A carência de uma política específica, ousada e transformadora para o setor da habitação social gerou, no Brasil e no Rio Grande do Sul, uma situação calamitosa. Existe um grande número de famílias que vivem em condições miseráveis, moram na rua, em áreas ocupadas ou de risco, ou pagam aluguéis exorbitantes.
Cooperativismo e Organização Comunitária
O cooperativismo é uma forma para que comunidades de baixa renda se organizem na construção de uma nova realidade. O projeto apresentado nesse estudo é uma proposta para as unidades residenciais da Cooperativa Habitacional Nascente do Vale na cidade de Nova Hartz, região metropolitana de Porto Alegre - RS.
Por iniciativa dos cooperativados, a construção será realizada em regime de mutirão, com o apoio da Secretaria Especial Habitacional do Governo do Estado do Rio Grande do Sul em convênio com a Federación Uruguaya de Cooperativas de Viviendas por Ayuda Mutua - FUCVAM.
A atividade econômica predominante na região é a indústria de calçados, que emprega a grande maioria da mão-de-obra assalariada local. A cooperativa possui 190 associados com renda média de 3 salários mínimos. Essas pessoas não poderiam imaginar sua casa própria caso não estivessem unidos e organizados.
Ecologia e Arquitetura
A indústria da construção civil e o ambiente construído são os principais consumidores de recursos naturais. Estima-se que as construções consumam aproximadamente 40% da energia total, sejam responsáveis por algo em torno de 30% das emissões de CO² e gerem cerca de 40% de todos os resíduos produzidos pelo homem (CIB, 1999).
A forma atual de produção de uma edificação, levando-se em conta todo o seu processo - desde a extração das matérias-primas passando pelo projeto e chegando à edificação construída e seu uso - é estressante para os ecossistemas do planeta. Os processos de produção das edificações, apesar de evoluírem com o tempo, não levam em consideração os efeitos que causam ou possam vir a causar ao meio-ambiente. Isto é bastante paradoxal visto que a indústria da construção civil é dependente dos mesmos recursos e ecossistemas que esgota e polui.
Arquitetos e engenheiros podem contribuir significativamente se tomarem decisões corretas, integradas e sustentáveis ao longo de todo o processo de produção de uma edificação. Mas a dificuldade de se projetar dessa forma, a favor e não contra a natureza (MOLLISON, 1998), reside em dois fatores principais:
(1) a natureza responde de modo variado às intervenções do homem, ora rapidamente ora de forma muito lenta, ora localmente ora em pontos distantes. Isto faz com que as pessoas não percebam estas respostas como responsabilidade sua;
(2) os projetistas convencionais não compartilham da visão abrangente em relação à edificação. Não a reconhecem como parte de um sistema maior.
O projeto arquitetônico deve ser visto como um processo onde não apenas as partes são importantes, mas onde as relações entre as partes que formam o todo são fundamentais. Portanto, deveria conter, desde os primeiros traços, condicionantes ecológicos e sociais, a fim de que a edificação a ser construída seja o menos impactante possível. Não importa o tipo ou o tamanho de uma edificação, sempre será possível construí-la de uma forma mais responsável.
Possuir uma visão ecológica é ver a relação entre todas as partes de um sistema e a importância de cada uma dessas partes. De acordo com LUTZENBERGER (1980), todas as espécies de um sistema, sejam elas dominantes ou humildes, são peças de uma grande unidade funcional, onde a natureza não é um aglomerado de fatos isolados, arbitrariamente alteráveis ou dispensáveis. Tudo está relacionado com tudo. Esta visão reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza e destes somos dependentes (CAPRA, 1998). Não basta projetarmos uma série de pequenas modificações “ecológicas” se estas agem de modo isolado em uma residência. As técnicas utilizadas devem fazer parte de uma ou mais estratégias maiores.
O projeto de uma habitação popular mais sustentável deve garantir que se alcance ao máximo a sustentabilidade dentro de suas três dimensões, ou seja, que as técnicas apropriadas utilizadas tenham:
- qualidade aceitável (dimensão social);
- menor custo possível (dimensão econômica);
- menor impacto ambiental possível (dimensão ambiental).
As principais técnicas utilizadas no projeto:
- captação e armazenamento de águas pluviais - o telhado capta a água de precipitação e envia para tonéis metálicos situados ao longo da parede sul, totalizando 2.400 litros de armazenamento. O primeiro tonel serve como filtro separador de sólidos. É importante notar que há um extravasor para evitar que transborde e também existe uma bóia ligada à rede, colocada perto do fundo do reservatório, para casos de estiagem;
- tratamento biológico de águas residuais - as águas neste projeto são separadas em dois tipos: negras (vindas do vaso sanitário) e cinzas (vindas de todos os outros aparelhos hidráulicos). As águas negras passam por uma fossa séptica, por um filtro de britas e são encaminhadas ao tratamento complementar composto de canais de infiltração. Já as águas cinzas, com menos poluentes orgânicos, passam apenas por um decantador antes de serem enviadas para os mesmos canais de infiltração. Estes canais fazem uma irrigação subsuperficial, permitindo que plantas ali colocadas se beneficiem com o volume de águas e nutrientes, além de ajudarem na depuração mais delicada dos efluentes.
- isolamento térmico do telhado – dificulta as trocas de calor entre o meio externo e interno diminuindo a amplitude da variação de temperatura no interior da residência (as maiores incidências solares durante o verão e as maiores perdas de calor durante o inverno);
- uso de bambu na estrutura - o bambu, apesar de ser uma gramínea, é reconhecido pela sua facilidade de cultivo e de propagação, pela resistência como material de construção e pela variedade de utilizações que permite. Optou-se por utilizar o bambu como material estrutural de paredes e de cobertura;
- aberturas móveis e reguláveis de ventilação - a residência foi projetada com uma série de pequenas aberturas reguláveis que, ao serem manejadas pelo morador, otimizam o conforto climático no interior da casa.
Princípio básico: previsão de ciclos fechados
Um dos objetivos buscados no projeto da unidade residencial é o fechamento de ciclos. Isto é bem representado através da captação e armazenamento das águas da chuva e do tratamento biológico das águas residuárias.
Ao chover, o telhado da residência recolhe a água e a encaminha para um reservatório. Esta água será utilizada para descarga do vaso sanitário, já que não há necessidade de água potável.
As águas residuárias do vaso seguem para a fossa séptica, filtro anaeróbio e, finalmente, para canais de infiltração onde sofrerão a última parte do tratamento, servindo como nutrientes para as plantas cultivadas ali.
Estas plantas fecham o ciclo de duas formas:
(1) através da evapotranspiração, ou seja, da água que é eliminada por elas na forma de vapor e que se tornará chuva mais adiante, reiniciando o ciclo desde o seu princípio; e
(2) pela produção de alimentos para os moradores da casa.
A residência é econômica a longo prazo, pois no seu uso evita uma grande demanda de energia em iluminação e controle artificial da temperatura. Na escolha de materiais, a economia é direcionada principalmente ao planeta, já que ocorrem extrações menos degradantes, manufaturas com menor consumo de energia e menos poluentes. A opção por materiais locais diminui a necessidade de transporte (menos poluição e menos pavimentação), além da possibilidade de gerar empregos e renda.
ficha técnica
3C Arquitetura e Urbanismo
Equipe
Arq. Letícia Teixeira Rodrigues (coord.), Acad. Raquel Azevedo e Acad.
Vinícius de Medeiros Santos
Consultor sobre técnicas sustentáveis
Arq. Cristiano Viegas Centeno
Colaboradores
Arq. Pedro Augusto Inda, Arq. Rafael Simões Mano, Arq. Tiago Holzmann da Silva, Acad. Carolina Furlanetto Mendes, Acad. Cristian Illanes, Acad. Patrícia Voltolini