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PORTAL VITRUVIUS. Concurso Público Nacional “Prêmio Caixa-IAB Habitat Brasil 2001/02”. Projetos, São Paulo, ano 02, n. 021.02, Vitruvius, set. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/02.021/2181>.


Requalificar o centro: pensar

A proposta apresentada trata das questões relativas ao desenvolvimento urbano, e poderia ser aplicada a qualquer grande metrópole brasileira. Optamos por situar o projeto na área da Central do Brasil, uma área crítica do centro do Rio de Janeiro. É uma escolha intencional. A motivação não foi apenas o valor histórico dos remanescentes de suas construções, nem o possível aproveitamento da infra-estrutura sub-utilizada, nem mesmo a oportunidade de aproveitamento dos terrenos e edificações vazias. A nossa é uma proposta urbanística, ancorada em conceitos de habitação social que, por sua vez, fazem parte de um objetivo maior: o desenvolvimento do espaço urbano através de intervenções integradas que possibilitem a recuperação da urbanidade e da civilidade perdidas, gerando, por ações de planejamento integrado e multidisciplinar, um desenvolvimento contínuo que revitalize a área, em todas as suas múltiplas funcionalidades.

A macro-área estudada situa-se no centro pobre do Rio de Janeiro e conforma-se por uma urdidura tradicional de uso predominantemente habitacional, desenvolvida no século XIX, como uma periferia do centro que, posteriormente, se modificou segundo as demandas impostas pelas sucessivas modernizações, advindas do crescimento desordenado da cidade e da implementação dos sistemas de transporte de massa. No princípio do século XX, depois da grande intervenção de Pereira Passos, os núcleos habitacionais tradicionais foram, paulatinamente, cedendo espaço para as “faxinas urbanas” de temática higienista. Como conseqüência, o espaço atual está configurado por uma sucessão de “cicatrizes urbanas”, marcas das múltiplas intervenções urbanas pontuais que geraram “desurbanizações”, empobrecendo o território, uma vez rico em tradição, história, cultura e tipologias arquitetônicas.

Considerando a situação urbana atual, os processos de desenvolvimento urbano devem ser estudados e praticados sob uma ótica global e integrada, ou seja, um processo de desenvolvimento habitacional que deve proporcionar oportunidades de desenvolvimento econômico e social homogêneo para a área. Esta é, sinteticamente, a diretriz estruturadora da nossa proposta.

Acreditamos que os processos de desenvolvimento urbano devem sempre estabelecer um resultado não gerador de segregação – “remoções brancas”, expulsão ou, nos termos de hoje, gentrificação. Para tanto, partindo do reconhecimento das características locais, destacamos como prioridades os seguintes pontos:

  • Revitalização das áreas, reforçando ou reestabelecendo os laços comunitários;
  • Remanejamento das populações em áreas de risco;
  • Criação de estruturas-suporte de serviço e lazer;
  • Requalificação e reaproveitamento das estruturas habitacionais tradicionais;
  • Criação de novos modelos habitacionais, integrados às tipologias tradicionais;
  • Reestruturação do sistema de transportes na macro-área;
  • Criação de abrigos para a população de rua;
  • Previsão e criação de espaços para cooperativas, programas de integração social, educação e geração de empregos;
  • Criação de oficinas profissionalizantes;
  • Restauro e preservação de conjuntos históricos; e
  • Manutenção e valorização dos valores culturais e espaciais existentes.

Caracterização

Inicialmente, o espaço choca o observador por sua grande degradação espacial e humana, tamanhos são os conflitos espaço-temporais entre as diferentes ocupações do solo e a multidão multiforme: as habitações decadentes e seus velhos habitantes alquebrados; as ruínas ilegalmente usadas como estacionamentos de vans e os barracos das favelas que se interpenetram sem cerimônia; os grandes galpões industriais abandonados; os mercados emergentes – formais e informais –; os dois grandes terminais rodoviários; o restaurante popular e a sua clientela de trabalhadores, mendigos, loucos, prostitutas e marginais. Com o primeiro olhar, é impossível (re)conhecer a cidade. Depois do primeiro impacto, entretanto, a área deixa-se decodifcar mais objetivamente. Sua tipologia edilícia é tradicional e multiforme, estando principalmente caracterizada por sobrados e galpões industriais do fim do século XIX e do início do século XX, que se misturam a algumas poucas vilas operárias decadentes e ruinas de velhos casarões imperiais; uma visão sempre dominada pela ubíqüa massa dos quatro quadrantes do relógio da Estação D. Pedro II.

O sistema viário é composto por quatro vias de penetração e um emaranhado de vias locais que dão acesso ao Morro da Providência e do Livramento e, conformadas mais regularmente, subdividem a urdidura da parte topograficamente plana do território. Um magro comércio local pontua as ruas: pequenos mercados, hotéis de encontros fortuitos, bares, cortiços, pequenas oficinas gráficas, oficinas mecânicas e pensões decadentes.

A área estudada é grandemente deficiente em espaços públicos de lazer e de estruturas urbanas de suporte e serviços. Somente duas praças oferecem aos moradores e passantes um espaço de descanço e permanência, isso no caso de não estarem ambas completamente ocupadas pelo mercado informal (camelôs) e sem equipamentos ou mobiliário urbano.

Requalificar o centro: urbanizar

A área estudada caracteriza-se por uma grande diversidade espacial. Muitas construções datam do final do século XIX, com um grande número de casas térreas ou de até três pavimentos; outras construções datam do início do século XX, em exemplos que vão desde as primeiras edificações com mais de três pavimentos, até os meados do século passado, quando seriam erguidas as grandes construções institucionais, como o prédio da Central do Brasil (1) e do antigo Ministério da Guerra.

As tipologias habitacionais, em grande parte, são as características do final do século XIX e início do XX, o casario térreo e as vilas (2) são as marcas das intervenções de caráter higienista desse período. Encontramos ainda alguns cortiços (3) com grande concentração de moradores, como os existentes desde o período colonial. As suas contínuas eliminações foram abrindo espaço para os primeiros processos de suburbanização e as primeiras favelas, como o Morro da Providência, a primeira favela da cidade, e o Morro da Pedra Lisa (4).

Com a inserção de novos usos na área, o caráter habitacional começou a perder espaço, ou a entrar em conflito com as soluções criadas para o sistema de transporte de massa que, se em um primeiro momento viria solucionar um problema iminente, em outro, com o passar do tempo, viria permitir um gradativo processo de degradação e degeneração da área (5) e de seus usos originais.

Contemporaneamente, o problema passou a ser maior, com o agravamento da crise no sistema de transportes. O aumento do número de passageiros não correspondeu a um aumento e nem à melhoria na qualidade dos serviços oferecidos, seja através dos sistema rodoviário ou do ferroviário. Este quadro, conciliado ao desemprego e à falta de oportunidades, gerou um crescente aumento das atividades informais.

Incontestavelmente o sistema de transportes alternativos surge para responder a uma demanda real, porém, mais do que solucionar um problema, esta prática também oferece leituras de questões urbanas insolúveis: as cidades tem condições de responder a demandas de forma apenas limitada, em função de suas estruturas físicas. Caso essa correspondência não seja obedecida, o que se observa é a inauguração de um colapso.

O reflexo dos processos que foram iniciados com a construção do Terminal Américo Fontenelle (6), podem ser, com o aprofundamento da gravidade da situação, melhor observados hoje, quando algumas edificações de indiscutível valor histórico começam a se transformar, ora em verdadeiros terminais de vans (7), ora em estacionamentos para carros (8). A prática que se faz corrente é a de deixar o miolo das construções cairem, para que o parqueamento seja favorecido e os terrenos gerem renda para seus proprietários. Assim, espaços que poderiam estar respondendo à carência habitacional, terminam por responder a uma demanda negativa para o desenvolvimento da cidade, configurando aquilo que classificamos como “processos de degeneração” que, diferentemente dos processos de degradação ou de usos indevidos, orientam uma nova vocação econômica de forma generalizada.

Como é comum nos terminais intermodais, o grande fluxo de pessoas é bastante explorado pelo comércio de rua, seja por mercados populares já institucionalizados (9), ou seja por mercados informais (10). No entanto, como a própria formalização dos camelódromos já orientou, esses usos podem nortear novas formulações na apropriação do espaço que, se bem estruturadas, terminam por indicar soluções bastante apropriadas à nossa realidade .

Requalificar o centro: preservar

Alguns critérios importantes orientaram – além de todas as nossas propostas de intervenção sobre a cidade –, também o desenvolvimento de nossas propostas habitacionais. São eles: a Vitalidade, ou o grau em que a forma da cidade sustenta as funções vitais, as necessidades e capacidades da população; o Sentido, ou o grau em que a percepção e diferenciação mental e estruturação no espaço-tempo se dá entre os seus habitantes, o grau em que esta percepção se liga com seus valores e conceitos, o ajustamento entre o espaço urbano construído e as capacidades mentais e sensoriais dos habitantes do lugar; a Adequação, ou o grau em que a forma e a capacidade dos espaços e equipamentos da cidade se adeqüam às atividades realizadas por seus habitantes; a Acessibilidade, ou a capacidade de ir e vir de seus habitantes em busca de trabalho, informação, conhecimento, serviços ou lugares; e, finalmente, o Controle, ou o grau em que o uso e o acesso aos espaços, às atividades e às suas criações podem ser controladas pelos seus habitantes. Esses critérios estão submetidos a dois critérios maiores, ou metacritérios, a saber: a Eficácia, ou o custo, em termos de tudo o que é valorizado, da criação e manutenção da intervenção, em quaisquer dos critérios das dimensões de rendimento ambiental anteriormente enumerados; e a Justiça, que é a forma pela qual os benefícios e custos são distribuídos entre os habitantes do lugar a partir de princípios concretos como a equidade, a necessidade, o valor intrínseco, a possibilidade de pagar, o esforço realizado e a contribuição potencial da sociedade e do poder. (Lynch, 1981: 92)

Por estas razões, e também por acreditarmos que “aqueles que não têm lembranças do passado estão condenados a repetí-lo para sempre, inexoravelmente” (Santayana), a ordem de prioridades demonstradas por nossa proposta de intervenção integrada é, acima de tudo, preservar e restaurar todas as estruturas históricas ainda existentes, com a clara intenção de, através da manutenção da memória e dos valores tradicionais, estimular o ressurgimento dos adormecidos sentimentos de afetividade, civilidade, pertencimento, urbanidade e cidadania.

Para o reaproveitamento das estruturas históricas, propomos intervenções dentro de uma ordem de prioridades, estabelecidas dentro dos critérios descritos acima. Nos parece evidente que, para que se mantenha de pé a idéia de “morar no centro”, é necessário que se criem estruturas urbanas de suporte à habitação. Assim, entre as estruturas históricas preserváveis, as de maior porte estarão destinadas a abrigar atividades de suporte, tais como: cooperativas, programas de integração social, escolas profissionalizantes e abrigos temporários para a população de rua. Entretanto, para as estruturas históricas de menor porte, nossa proposta prevê a preservação e a requalificação, mantendo e restaurando, sempre que isso for possível, as suas características habitacionais.

Em resposta às demandas habitacionais, nossa proposta prevê, desta forma, a restauração e requalificação de edificações abandonadas; o aproveitamento dos vazios intersticiais conformados pelos terrenos desocupados, que servirão de suporte para a construção de novas estruturas habitacionais; as ações de reforma e restauração dos cortiços, preservando o seu uso habitacional; e, por último, a requalificação e reaproveitamento das pensões existentes, transformadas em abrigos transitórios ou tendo preservados os seus usos.

Requalificar o centro: Habitar

A única função justificadora para uma cidade é a moradia. Podem existir cidades sem indústrias, ou mesmo sem instituições públicas, mas não existe, em nenhum lugar, cidade sem habitações. Assim, o habitar é a função urbana principal sugerida por nossa proposta de ação integrada sobre a urbe. Todas as outras ações e propostas apresentadas são funções essenciais pensadas exclusivamente para afirmar a função do morar no centro, estando claro para nós que, sem planejamento e ações integradas entre o poder público, os agentes financeiros e a sociedade, criando e melhorando as funções estruturais urbanas de suporte, por si só, a função habitação não poderá nunca existir.

Assim, as novas habitações propostas foram desenvolvidas a partir de análises morfológicas e tipológicas realizadas sobre o tecido urbano tradicional da área em questão, respeitando as potencialidades, as volumetrias, os ritmos, as alturas e as permanências arquitetônico-urbanas. Sempre que possível, procuramos respeitar a memória do lugar, dando suporte à manutenção dos valores culturais perenes e imateriais que, por sua vez, irão restaurar os sentimentos de pertencimento e urbanidade esquecidos pela população. É forçoso dizer que, para a criação das novas estruturas habitacionais, a proposta prevê apenas o uso das porosidades espaciais conformadas pelos pequenos vazios intersticiais, terrenos vagos e remanescentes de demolições.

Sobre estes sítios, propositalmente e sempre que possível, o nosso gesto arquitetônico nos conduziu a uma implantação com a intenção de criar, nos interiores das quadras, espaços com tratamento paisagístico, formalizando com clareza as suas caracterizações como micro-permanências ou praças, que poderão ser – dependendo ou não da existência, no miolo das quadras, de alguma estrutura de suporte às habitações –, espaços semi-públicos ou públicos. Para tanto, a permeabilidade e acessibilidade destes miolos de quadra estará sempre garantida, estimulando assim o seu uso diferenciado, no primeiro caso pelos habitantes da quadra, no segundo por toda a população.

curriculum vitae

Eduardo Vasconcellos – arquiteto e professor na EAU / UFFElisabete Reis – arquiteto e professora na CAU / UGFGustavo Martins – arquiteto formado na EAU / UFFMarcelo Varotto – arquiteto formado na EAU / UFFRonaldo Brilhante – arquiteto formado na EAU / UFF

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Equipe de trabalho
São Paulo SP Brasil

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021.02 Concurso
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Organização
São Paulo SP Brasil

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021.01 Concurso

Revitalização das Vias W3 Sul e W3 Norte

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