A Praça Victor Civita, de autoria das arquitetas Adriana Blay Levisky e Anna Julia Dietzsch, complexo de comércio e serviços edificado no bairro paulistano do Itaim Bibi, já foi publicado anteriormente pelo portal Vitruvius (1).
A obra que foi fruto de uma parceria público-privada entre o grupo Abril Cultural – cuja sede fica à frente da praça – e a prefeitura da cidade de São Paulo. O terreno, pertencente à municipalidade, é uma area contaminada, pois abrigava um incinerador de lixo. O projeto propõe a reabilitação da área contaminada, com o plantio adequado à essa finalidade. Como o processo é demorado, a implantação de um deck de madeira sobre estrutura metálica reciclada, permite a utilização da area, sem prejuizo à saúde dos frequentadores.
O programa do projeto abarca dois conjuntos de atividades distintos: às relativas a uma praça tradicional, com espaços concebidos para passeios, recreação e shows; e instalações e atividades de museu aberto da sustentabilidade, com percursos educativos sobre tecnologias sustentáveis – sistemas de reuso de água; energia solar; produção de bioenergia; processos de descontaminação de solos e águas subterrâneas –, além de informações sobre a história do local.
Na entrevista abaixo, realizada por Abilio Guerra e Aline Alcântara, a arquiteta Anna Julia Dietzsch, uma das autoras, comenta sobre a concepção do projeto e execução da obra, e faz um balanço dos resultados após três anos de sua implantação.
notas
1
Praça Victor Civita – museu aberto da sustentabilidade. Projetos, São Paulo, n. 09.106, Vitruvius, out. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/09.106/2983>.
entrevistaAbilio Guerra / Aline Alcântara: Qual o partido original do projeto? Qual a relação entre o partido e as demandas apresentadas pelo cliente?
Anna Julia Dietzsch: O projeto nasceu do desejo inicial do cliente de transformar o terreno do incinerador desativado em uma praça. Queriam reverter o estado de abandono em que o terreno se encontrou por muito tempo e também transferir o posto de coleta de lixo reciclável em que havia recentemente se transformado.
O diferencial que o projeto apresentou foi o de não fazer uma praça tradicional, como primeiramente cogitado, em que se "esconderia" a contaminação sob uma camada de terra nova a ser despejada por toda a extensão do terreno. Ao invés disso, o partido de projeto sugeriu suspender a praça sobre a contaminação e usar o projeto, o lugar, também como uma ferramenta para a exposição do problema e a reflexão sobre ele.
O meu trabalho final de mestrado em Harvard relacionava-se com estudo dos "brownfields", do "terrain vague" de Sola Morales, e quando fui convidada por Levisky Arquitetos a participar do projeto, o problema da contaminação urbana, o legado da cidade industrial, tão recorrente nas grandes metrópoles, foi o que me atraiu como problemática e me levou a pensar no partido acima mencionado.
AG/AA: Qual ou quais projetos, nacional ou internacional, foram tomados como referências para o desenvolvimento da Praça Victor Civita?
AJD: Logo antes de participar do projeto da PVC, fiz parte da equipe da DBB Aedas que concebeu o design do Museu do Memorial do World Trade Center (9/11 Museum). Para esse projeto também desenvolvemos um partido de "mínima intervenção", desenhando o museu como uma "rampa" que serpenteia sob a praça do Memorial e leva o visitante ao leito de rocha e às fundações dos antigos prédios, os testemunhos físicos do estrago feito, sem transformá-los ou tocá-los.
Essa "rampa" foi concebida quase como um objeto, em madeira, onde o plano horizontal se desdobra para o vertical, guiando o visitante e ao mesmo tempo servindo de suporte à exposição. Retomei essa forma na PVC, onde o deck de madeira se desenvolve do plano horizontal ao vertical continuamente, sem quebras, formando o que chamamos de "grandes salas urbanas".
Também foram inspiradores projetos como o Terminal de Yokohama e o Maritime Youth House em Copenhagen, pelo uso da madeira, e projetos como o Parque Westergasfabriek na Holanda, pela temática da contaminação e reciclagem de espaços e edifícios contaminados.
AG/AA: O terreno abrigava, antes da implantação da praça, um incinerador de lixo da subprefeitura de Pinheiros. A quem pertence hoje o terreno? Foi atribuído algum tipo de concessão da área para o Grupo Abril? Em caso positivo, por quanto tempo?
AJD: O projeto foi viabilizado por um acordo público-privado entre a Abril Cultural e a prefeitura. Esse acordo foi mediado por Levisky Arquitetos Associados, escritório chamado pela Abril por sua experiência em consultoria de zoneamento. A grande sacada desse escritório foi a de incluir o projeto no Termo de Referência assinado entre Abril e prefeitura. Isso ajudou muito a manter a integridade do projeto. Por seu caráter inovador, não sei se o projeto teria sobrevivido na sua concepção original se não fosse esse fato. O próprio acordo é inovador no Brasil. A propriedade do terreno permanece da prefeitura, com concessão de uso para Abril.
AG/AA: O programa “Museu Aberto da Sustentabilidade” foi estabelecido por quem?
AJD: O termo "Museu Aberto da Sustentabilidade" foi cunhado pela arquitetura. A idéia era de que o projeto como um todo fosse um "museu aberto". No decorrer do projeto surgiu a idéia, conjuntamente com o cliente, de abrigar um museu ipses literis no térreo do incinerador. Os outros pisos seriam ocupados com outros programas mantidos pela Abril, como uma biblioteca , oficinas de fotografia, etc.
AG/AA: Quais foram as exigências estabelecidas pelo Grupo Abril e pelo poder público (subprefeitura e prefeitura) para a concepção do projeto?
AJD: A prefeitura teve algumas exigências advindas de suas diferentes secretarias e funções. Por exemplo, foi preciso preservar todas as árvores existentes, assim como garantir a limpeza ou isolamento ao contato dermal dos elementos e terreno contaminados. Pediu-se também que o centro que já atendia à terceira idade no local fosse mantido.
A Abril tinha como meta inicial a construção de um teatro no local. Um projeto anterior, antes do meu envolvimento, propunha um teatro fechado, o isolamento do incinerador e uma praça "tradicional" na parte frontal. Assim, a incorporação do anfiteatro foi um “must”. Também a pedido da Abril se instalou na Praça a ONG “Verde Escola” e se criou um percurso “circular” para caminhadas.
AG/AA: De quem partiu a ideia ou iniciativa dos seguintes itens do projeto?: a) deck suspenso em madeira; b) áreas para prática de exercícios; c) palco; d) área de lazer para idosos; e) painéis fotovoltaicos; f) praça de paralelepípedos.
AJD: Com exceção da área para a terceira idade e o anfiteatro, os outros elementos e programas foram sugeridos pela arquitetura, sempre em discussão com o cliente.
AG/AA: A participação de Benedito Abbud se restringiu à especificação da vegetação ou foi mais abrangente? O uso de espécies com funções orgânicas, fitoterápicas e medicinais, bem como o jardim do etanol, com cana-de-açúcar, milho, soja etc., foram escolhas exclusivas de Benedito Abbud?
AJD: Benedito entrou no projeto no final do estudo preliminar e foi instrumental na implementação do que chamamos da "curadoria da exposição" da praça. Queríamos que o próprio plantio da praça fosse uma exposição e estivesse ligado a temas relacionados ao conceito do projeto, que envolvia o uso da natureza para a transformação do meio humano. Assim, surgiram sete grupos de plantio; as plantas fitoterápicas, aquelas das quais geramos energia, os transgênicos etc.
AG/AA: O uso de irrigação por capilaridade, tecnologia desenvolvida por Abbud em parceria com a Universidade de Bauru, é funcional? Quais os principais benefícios e problemas?
AJD: Sim, funciona.
AG/AA: Qual foi a maior dificuldade em desenvolver um projeto em solo contaminado?
A primeira dificuldade surgiu do fato de haver uma decisão oficial de se aterrar todo o terreno antes de se poder instalar qualquer programa de uso público ali. Também houve resistência em se aceitar a limpeza especializada e o uso do incinerador, pelo nível de contaminação em suas paredes.
AG/AA: Surgiu algum imprevisto na hora da execução do projeto?
AJD: O desenho dos cantos do deck de madeira tiveram que ser modificados. Havia desenhado-os curvos, como cones côncavos e convexos, porém não conseguimos encontrar uma empresa que pudesse fabricá-los com garantia. A questão da certificação da madeira também se revelou mais difícil do que supúnhamos. Por falta de fornecedores acabamos usando apenas três das seis madeiras recomendadas pelo IPT.
Esperava também que a estrutura do deck ficasse mais à vista, para que de todos os ângulos se pudesse ver claramente que o deck sobre o qual se anda está suspenso sobre o terreno original. Por motivos de erro na leitura dos níveis do projeto e do detalhe de encontro entre deck e jardineiras isso não aconteceu.
AG/AA: Há algum item do projeto que não foi executado? Qual o motivo?
AJD: Gostaria de poder ter usado o processo de phytoremediation na praça, onde as próprias plantas descontaminam o solo. É uma técnica usada há muito tempo na Europa e que também vem se difundindo nos EUA nas últimas décadas. Infelizmente, por motivos legais e de custo não pudemos implementar essa idéia.
AG/AA: Após este período de implantação, qual o balanço que faz sobre o uso da Praça Victor Civita?
AJD: Acima de tudo, acho que a Praça Victor Civita demonstra que há outras maneiras de se construir a cidade fora da lógica da iniciativa puramente pública, ou daquela estritamente privada. Quando os interesses convergem e há tolerância e vontade de negociação, idéias bonitas podem ser realizadas. Quem sabe não teremos outras praças construídas assim?
ficha técnica
Autoria
Adriana Blay Levisky
Anna Julia Dietzsch
Gestão e Coordenação
Levisky Arquitetos Associados:
Renata Gomes - Arquiteto Associado – Coordenador Projeto
Casey Mahon, Tatiana Antonelli, Lílian Braga, Luciana Magalhães, Renata H. de Paula, Cátia Portughese, Gabriela Kuntz – Equipe Projeto
Fernando Lima e Marcelo Ignatios - Arquitetos - Maquete Eletrônica
Luiz André Lanzuolo - Arquiteto – Maquete Volumétrica
Consultores
Instalações
Grau Engenharia
Estrutura
Companhia de Projetos
Luminotécnica
Franco & Fortes Lighting Design
Paisagismo
Benedito Abbud Paisagismo e Projetos
Gerenciamento
CeeMeeSee Engenharia
Fundação
Zaclis e Falconi Engenheiros Associados
Sondagem
Alphageos Tecnologia Aplicada
Reuso de águas
Eduardo Oliveira
Acústica
Fernando Iazzetta
Madeira/Recursos Florestais
IPT
Apoio Institucional
GTZ - Cooperação Técnica Alemã
Instituto Verdescola
CETESB
MASP
Ano do projeto
2006/2007
Ano de construção
2008
Localização
Rua Sumidouro 580, Pinheiros, São Paulo SP