A obra construída é, segundo a visão humanista dominante, o ápice do processo da arquitetura. De algum modo, ela repõe o postulado da naturalidade clássica: quando se atinge o grau de totalidade autossuficiente do qual nada pode ser acrescentado, nada pode ser retirado. Só assim ela pode realizar sua fenomenologia vital, expor a unidade de seus espaços, a conformidade de suas funções, a justeza de suas formas, a presteza de sua estrutura, a consistência de sua materialidade, a precisão de seus detalhes. No entanto, num processo tão complexo e extenso como a cadeia produtiva da arquitetura, a obra construída se apresenta como o final épico desse caminho extenuante e problemático. Quando as incertezas e alternativas se resolveram, quando as decisões foram tomadas. Em linha retrospectiva podemos reconstituir o processo que levou à obra, o que geralmente se lê nas memórias descritivas. Mas por vício de objetividade, memoriais sumários tendem a narrar o processo de projeto e de construção como uma linha reta, apresentando o problema e indicando a solução adotada. Todo o campo de contingências, de circunstâncias, de imprevistos é apagado; as idas e vindas entre distintas possibilidades de soluções, de formas, de partido desaparecem ante a inevitabilidade que é a realização da obra. Em suma, a riqueza complexa do processo de projeto é silenciada em favor de uma origem bem definida – a demanda programática –, e de um fim conquistado – a obra construída. O entre que é justamente o projeto fica como etapa intermediária, árdua sem dúvida, inquietante e angustiada, mas que no final se resolve. Nessa cadeia evolucionista de começo, meio e fim, justamente o projeto fica em situação secundária, como que abafado pela epifania da obra.
O debate contemporâneo justamente recoloca o projeto como o centro de gravidade da arquitetura, deslocando a ênfase da origem e do fim, para justamente enfatizar o entre, a dimensão do projeto como a instância que é exclusiva à arquitetura, àquilo que definiria a autonomia da disciplina, no sentido de que nessa dimensão todas as exigências envolvidas no processo de projeto (sejam formais, funcionais, físicas, contextuais, etc.) entrariam em “jogo".
No caso do edifício Beta da PUC-Rio, a recorrência ao processo de projeto é imprescindível para se entender o “resultado final”. Mais do que uma demanda programática da universidade, o ponto de partida seria a investigação sobre a questão da tectônica, abordada numa disciplina do curso de arquitetura da PUC-Rio, desenvolvido na época por alunos e professores que posteriormente seriam os autores do projeto. O pressuposto didático seria a redução da distância entre projeto e construção através de um raciocínio estreitasse os vínculos entre estrutura-portante, arcabouço espacial e forma visível. Assim tornado visível o componente estrutural assume função de determinação formal e a lógica de articulação a chave de compreensão/percepção do projeto/construção. E adotar peças de catálogo como material de construção significa operar com métricas predefinidas e alinhadas (em tese), o que implica de saída, a prefiguração de um módulo espacial e de seu processo de modulação.
Obviamente o protótipo desenvolvido – Alfa – se colocava como modelo teórico-didático, por isso este pavilhão não teria localização fixa, logo, poderia ser montado e desmontado em lugares distintos do campus da PUC. O partido estrutural seria mais leve, à base de estrutura tubular, cabos tensionados, articulações aparafusadas com lajes em forma de bandejas metálicas. A decisão da universidade de locá-lo num espaço específico levou a conversão deste protótipo num sistema de estrutura metálica e laje mista, apoiadas sobre fundações de concreto.
O partido do edifício Beta (IMA) é simples: pavilhão de dois pavimentos suspenso por quatro pilares. Situado entre duas edificações maciças e banais, o edifício Beta assume o partido da leveza e da transparência.
Nesse contexto, tudo leva à sua completa distinção. Apoios independentes, liberação do solo, recuos dos quatro lados, predomínio da estrutura metálica, panos de vidro e revestimentos industriais, planta aberta, circulação independente, tais são as características singulares da edificação. Apesar desta abstração, o partido adotado não deixa de fazer referência aos grandes blocos principais da universidade (Frings/Kenedy e Leme), ambos construídos segundo linhas modernistas como blocos independentes assentados sobre pilotis. Poderíamos ainda acrescentar nessa genealogia tipológica o ilustre vizinho - o “minhocão” - o sinuoso bloco residencial projetado por Affonso Eduardo Reidy, como a unidade principal do conjunto Marques de São Vicente.
Não se trata de mera coincidência, uma vez que evidenciam um paradigma conceitual comum: a Maison Dom-ino de Le Corbusier, diagrama cuja forma é ao mesmo tempo pressuposta (porque potencial) e não definida (porque aberta às mais diversas configurações).
E aí o detalhe inesperado. Dom-ino se coloca como uma solução genérica e sistemática capaz de transcender os casos particulares, logo o pressuposto básico é o da independência do volume da dependência do entorno. Então por que depois se elevar e se descolar das construções vizinhas e da encosta ao fundo, expondo a artificialidade da estrutura metálica e afirmando a autonomia de sua lógica construtiva, o edifício se portar com extrema sobriedade em relação paisagem existente?
A tênue velatura que desce sobre os panos de vidro e a tonalidade rebaixada das peças estruturais que as emolduram fazem com que a edificação se mescle com o entorno sombreado da vegetação existente.
Não é que as árvores cresceram e dominaram o edifício, muito ao contrário, é o projeto que foi concebido com, ou melhor, na vegetação. Já na implantação se nota como o bloco não segue alinhamento de nenhuma das construções existente, um leve recuo, um pequeno deslocamento de eixo, insuficientes para romper o sentido longitudinal da faixa em que se situa, sutil o bastante para se diferenciar da vizinhança. Dois fatores externos determinaram tal situação: um conhecido de antemão – as árvores locais que deveriam ser preservadas – outro que surgiu ao longo da construção – a descoberta de uma adutora que passa por debaixo do edifício. Ambos participaram como definidores da implantação.
As faces dominantes encontram-se posicionadas em sentido Noroeste-sudeste, o que significa que a fachada frontal recebe incidência poente. Diante disso, foi adicionada uma tela que abraça as faces NO e NE (as diretamente atingidas pelo sol da tarde) que serve de cortina vegetal para filtrar e consequentemente proteger da insolação excessiva. As angulações dessa “parede verde” seguiram as orientações da carta solar, bem como novamente a presença das árvores do local. Problema semelhante se deu na outra face menor (a SO), no qual a copa de uma das árvores forçou um chanfro na parte superior, formando uma angulação imprevista que contaminou a pureza do prisma. Tudo isso foi minando a evidência visual desse volume cristalino e suspenso.
A rigor, essa busca por acomodar-se às condições ambientais existentes se revela uma constante no projeto, pois para garantir a iluminação natural máxima e a ventilação cruzada adotou-se nas faces maiores janelas basculantes. Ademais, por conta dessa imersão na mata densamente arborizada, se fez necessária a introdução de um plano adicional para receber uma tela mosqueteira de modo a evitar a entrada de insetos.
Assim, nesse pavilhão transparente e permeável tem-se a sensação de viver dentro da floresta tropical, tendo o chão liberado e o terraço convertido em platô privilegiado de contemplação na cota das copas das árvores. Uma situação indiscutivelmente carioca: a do chão que continua em montanha ou mergulha no mar tendo na arquitetura o ponto intermediário de conexão.
O corte transversal do edifício expõe esta situação com clareza. E aí começamos a perceber o raciocínio que levou a alocação dos acessos na parte de “fundos”. Essa decisão faz com que tenhamos de atravessar transversalmente o discreto pilotis, divisando o início da escada e a base da encosta. Vencido o lance inicial, alcançamos o primeiro patamar, apoiado diretamente num corte no terreno, daí mudamos de direção, acessando por uma rampa o primeiro pavimento de salas, ou prosseguindo pelo segundo lance de escadas, rumo ao segundo pavimento e ao terraço. O instante decisivo nesse “passeio” é o primeiro giro, quando temos a visão da fachada cristalina, com suas divisões milimétricas, seu reticulado preciso, sua transparência evidente e então aquela fachada frontal que se mostrava arredia a se expor diretamente, agora aparece franca e segura. Aí percebemos as modulações geométricas das várias camadas de planos que formam a fachada: no mais recuado, alinhado à trama que define o perímetro estrutural com sua grade de vigas e pilares obscuros, painéis de vidro com basculantes Solara marcando o ritmo dos painéis; em seguida o plano subsequente formado pelas guias prateadas cuja divisão tripartite se distingue da marcação das lajes que conforma os dois pavimentos; estas guias são o suporte para a terceira camada – a tela mosqueteira -, quase imperceptível, mas sutil o suficiente para desfocar levemente o interior. A rigor, poderíamos acrescentar uma quarta camada, que seria propriamente a outra fachada vista pelo reverso, graças à transparência do vidro que nos permite vislumbrar a profundidade das salas de aula.
Por que essa fachada, apesar das interferências da vegetação existente se revela mais do que a oposta, supostamente mais desimpedida, dado que margeia o eixo da via de acesso principal? Ora, porque ao subir um lance da escada, nos colocamos na altura do centro de gravidade do plano da fachada, já que este se encontra elevado em relação ao solo. E como o acesso se dá por essa face, quanto mais nos encaminhamos para as salas, mais nos aproximamos dos planos que descem pela fachada, podendo distinguir as qualidades de cada pano. A verdadeira frontalidade ali se cumpre.
Nessa fachada ainda se encaixa a estrutura da escada e rampas de acesso aos pavimentos, (cujo desenho também precisou contornar as árvores) que assinala as portas de entradas constituídas por planos de telhas metálicas ondulada, a mesma que veda as fachadas laterais, bem como forra a laje que cobre o pilotis. O fato de um mesmo elemento ser a base para portas e fechamento se dá como corolário da intenção dos autores de assumir a padronização como critério geral, o que enfatiza o caráter industrial da construção. Esse mesmo critério fez com que se decidisse uma cor comum a ser adotada nas peças estruturais e vedações, um tom de chumbo, ao mesmo tempo grave e elegante.
Para concluir, falta comentar a modulação espacial dos pavimentos. A partir de um módulo-base de 3 metros, válido tanto para as peças estruturais como para as esquadrias e vedações, se realizou as divisões espaciais, conformando 2 salas de 6 e 12 metros, uma para aulas expositivas, outra para os ateliês de projeto. A divisão dos ambientes é realizada por painéis móveis, que tanto podem separar como integrar os ambientes, segundo as necessidades contingentes e seguindo os preceitos da planta livre viabilizada pela estrutura independente.
Voltando ao ponto de partida: o pensamento sobre a tectônica, no qual se busca o justo equacionamento entre técnica e arquitetura, ou em outras palavras, entre lógica construtiva e forma artística. Esse pensamento supõe uma crucial diferenciação entre os conceitos de estrutura como o sistema articulado de relações e o de construção, como os processos materiais pelos quais esse sistema ganha materialidade. Essa distinção é o que permite considerar a forma como estrutura e vice-versa, sem depender das demandas empíricas da construção. O que significa incorporar as demandas da construção no processo de projeto com máximo de previsibilidade e cálculo, exigências tornadas radicais com o desenvolvimento da indústria da construção.
Esse pretenso excesso de sistematização fez com que, no Brasil particularmente, essas aproximações entre exigências da produção industrial e a “vontade de arte” da arquitetura fossem vistas com muitas desconfianças. Por um lado, a forma se enrijecia, por outro, o sistema construtivo se simplificava. Outra consequência mal vista era que o excesso de programação tornava a obra demasiado apriorística, logo, intolerante a qualquer negociação com o entorno imediato.
O caso do edifício Beta parece ser justamente uma tentativa de demonstrar que padronização e qualidade formal podem ser tratadas com igual rigor, mas não necessariamente conformam um sistema fechado e autorreferente. Ao contrário, podem ser passíveis de flexibilização, podem negociar com as condições empíricas, assimilar em certo grau a contingência circunstancial (mesmo que ela surja sob a forma de reducionismos ou mesmo de ignorância). Nessa negociação reiterada entre o sistemático e o contingente, projeto e construção se tornam ato contínuo e convergente num processo de adaptação que tende levar ao limite seus próprios preceitos lógicos. Até quando, bem isso ninguém pode prever...
sobre o autor
João Masao Kamita é professor da PUC-Rio, atua no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, no curso de graduação em História e no curso de Arquitetura.