ecletismo na arquitetura pelotense até as décadas de 30 e 40. Orientador Günter Weimer. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, 1993, p. 69-126 <https://bit.ly/3Hxkpcl>.
11
Idem, ibidem, p. 162-179.
12
MAGALHÃES, Mario Osório. História e tradições da cidade de Pelotas. 6ª edição. Porto Alegre, Ardotempo, 2011, p. 20.
13
SOBRINHO, Paulo G. M. A presença teuta no Rio Grande Sul do século XIX Um lacônico estudo sobre as consequências econômicas, sociais e culturais. Revista Semina, Passo Fundo, v. 13, n. 1, dez. 2014 <https://bit.ly/3uILYYg>.
14
SOUZA, José Pereira Coelho de. Denúncia. 2ª edição. Porto Alegre, Thurmann, 1941, p. 9.
15
HAMMES, Edilberto Luiz. Dicionário de sobrenomes de origem alemã de São Lourenço do Sul e das colônias adjacentes. São Lourenço do Sul, Hammes, 2017, p. 453.
16
KREMER, Flávio. Jornal Diário da Manhã. Pelotas, 2008.
17
HAMMES, Edilberto Luiz. Op cit. p. 454.
18
Idem, ibidem. Op cit. p. 453.
19
MANZKE, Sabrina Marques; GONZALES, Beliza; JESUS, Thiago Silva de Amorim. Folclore de Maragem: um olhar sobre as manifestações populares do Rio Grande do Sul e sua (in)visibilidade. Revista da Fundarte, Montenegro, v. 36, n. 36, dez. 2018 <https://bit.ly/3HrXbnC>.
20
WAISMAN, Marina. La estrutura histórica del entorno. 3ª edição. Buenos Aires, Nueva Visión, 1985, p. 44-51.
21
CAMPOS, Paulo S.; FERREIRA, Renato C. Imagem mental e representação social na arquitetura: investigação conceitual a partir de um estudo de caso. In: DEL RIO, Vicente; DUARTE, Cristiane R.; RHEINGANTZ, Paulo A. (org). Projeto do lugar: colaboração entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria/Proarq, 2002, p. 107.
22
PERROT, Michelle. História da vida privada. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. Capítulo 3, Maneiras de morar, p. 306-323.
23
THIESEN, Beatriz Valladão. A paisagem da cidade: arqueologia da área central da Porto Alegre do século 19. Orientador Arno Alvarez Kern. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PUCRS, 1999, p. 262-266.
24
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Caminhos da identidade nas políticas de patrimônio (imaterial) no iphan. Seminário de Fortaleza. nov. 2017.
25
THIESEN, Beatriz Valladão. Op. cit., p. 320-327.
26
PERROT, Michelle. Op cit., p. 321.
27
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo, Contexto, 2011, p. 21-50.
28
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006, p. 71-72.
29
CANDAU, Joël. Op cit., p. 21-50.
30
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ª edição. São Paulo, Vértice, 1990, p. 26.
31
MCGUIRE, Richard. Aqui. São Paulo, Quadrinhos na Cia, 2017.
32
HALBWACHS, Maurice. Op cit., p. 101.
33
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativos. São Paulo, Gustavo Gili, 2019, p. 82-180.
34
KREMER, Soraia. Depoimento. Entrevistadores: José Henrique Carlúcio Cordeiro e Lisiê Kremer Cabral. Pelotas, On-line, (45min, 41seg), dia 6 de março de 2021.
35
Idem, ibidem.
36
Idem, ibidem.
37
Idem, ibidem.
38
Idem, ibidem.
39
CABRAL, Lisiê Kremer. Depoimento. Pelotas, 10 set. 2020. p. 1.
40
KREMER, Soraia. Depoimento. Pelotas, 10 set. 2020, p. 2.
41
ALMEIDA, Liciane Machado; BASTOS, Michele de Souza. A experiência da cidade de Pelotas no processo de preservação patrimonial. Revista CPC, São Paulo, v. 1, n. 2, out. 2006 <https://bit.ly/3Fn67Iv>.
42
MAGALHÃES, Mario Osório. Op cit., p. 81.
sobre os autores
Lisiê Kremer Cabral é arquiteta e urbanista (UCPEL, 2015) e mestre em Teoria, História, Patrimônio e Crítica da Arquitetura (UFPEL, 2020).
José Henrique Carlucio Cordeiro é engenheiro civil (FURG, 2013), especialista em Estruturas de Concreto e Fundações (Unicid, 2016) e mestrando em arquitetura na linha de Percepção e Avaliação do Ambiente pelo Usuário (2020).
Ana Lúcia Costa de Oliveira é graduada em Escola de Belas Artes (UFPEL, 1972), Arquitetura e Urbanismo (Unisinos, 1977), mestre em Arquitetura (USP, 1986), doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS, 2012) e professora associada da Universidade Federal de Pelotas.