Mobiliário Urbano Alternativo. Promoção de espaços coletivos em áreas carentes
Território e Legitimidade
Apesar de abordagens diversas, ainda não se conseguiu estabelecer um conceito global de auto-sustentabilidade. A reciclagem de todo e qualquer material orgânico e inorgânico, e a conseqüente não produção de resíduos, seria um primeiro esforço. A partir do reaproveitamento, teríamos um ritmo contínuo onde os produtos seriam apenas elementos de fases distintas se renovando em cadeia.
As cidades contemporâneas são totalmente descartáveis, onde os objetos urbano-arquitetônicos são substituídos aceleradamente com justificativas tecnológicas em circunstâncias político-mercadológicas. Nosso trabalho visa complementar e resgatar a integração social de todo o território. Consiste de novas estratégias a serem aplicados em futuros projetos sociais, a partir da produção de espaços de uso coletivo, com mobiliário urbano alternativo. Pesquisas comprovam que a oferta de áreas de lazer contribui para afastar os jovens da marginalidade urbana, sendo nas áreas pobres onde se percebe a ausência quase total destes espaços.
Buscamos suprir a ausência de equipamentos comunitários em áreas pobres otimizando o potencial funcional e estético de elementos residuais, com a alternativa de se produzir mobiliário urbano através do reaproveitamento de objetos existentes nos ferros-velhos da cidade. O processo contempla o envolvimento comunitário com respostas ao enriquecimento social. Através de pesquisa sobre o mobiliário convencional, definimos critérios de interpretação para objetos renováveis considerados descartáveis, através do redesenho. Gerando possibilidades, até então, desconsideradas na requalificação de áreas carentes.
O Recife possui uma história peculiar quanto aos movimentos sociais no cotidiano das comunidades, sendo referência nacional na condução de políticas públicas. É preciso admitir a diversidade espacial do tecido urbano do Recife, evidente na conformação geográfica e manifestações urbanísticas e culturais. A diversidade física e ambiental do Recife se reflete nas distintas configurações sociais, com diferentes padrões de ocupação. Na maioria dos bairros com população de alta renda, existem ocupações irregulares consolidadas.
A urbanização de espaços de uso coletivo através de mobiliário urbano alternativo é o caminho democrático para equacionar as diferenças sociais, permitindo uma maior conscientização da população de baixa renda quanto ao direito de inserção na cidade oficial. Trabalhamos aqui com Brasília Teimosa, porém, poderíamos atuar em qualquer área pobre do Recife ou Brasil, pois, a carência é a mesma, mudando apenas a topografia, o clima e os costumes.
Brasília Teimosa está situada em privilegiada área estuarina. Sua consolidação se deu a partir de aterros e a junção de quatro ilhas. Com a expulsão dos holandeses as ilhas, aos poucos formaram uma península triangular, resultante do assoreamento pelas obras do Porto no final do século XIX. Aí resistiram e permaneceram os pescadores, utilizando a água como fonte de alimento, renda e meio de transporte entre as ilhas e o continente. No início dos anos 60, volta a ser palco de lutas pela terra, quando os seus moradores insistiram em permanecer e assegurar para a sua comunidade uma das fatias mais cobiçadas da Cidade.
Enquanto se intensificavam as obras da nova capital Brasília, na cidade do Recife, a comunidade pesqueira insistia em reerguer, no amanhecer do dia, os barracos derrubados pela polícia na noite anterior. Daí a origem atual de seu pitoresco nome Brasília Teimosa. Em 1983, já como bairro, incorporou-se à Lei de Uso e Ocupação do Solo do Recife como a ZEIS 25 (Zona Especial de Interesse Social). Possui hoje muitos bares e restaurantes especializados em frutos do mar, freqüentados pela classe média do Recife, assim como turistas locais e estrangeiros. Existem ainda pequenos estaleiros improvisados na margem fluvial.
Buscamos promover a recuperação e o resgate dos espaços de uso públicos de Brasília Teimosa, lugar pobre e de considerável violência urbana. Através da transformação de espaços ociosos e ou degradados em áreas de lazer, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e a redução da violência. O reconhecimento da paisagem reforça as suas singularidades como reflexo de luta pela consolidação do espaço e construção de um lugar. Entre eles a morfologia, lembrando espaços medievais e as palafitas resistindo às mudanças de marés, a vida nas calçadas; a pesca e várias ruas com nome de peixes.
Começaremos por uma Área Piloto de aproximadamente 300m² localizados na antiga Colônia de Pescadores Z1. Uma praça existente e bastante deteriorada, porém situada em local muito significativo e importante na história do lugar, com grande visibilidade. Atualmente é o caminho preferencial para vários turistas que visitam os bares da orla. O local é bem delimitado e de fácil acesso, uma oportunidade de mostrarmos a possibilidade de requalificação de um espaço de uso coletivo consolidado, porém abandonado e em estado crescente de degradação. Seria necessária a implementação de canteiros e jardins, o plantio de algumas árvores, bem como alguns brinquedos, bancos, postes e lixeiras.
As praças e áreas livres convencionais são desenvolvidas sem a participação dos usuários, ocasionando a fácil deterioração, pela falta de manutenção ou vandalismo comum em ações não legítimas. Repetem a mesma fórmula independente do lugar, desde materiais, formas e equipamentos. É preciso incentivar a mobilização da comunidade nos trabalhos, garantindo uma maior durabilidade e a efetiva identificação dos usuários com o espaço que utilizam.
Pretendemos envolver crianças, ajudando no desenvolvimento do sentimento de lugar. Temos que trabalhar em Brasília Teimosa, assim como em outras intervenções incorporando o conceito de patrimônio e o entendimento da construção do lugar. Ao apreendermos a identidade local, descobriremos peculiaridades a serem preservadas, impondo a presença da tradição expressa na paisagem. É isso que Brasília Teimosa poderá oferecer com valores que deverão ser mantidos como relíquia de significativo valor na história urbana do Recife.
O primeiro estágio é examinar a área identificando os lugares significativos e com potencial de uso coletivo dentro da comunidade. Depois são previstas algumas oficinas, criando um espaço de reflexão e integração dos diversos atores envolvidos para construir coletivamente os procedimentos metodológicos. Em seguida a apreensão dos usos predominantes no entorno e características da população. A idéia é trabalhar em pequenos espaços já apropriados pela população depois partindo para áreas maiores e de maior complexidade.
Interpretação e economicidade
O Recife possui ferros-velhos em quase todos os bairros. Nestes depósitos, três aspectos específicos se destacam: a diversidade, a repetição e a quantidade. Em seguida o estado de conservação e a presença de objetos de alto potencial de reaproveitamento. Fizemos um mapeamento e reconhecimento de todos os ferros-velhos oficiais existentes na cidade do Recife, identificando inclusive os seus respectivos raios de abrangência
Entre os itens que mais se repetem estão tubos metálicos, parafusos, peças de automóveis, serpentinas, condutores, folhas de alumínio, chapas, tonéis, porcas de alta tensão, barris de alumínio, luminárias de rua, botijões de gás. Temos ainda algumas peças exóticas como panelas de caldeiras, pistões cromados, resistores de alta tensão em porcelana e vidro, entre outras que se repetem aos milhares. Como estes muitos são os objetos descartados sem a menor oportunidade para aqueles que poderiam evitar o desperdício de matérias de alto valor de confecção.
A fase operacional é desenvolvida em três etapas, com a total participação das crianças. Inicialmente a identificação dos objetos nos ferros-velhos e a seleção dos itens de grande repetição e bom estado de conservação. Nesta etapa são coletados e sistematizados os materiais com potencial de redesenho e possível aproveitamento enquanto mobiliário e equipamentos de lazer. Em seguida o estudo e redesenho destes objetos, etapa onde se procura esgotar todas as possibilidades de reutilização do elemento identificado. Busca-se através da peça escolhida ou da junção de vários itens, obter o melhor resultado no produto final.
Finalmente a produção, com a definição dos produtos e suas cabíveis aplicações. Nesta etapa passam por corte, lixa e acabamento, concluindo o processo, e assegurando o caráter funcional e estético de cada produto. A idéia é redesenhar as peças a partir de referências da comunidade, que não lembrem a matéria prima sucata. São objetos novos, disponíveis a apropriações inusitadas.
Para viabilização desta proposta precisamos ter parceiros públicos e ou privados. A Prefeitura Municipal é o maior parceiro, pois é o responsável oficial pela promoção da qualidade dos espaços públicos. Algumas multinacionais estão disponibilizando verbas consideráveis para aplicação em projetos de cunho social. Por último, nos resta o empresariado local que poderia investir, não só por se identificar com a pertinência da proposta, como também obter benefícios fiscais. Será necessário ainda formar uma equipe técnica específica composta por arquiteto, desenhista industrial, agrônomo e estudantes em convênio com departamentos específicos das universidades a fim de se estabelecer um envolvimento acadêmico e maior reverberação científica.
Algumas pesquisas vêm sendo realizadas por segmentos preocupados com as novas solicitações de uma sociedade cujo comportamento de vida está em acelerada transformação. Utilizando materiais alternativos em detrimento dos oferecidos no mercado oficial, ou ainda, propondo usos alternativos de materiais convencionais. A flexibilidade do desenho é a garantia das possibilidades de usos do espaço, preocupação que precisa alcançar a pesquisa de interesse social, bem como os projetos produzidos por alguns grupos de produção de habitação social.
Na realidade informal de nossas cidades vemos muitos exemplos de uma iniciativa de reaproveitamento. Em Brasília Teimosa é freqüente o uso da caixa da geladeira para se fazer diversos equipamentos, desde o simples carrinho de transporte, e hortas, até caixas dágua para servirem os bares da orla. De uma maneira séria e com pesquisa temos a produção de artefatos de moda, confeccionados com garrafas plásticas, bolsa de latas de alumínio, até abrigos para ônibus com latas de óleo lubrificantes.Estes exemplos ilustram a tendência de reutilização de objetos presente na cultura de nosso povo. É inestimável a quantidade de mobiliário comprada diariamente para manutenção pública. Enquanto isso os ferros-velhos acomodam uma infinidade de objetos descartados. São inúmeras as possibilidades de redesenho e confecção de objetos que variam desde: lixeiras, postes, luminárias, bancos, brinquedos, abrigos de ônibus, observatórios para salva-vidas e polícia entre outras demandas possíveis de acordo com cada espaço trabalhado e suas necessidades específicas.
Temos plena certeza das vantagens do mobiliário alternativo proposto em relação aos equipamentos convencionais, sem considerar os ganhos sociais. Comparando os valores das sucatas com os materiais convencionais, perceberemos que a diferença é bastante significativa, chegando, às vezes, a ser dez vezes mais barato que as peças novas. Podemos trabalhar com uma diversidade de objetos como alternativas para o mercado consumido, usando materiais de alta qualidade, resistentes e em bom estado de conservação.
O desafio está em romper as barreiras que isolam certas áreas da cidade onde o poder público precisa reconhecer que morar bem está além da casa própria. São necessários serviços básicos de limpeza urbana, segurança e equipamentos de convívio, buscando o desenvolvimento individual das pessoas a partir da coletividade instaurada. Entendemos como cidade integrada, as faces informal e oficial com as mesmas prioridades e benefícios públicos.
Tentamos abordar uma temática inusitada, humilde e pragmática, tão alheia ao interesse das administrações públicas. O desejo de um mundo sem a produção de resíduos, onde os poucos restos não controláveis tenham um retorno social. Um meio ambiente saudável, melhorando a qualidade de vida das comunidades carentes, do entorno e conseqüentemente de toda a sociedade globalizada.