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my city ISSN 1982-9922

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À luz da teoria da sintaxe espacial, Frederico de Holanda faz uma análise dos espaços monumentais de Brasília a partir de dois eventos recentes: a posse do presidente Lula e os atos de vandalismo promovido por extremistas de direita.

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HOLANDA, Frederico de. Celebração e vandalismo. A posse de Lula e a invasão dos palácios dos três poderes. Minha Cidade, São Paulo, ano 23, n. 270.01, Vitruvius, jan. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/23.270/8706>.


Momento da posse. Esplanada dos Ministérios, Brasília. Vista para o leste, a torre do Congresso Nacional ao fundo, por detrás do palco
Foto Frederico de Holanda


No intervalo de uma semana a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes em Brasília deram lugar a duas manifestações diametralmente opostas. No dia 1º de janeiro de 2023, a festa popular por ocasião da posse do Presidente Lula para o seu terceiro mandato – um público estimado em quase 200 mil pessoas. Uma semana depois, no dia 8, alguns milhares de vândalos (4 mil? 5 mil?) marcharam ao longo da Esplanada até as sedes dos três poderes da República – o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, e o Supremo Tribunal Federal – e os depredaram. Estivemos, entusiasmados, das 12h às 18h, na primeira. Vimos, pasmos, pela televisão, a segunda.

Os dois eventos colocam questões relevantes para quem se interessa em refletir sobre as implicações sociais da configuração dos lugares. As polêmicas que o projeto de Lúcio Costa para Brasília suscita são antigas, particularmente quanto a seus espaços monumentais. Não raro a discussão descamba para o maniqueísmo em que se confrontam, de um lado, o elogio rasgado ao projeto, que supostamente apontaria para uma sociedade moderna, democrática e avançada do futuro, “quando todos serão pelo menos classe média” (1), segundo seu autor; e, do outro lado, no melhor caso, uma monumentalidade démodé, que não mais cabe na contemporaneidade, ou, no pior caso, um neo-stalinismo, que reinterpreta um modelo urbano soviético dos anos 1930, como chegam a comentar figuras de proa da teoria e da história da arquitetura moderna.

No entanto, há matizes no projeto de Lúcio Costa ignorados pela vã filosofia desses grandes ideólogos; os matizes afloram em situações-limite como as relatadas. Há uma observação do arquiteto que talvez dê a chave para entender a natureza única do seu projeto: Brasília não é uma “simples cidade moderna”. A comparação com todas as demais propostas do concurso do Plano Piloto de Brasília realizado em 1957, no qual ele foi o vencedor, é esclarecedora: nenhuma outra teria materializado a força simbólica que a Brasília construída realizou; nenhuma outra teria a forte memorabilidade que Lúcio Costa conseguiu com seu projeto: pise na Esplanada dos Ministérios e você jamais a esquecerá; revisite-a, e a emoção causada por este lugar sublime – para além do simplesmente belo, dada sua grandiosidade – aflorará vezes sem conta. Mais ainda o será se você estiver ombreado a outras 200 mil pessoas a ocuparem aquele imenso espaço.

Contudo, não sendo um lugar comum, tampouco inaugura um tipo socioespacial. Tem atributos recorrentes na história, por sua sintaxe e sua semântica, aqui entendidas como: 1) a sintaxe, na sua configuração, enquanto relações entre as partes que o compõem, e do lugar específico com o todo maior onde está inserido; 2) a semântica, nos aspectos conjunturais ou históricos, no que estes representam e constituem socialmente, que podem mudar ainda que permaneça a materialidade física dos prédios e dos vazios entre eles. As cidades, particularmente as mais antigas, estão cheias desses exemplos: com pouca ou nenhuma transformação física, igrejas se transformam em salas de concerto, galpões industriais se transformam em centros culturais. Muda-se o significado dos lugares (o que representam), e muda-se a sua contribuição à vida urbana (o que constituem socialmente, as práticas que favorecem, a vida do seu entorno).

O tipo socioespacial que refiro é o espaço de exceção (2), como o venho denominando há vinte anos: 1) na sintaxe, é um lugar relativamente isolado (no caso, um apêndice ao resto do Plano Piloto), com grandes espaços abertos, edifícios soltos com identidade forte conferida por sua volumetria especial; 2) na semântica, abriga exclusivamente funções superestruturais: política e ideologia, esta última, lato sensu, a incluir cultura – Museu Nacional, Biblioteca Nacional, Teatro Nacional Cláudio Santoro – e religião – Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida.

Não é um centro urbano, a condensar a economia secular cotidiana, com as características essenciais do que entendemos por cidade, com muita gente, gente diversa, gente o tempo todo, nas felizes palavras de Gabriela Tenorio (3). Não: no espaço de exceção, desde sempre – Washington, Versailles, Cidade Proibida, Teotihuacán, Giza, Stonehenge – encena-se apenas o poder ou a representação simbólica de valores coletivos. É típico desses lugares excepcionais, além dos seres “simbólicos” que o utilizam, sua ocupação massiva ser... excepcional: pontual no tempo (o recorde na Esplanada dos Ministérios é estimado em 1 milhão de pessoas, no aniversário da cidade, em 2008).

Então, como o lugar, mais que representa, constitui as ações que nele transcorrem? Como o lugar, mais que palco – supostamente neutro, indiferente, apenas suporte – é, ao contrário, parte intrínseca daquilo que nele acontece?

Bill Hillier e Julienne Hanson, desde o livro clássico The social logic of space (3), colocaram em pauta o desempenho genérico do espaço arquitetônico. A configuração dos lugares afetar a operacionalidade das atividades que neles ocorrem é um truísmo que dispensa discussão; o papel da arquitetura é mais “nobre” – estrutural – que isso: ela subjaz à empiria das práticas, afetando-as num nível mais profundo, aquele dos sistemas de encontros e esquivanças (presenças, ausências das pessoas) mediante os quais a prática social se materializa. As maneiras de habitar, comprar, educar, cuidar da saúde, divertir-se variam entre culturas, e, numa mesma cultura, segundo classe social, renda, etnia, gênero, geração. A variação é correlata à diversidade dos arranjos de nossos corpos no espaço e no tempo – socialmente, importa o como nos ordenamos para fazer o que fazemos, por sobre a empiria do que fazemos.

Momento da posse. Esplanada dos Ministérios, Brasília. Vista para o oeste, a torre de TV ao fundo
Foto Frederico de Holanda

Na Esplanada e na Praça, a função genérica do espaço é clara: o isolamento implica que estar lá para compor uma reunião – celebração, protesto, reivindicação – pressupõe a decisão planejada de ir, não inclui a adesão espontânea e improvisada. O brado durante as jornadas de 2013 – “vem para a rua! vem!” – não tem sentido na Esplanada: não há ninguém para quem bradar, exceto funcionários do aparelho estatal, e dentro de edifícios que dão fachadas cegas para o espaço central onde ocorrem as manifestações. O contrário sucede, por exemplo, na avenida Paulista, São Paulo, densamente ladeada de edificações que para ela olham, com gente dentro exercendo os mais diversos papeis. Não se passa pela Esplanada e pela Praça, se vai a elas; locais com denso movimento de pessoas de passagem, não apenas de pessoas que neles têm seu destino – como no caso – fazem a vitalidade dos espaços urbanos por excelência. Demais, a grandiosidade do lugar exige, para sua plena realização e replicação simbólica das imagens correlatas, a grandiosidade da... reunião – qualquer coisa menos que isso se esvai nos grandes espaços. Finalmente, mais dois atributos importantes: 1) a forte integração visual interpartes resultante das proporções do lugar – 900 m x 300 m no trecho principal – favorece a consciência dos presentes, mesmo às centenas de milhares; e, ao contrário, 2) um traço típico da cidade moderna – o sistema viário “em árvore”, em que há um único percurso possível entre dois pontos quaisquer – é replicado aqui: o conjunto Esplanada e Praça não está inserido numa malha urbana (como o Mall de Washington, ou os Champs Élysées de Paris, por exemplo), mas é acessado somente por seus dois pontos extremos (há acessos residuais laterais desprezíveis), o que restringe a chegada ou a saída do lugar.

No entanto, carece adicionar camadas a este desempenho genérico do lugar, como Julienne Hanson o faz em seu livro autoral de 1998 Decoding homes and houses (4): consideremos não apenas a sintaxe da arquitetura e a sintaxe dos corpos, mas a semântica de ambos, pois a depender dela as implicações de uma mesma sintaxe podem variar: 1) que rótulos são sobrepostos à estrutura física dos lugares? 2) quem são e o que fazem os sujeitos sociais? Sem isso, a discussão das implicações da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes com o que aconteceu recentemente é manca.

Sim, os eventos foram opostos, suas características são sabidas, pinço apenas aspectos que interessam neste texto.


Replantio, vídeo de Frederico de Holanda

Primeiro, a celebração – registrada em vídeo disponível acima (5). Das 200 mil pessoas presentes, 40 mil assistem na Praça à subida da rampa do Palácio do Planalto e veem e ouvem o Presidente Lula falar do seu parlatório; as demais, entre as quais estávamos, distribuem-se no trecho principal da Esplanada, testemunham a passagem do cortejo presidencial em carro aberto que sai da Catedral em direção ao Congresso, e assistem aos demais momentos da posse por seis telões. A sensação de pertencimento àqueles milhares de pessoas é favorecida pela intensa consciência dos outros, facultada, por sua vez, pela percepção sincrônica do lugar, cujas proporções aproximadas, no trecho em que se concentram as pessoas, são de 3 x 1 (os referidos 900 m x 300 m). E a posse não é só de Lula, é nossa, pois nos (re)apropriamos simbolicamente da capital e da nação mediante a posse de um espaço de enorme carga simbólica, como, novamente, nenhuma outra proposta do concurso do Plano Piloto de Brasília teria proporcionado. A sensação de alívio é imensa, ao darmo-nos conta de que o Palácio do Planalto não mais abriga alguém totalmente fora de contexto, que, não por acaso, o vandalizou, assim como ao Palácio da Alvorada, durante os quatro anos de pesadelo que atravessamos. Aquele estranho locatário circunstancial abominava aquelas expressões maiores da cultura brasileira, supostas manifestações do “marxismo cultural”, ainda mais (talvez, dada sua lapidar ignorância) sabendo-as projetadas por um comunista.

Agora, os vândalos. Uma semana depois da alegria daquela festa, o assalto longamente anunciado. Milhares marcham na direção das três sedes dos poderes da República, ao longo da Esplanada. Invadem-nos, depredam-nos, estão simbolicamente atacando os pilares do Estado Democrático de Direito, que recusam. Por algumas horas a polícia os escolta, os protege. Mas, aparentemente, a coisa não sai bem como planejada, o comando da força policial-militar se desloca dos que com eles são coniventes (ou a eles abertamente aliados) para os defensores da ordem democrática. Com um pequeno efetivo ante os milhares de vândalos, os expulsa dos palácios e os empurra de volta à Esplanada e, finalmente, para fora dela. A polícia entra por um dos extremos comentados – a ponta leste. Tange-os ao longo do impermeável Eixo Monumental na direção de seu único outro acesso – o da ponta oeste. O controle é claramente facilitado pela configuração do lugar. Viva! Mas... e se fosse o contrário, quando éramos nós a correr do gás lacrimogênio (como corri) e das chibatadas do ensandecido cavalgante general newton cruz (das quais escapei)?... (não errei as minúsculas).

Na Esplanada, a rota de fuga é escassa, para uns ou para outros, o que é positivo a depender da semântica – quem são os sujeitos envolvidos? Mas em ambos os casos o desempenho genérico do espaço é o mesmo: ele favorece o poder constituído, seja o Estado Democrático-Popular, seja a tirania. Podia ser diferente: favorecer o poder não constituído. Tem sido historicamente assim em muitos casos, como mostra brilhantemente Eric Hobsbawn em seu ensaio Cidades e insurreições (6).

Este exercício discute facetas diversas, por vezes contraditórias, da arquitetura. No cerne, a ideia de que esta não é simples palco, apenas epifenômeno de outras questões sociais – é, em si mesma, fundamental questão social em nossas vidas, a afetar-nos prática e expressivamente. Aprofundar o conhecimento – científico, sistemático, reflexivo – de como isso se dá é o nosso desafio.

(Canaan, 24 de janeiro de 2023)

notas

NA – Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa Sênior; aos parceiros do grupo de pesquisa Dimensões Morfológicas do Processo de Urbanização (DIMPU), fonte perene de enriquecimento intelectual; e, particularmente, a Ana Maria Lopes, Franciney França, Harry Westfahl Júnior, Ruth Verde Zein, Valério de Medeiros e Vinicius M. Netto pelos pertinentes comentários a uma versão preliminar do texto. Eventuais erros e lacunas são de minha única responsabilidade.

1
COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.

2
Ver: HOLANDA, Frederico de (2002). O espaço de exceção [recurso eletrônico]. 2ª edição. Brasília, FRBH, 2018 <https://bit.ly/3RhWSyW>.

3
TENORIO, Gabriela. Ao desocupado em cima da ponte: Brasília, arquitetura e vida pública. 2012. 391p. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2012 <https://bit.ly/3Y5LSql>.

4
HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge, Cambridge University Press, 1984.

5
HANSON, Julienne. Decoding Homes and Houses. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

6
Replantio. Produção de Frederico de Holanda. Brasília, FRBH, 2023, filme, 14’56” <https://bit.ly/3kFDqj9>.

7
HOBSBAWN, Eric. Cidades e insurreições. In: HOBSBAWN, Eric. Revolucionários: ensaios contemporâneos. 2a edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015.

sobre o autor

Frederico de Holanda é arquiteto (UFPE, 1966) e PhD em Arquitetura (Universidade de Londres, 1997). Professor titular aposentado, pesquisador colaborador sênior e professor emérito da Universidade de Brasília, onde ministra desde 1972. É autor de diversos livros, dentre eles O espaço de exceção (Prêmio Anpur Tese 1998); Brasília – cidade moderna, cidade eterna (2010, Prêmio Anparq Livro) e Oscar Niemeyer: de vidro e concreto / Of glass and concrete (2011).

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