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projects ISSN 2595-4245


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Eduardo Barra narra sua relação com o projeto não realizado de Roberto Burle Marx para a Praça Bagatelle, em Belo Horizonte.

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BARRA, Eduardo. Bagatelle. A praça perdida de Burle Marx. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 126.01, Vitruvius, jun. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.126/3887>.


Em 2003, fui convidado a desenvolver projeto paisagístico para o aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte. O serviço incluía, além de pequenas áreas ajardinadas ao longo e no interior do edifício, os jardins do edifício-garagem, a ser construído no terreno vizinho, e a reforma da praça fronteira, denominada Bagatelle, com cerca de dez mil metros quadrados. Minhas limitações projetuais quanto à praça foram estabelecidas de pronto pelo cliente, que encomendou apenas a revisão do plantio e modestas obras de adaptação e melhoria, dispensando a remodelação integral do espaço.

O setor então utilizado como estacionamento deveria ser incorporado à praça, o que resultaria na eliminação da pista de veículos existente entre os dois ambientes, trazendo evidentes benefícios. Mas, por outro lado, o acesso ao novo edifício-garagem exigiria a incorporação de um viaduto ao programa, provocando interferência nada desejável. O tratamento paisagístico também deveria buscar a integração do aeroporto reformado e ampliado à “nova” praça, tornando amigável a convivência entre a intensa movimentação de passageiros e de veículos.

Ainda não existia planta baixa da área objeto do trabalho, apenas poucas fotos feitas por amador (figura 1), que não permitiam a plena compreensão do espaço ou a visualização de seus componentes mais significativos, embora informassem que a área contava com considerável patrimônio arbóreo consolidado pelo tempo, mas, do ponto de vista paisagístico, distribuído sem aparente coerência compositiva.

Como a expressão Pampulha remete imediatamente a Burle Marx, corri para o Flávio Motta (1), constatando, no rol de trabalhos publicado no fim do livro, o registro de projeto para aquele aeroporto, datado de 1953. Apenas isso, nenhuma informação a mais. Deduzi, portanto, que não estava diante de um singelo trabalho de reforma, como havia sido levado a crer, mas da imensa responsabilidade de interferir em uma obra de Roberto Burle Marx!

02. Praça de Bagatelle, Belo Horizonte, projeto de Burle Marx, 1953
Desenho Larissa de Aguiar


Procurei, sem êxito, referência a esse trabalho na extensa bibliografia sobre o mestre: nenhum desenho, nem uma linha. Então, pedi a Haruyoshi Ono para consultar o projeto original em seus arquivos. No Escritório Burle Marx, deparei com desenhos (figura 2) que representavam tratamento geométrico do espaço, com renques de palmeiras de espécies diferentes dispostas de forma compassada e ortogonal, bancos em ziguezague e traçado retilíneo do piso em mosaico português branco e preto.

03. Praça de Bagatelle, Belo Horizonte, projeto de Burle Marx. Painel e bancos em ziguezague, totens em granito, distribuição compassada da arborização
Desenho Larissa de Aguiar


O projeto previa, ainda, a implantação de grande lago retangular com caixas submersas para plantio de vegetação aquática, painel artístico com 2,20 metros de altura e cerca de 10 metros de extensão, e quatro totens de 8 metros de altura, formados pelo empilhamento de blocos de granito de tamanhos diversos (figura 3).

04. Praça Salgado Filho, Rio de Janeiro, diante do Aeroporto Santos Dumont, projeto de Burle Marx, 1938
Desenho Larissa de Aguiar

05. Praça Salgado Filho, Rio de Janeiro, em 2009, evidenciando necessidade urgente de recuperação
Foto Augusto Burle


A solução formal não mantinha nenhuma similaridade com os outros trabalhos do paisagista para praças fronteiras a aeroportos: a carioca Salgado Filho (bem anterior, de 1938, figuras 4 e 5) e a recifense Ministro Salgado Filho (posterior, de 1957, figuras 6 e 7), ambas com estilo que o leigo convencionou chamar de “amebóide”, ou seja, canteiros ajardinados de formas sinuosas entrelaçados organicamente com caminhos pavimentados e contornos serpejantes de espelhos d’água.

06. Praça Ministro Salgado Filho, Recife, próxima ao Aeroporto dos Guararapes, projeto de Burle Marx, 1957
Desenho Larissa de Aguiar

07. Praça Ministro Salgado Filho, Recife, em 1995 [Acervo Quapá]


Também não havia nenhuma relação estética entre aquele projeto e os consagrados jardins da vizinha lagoa da Pampulha (figura 8), desenvolvidos em 1942 para o Cassino (figura 9), o Iate Clube, a Casa de Baile e a Igreja de São Francisco, projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer.

08. Vista atual da Pampulha, mostrando a proximidade entre o aeroporto e as obras emblemáticas da década de 1940, projetos de Oscar Niemeyer [Google]

09. Vista aérea atual do antigo Cassino da Pampulha, com seus jardins “amebóides”, projeto de Burle Marx, anos 1940 [Google Maps]


Na qualidade de prefeito da capital mineira, Juscelino Kubitschek havia sido o responsável direto pelas obras da Pampulha. Nove anos depois, havia galgado ao cargo de governador do estado, e em 1953 posicionava-se à frente das obras do aeroporto, tendo Américo Renée Giannetti, prefeito da cidade e proprietário de todas aquelas terras, como aliado na empreitada. Como terão reagido os dirigentes mineiros diante da falta de compromisso do paisagista com as surpreendentes formas orgânicas do passado recente, ícones da modernidade e da vanguarda cultural alterosa?

Roberto Burle Marx, como se sabe, era um artista completo e, para ele, a arte não podia se circunscrever a uma área de conhecimento específica. Para entender as transformações ocorridas em sua forma de desenhar, é necessário compreender o momento artístico em que o projeto se insere. Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais,

“o período após a Segunda Guerra Mundial é tomado por desdobramentos do abstracionismo (...). As orientações geométricas convivem com outras, muitas vezes na obra de um só artista, o que dificulta classificações rígidas. (...) No Brasil, o abstracionismo se evidencia por meio do movimento concreto de São Paulo – Grupo Ruptura, criado em 1952 por Waldemar Cordeiro, Lothar Charoux, Geraldo de Barros, entre outros – e do Rio de Janeiro – Grupo Frente, formado em 1954 por alunos de Ivan Serpa, e do qual participam artistas como Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, Franz Weissmann” (2).

Duas informações do trecho acima despertam a atenção: o fato de o líder do movimento concreto paulista, Waldemar Cordeiro, além de pintor, escultor, gravador, desenhista, ilustrador, designer e crítico de arte, ser também um respeitado paisagista, e a constatação da convivência entre orientações geométricas e “outras” na obra de um mesmo artista, característica comprovada pelo depoimento de Burle Marx de 1962: “Não se podem criar jardins de acordo com regras, com imposições. Uma obra de arte decidirá sempre sua própria estrutura. Nem sempre uma regra estabelecida para um jardim serve para outro” (3).

Como lembra Flávio Motta, “Lucio Costa, inicialmente, havia observado que constituía um dos preceitos da urbanização moderna o contraste entre a rigidez, a simetria, a disciplina da arquitetura e a imprecisão, a assimetria, o imprevisto da vegetação” (4). Motta argumenta que “na composição de seus primeiros jardins, Burle Marx, sob o aspecto formal, adotou soluções assimétricas. Mas, elas sofreram modificações e evidenciaram, com o tempo, um sentido mais retilíneo”. O autor ainda considera que “Burle Marx saltou ou mesclou as soluções primeiras às segundas, em breve tempo”. E arremata: “é de considerar-se que tais formulações vão além desses pressupostos formais, quando levam em conta a implantação do jardim, a situação topográfica ou, mesmo, os objetivos do projeto. Assim, desde cedo já está, em germe, o rigor geométrico, configurando retângulos, círculos e quadrados.” Sobre o projeto não executado para a Praça da Independência (1952), em João Pessoa, Flavio Motta afirma que “durante a década de 50, se manifestam com notável constância, projetos com uma ordenação geométrica mais precisa”, nos quais os conjuntos vegetais se definem volumetricamente “por contraste de cor, textura, massas e intervalos, mediante perspectivas e soluções espaciais inesperadas. Os renques de palmeiras se distribuem como colunatas a céu aberto” (5), impressão confirmada por Jacques Leenhardt em outro projeto de clara ordenação geométrica – os jardins do Museu de Arte Moderna (1956) –, ao mencionar o palmeiral plantado pelo paisagista, em que “contrariamente à maneira tradicional de fazer aléias, essa não conduzia a nada em especial: nem pórtico de entrada, nem um monumento prestigioso. Uma aléia por si mesma e para si mesma, seria o caso de dizer” (6).

Além desses projetos, encontramos, no período, outros com características formais predominantemente retilíneas, como o Parque do Ibirapuera em São Paulo (1953), a residência Edmundo Cavanellas, atual Gilberto Strunck, em Petrópolis, RJ (1954) – em que são contrapostos, sem pudor, rigor geométrico e sensuais linhas sinuosas –, as residências David Guimarães e Sérgio Correia da Silva, ambas de 1955 no Rio de Janeiro, e a residência Francisco Pignatari (7) em São Paulo. Marta Iris Montero ressalta que Roberto,

“sem abandonar seus jardins ondulados, mas tencionando integrar-se à arquitetura racionalista, ensaiou em 1954 a geometria pura, evitando não obstante os eixos de simetria, que rechaçava visceralmente: A assimetria libera o espírito. Descobriu que, se a geometria não representa o objeto visual real, pode, todavia, transmitir o mundo real da emoção” (8).

10. Vaso com strelitzia e ficus. Roberto Burle Marx, 1939, óleo sobre tela


Era de se esperar que esse momento de transição da linguagem também estivesse presente em sua obra pictórica, na medida em que trocava o figurativismo pelo cubismo – como se pode observar nas obras Vaso com strelitzia e ficus, de 1939 (figura 10), e Paisagem, de 1946 (figura 11) –, para em seguida mergulhar no mais puro abstracionismo geométrico, aqui representado pelo estudo de 1953 (figura 12) para painel a ser aplicado no Edifício Ceppas, no Rio de Janeiro, projetado por Jorge Machado Moreira (9).

11. Paisagem, 1946. Roberto Burle Marx, óleo sobre tela

12. Painel para Edifício Ceppas, Rio de Janeiro, arquiteto Jorge Machado Moreira. Roberto Burle Marx, estudo, 1953


Os desenhos a mim apresentados por Haru, naquela remota manhã de 2003, não pareciam coincidir com as precárias fotos de que dispunha, levando-me a imaginar que algum profissional “criativo” poderia ter resolvido “melhorar” a concepção de Roberto. Se assim fosse, minha missão deveria ser tentar o retorno à solução original – na medida do possível, claro!

Ao receber o levantamento topográfico, constatei que o perímetro da praça havia sofrido modificações ao longo do tempo. Até aí, nada demais, pois, ainda que se possa lamentar, seria admissível que, depois de 50 anos, a área precisasse se adequar às demandas dos novos tempos, cedendo um trecho para estacionamento, outro para a abertura ou alargamento de uma rua... Mas, além disso, percebi que os desenhos dos canteiros vegetados, do projeto e da realidade, não falavam a mesma língua, embora quisesse acreditar que as árvores e palmeiras, os elementos verdadeiramente estruturadores do espaço, continuassem lá – àquela altura, cinquentenários. Na verdade, também não havia coincidência entre a distribuição da vegetação de porte imaginada por Roberto em seu projeto e a registrada pelo topógrafo, mas isso eu teria que confirmar na visita à Belo Horizonte. No fundo, eu ainda tinha a esperança de encontrar algum elemento do projeto original, ao qual pudesse me agarrar para promover o resgate das soluções formais e espaciais concebidas pelo mais importante paisagista do século XX.

13. Visão atual da Praça Bagatelle. Áreas destinadas a estacionamento reduziram significativamente o espaço da praça [Google Maps]


Mas a aterrissagem na Praça Bagatelle não deixou dúvidas: o projeto de Roberto Burle Marx não chegou a ser implantado (figura 13). Ou, numa hipótese catastrófica – não consegui apurar –, sucumbiu em 1954, diante do rompimento da barragem da lagoa da Pampulha, acidente que provocou a submersão de toda aquela região. Nenhuma árvore mantinha a posição estabelecida no projeto original em 1954, nem as espécies vegetais eram as mesmas. Nada dos totens imaginados por Burle Marx, nenhum vestígio do painel ziguezagueante de cores fortes, nem sinal dos renques de palmeiras. Na verdade, deparei com o arremedo de um projeto supostamente burlemarxista, com amebas ridículas e caminhos que não levavam a lugar algum, além de apresentarem dimensionamento espacial tão desproporcional que geravam espaços despersonalizados, sem qualquer possibilidade de ambientação. Havia um lago seco de formas irregulares, que não contribuía em nada para a valorização do conjunto. Tentei descobrir o autor daquele projeto, mas, aparentemente, ninguém quis assumir a paternidade. A conclusão a que cheguei de toda essa história é mera suposição, mas soa coerente. Se alguém possuir informação mais confiável ou mais fundamentada, que me corrija – pois ajudará a resolver o enigma.

Em 1953, Roberto Burle Marx já era reconhecido nacional e internacionalmente, tendo projetos realizados em todo o Brasil e no exterior. Àquela altura, havia realizado, entre muitos outros, os trabalhos iniciais no Recife; o Ministério da Educação e Saúde, a praça Santos Dumont, a Associação Brasileira de Imprensa, o Instituto de Resseguros do Brasil, o Jardim Zoológico, o Conjunto Residencial do Pedregulho, as residências Roberto Marinho e Walter Moreira Salles, o Aeroporto Internacional do Galeão, o Pavilhão de Doenças Tropicais do Instituto Oswaldo Cruz, a Universidade do Brasil e a Embaixada dos Estados Unidos, todos no Rio de Janeiro; o Parque Sólon de Lucena em João Pessoa, a Praça de Cataguazes, o Terreiro de Jesus em Salvador, o Grande Hotel de Ouro Preto, a residência de Juscelino Kubitschek em Belo Horizonte, o Parque de Araxá, as Serena Beach Properties na Califórnia, o MASP, as residências Odete Monteiro em Petrópolis, Olivo Gomes em São José dos Campos e Diego Cisneros em Caracas. Já havia deixado em todos os cantos a marca vigorosa de seu desenho e havia criado, por assim dizer, um estilo próprio, o estilo paisagístico do século XX. As obras da Pampulha não fugiam a esse conjunto de formas sinuosas identificadas com o modernismo, a modernidade e o próprio futuro. Ao encomendar mais um projeto ao eminente paisagista, a expectativa deveria ser de continuidade, de repetição da fórmula consagrada. Mas consta que Roberto Burle Marx gostava de citar o apotegma atribuído a Picasso: “É preferível copiar os outros que a si mesmo”. E então, para surpresa geral, resolveu inovar e surgir com projeto de características formais bastante diferentes. Posso imaginar a expressão de espanto dos clientes e fico conjeturando se tiveram a coragem de expressar o que se passou em suas cabeças. O fato é que Burle Marx apresentava um projeto que “não parecia” de Burle Marx, e talvez a melhor solução fosse não entrar em conflito com o mestre, mas arranjar alguém familiarizado com seu famoso estilo para projetar algo mais, digamos, burlemarxista – como se isso fosse factível. Devem ter achado que conseguiram, pois a verdade é que a praça foi implantada do jeito que lá está, e assim permanece. Sim, porque meu modesto projeto de reforma (figura 14) também não foi implantado. Aquele terreno parece contaminado, fadado a abrigar algo que de longe pode parecer, mas está longe de ser: uma criação de Roberto Burle Marx.

14. Praça de Bagatelle, Belo Horizonte, projeto de reforma, arquiteto Eduardo Barra, 2003. À direita, o viaduto de acesso ao edifício-garagem


notas

NE
Artigo originalmente foi publicado na revista Folha, nº 20, maio 2010, publicada pela Sociedade dos Amigos de Roberto Burle Marx.

1
MOTTA, Flávio L. Roberto Burle Marx e a nova visão da paisagem. São Paulo: Nobel, 1983.

2
www.itaucultural.org.br, verbete abstração geométrica.

3
TABACOW, José (org.). Roberto Burle Marx: arte & paisagem. São Paulo: Studio Nobel, 2004, p. 63.

4
Idem, ibidem, p. 35.

5
Idem, ibidem, p. 86.

6
LEENHARDT, Jacques. “Roberto Burle Marx na história: do modernismo à ecologia”, em Roberto Burle Marx, 100 anos: a permanência do instável. CAVALCANTI, Lauro; DAHDAH, Farès. Rio de Janeiro, Rocco, 2009.

7
Marta Iris Montero comenta esse jardim: “(...) hipergeométrico, no qual o elemento plástico é protagonista, evoca – segundo alguns críticos – o jardim cubista, onde a exaltação dos jogos de luz através da cor e do movimento da água criam vibrações com sua violência, ritmos, contrastes.” Burle Marx, paisajes líricos. Buenos Aires, Iris, 1997, p. 49.

8
Idem, ibidem, p. 50.

9
Como informa Haruyoshi Ono.

sobre o autor

Eduardo Barra é arquiteto paisagista, presidente da Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas no período 2005-2008. Para este artigo, contou com a colaboração da arquiteta Larissa de Aguiar na pesquisa, nos desenhos, na seleção e manipulação digital de imagens, e na revisão do texto final.

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