"Espaços incríveis [...] nos fazem sentir algo na boca do estômago. É uma sensação de espanto e satisfação".
"se tivermos sorte, os edifícios com que convivemos nos envolvem com uma combinação de estímulos e de conforto, vibração e serenidade, além de nos oferecerem suas maiores dádivas em silêncio, sem que sequer saibamos" .
As palavras do crítico de arquitetura Paul Goldberger (1) poderiam se aplicar ao Projeto Viver, o ganhador da primeira edição do Prêmio Rogelio Salmona, divulgado no dia 21 de agosto de 2014. Se à distância, as fotos e ilustrações do projeto premiado já prenunciavam algo especial, a visita ao local em uso, aberto ao entorno, cheio de crianças e adolescentes, usufruindo dos diferentes ambientes ao mesmo tempo, só confirma essa impressão. O Espaço Viver Melhor é mesmo um projeto arquitetônico incrível.
O contexto
O complexo de favelas de Paraisópolis começou com a ocupação de um loteamento pouco habitado e ganhou força na década de 1970, atraindo os trabalhadores da construção civil. O Jardim Colombo, no lado oposto da Av. Giovanni Gronchi, tem hoje aproximadamente 18 mil habitantes.
O contraste entre essas comunidades e a cidade formal dos bairros vizinhos tem sido objeto de estudos e a imagem clássica da favela ao lado do prédio com piscinas individuais em cada varanda correu o mundo. Programas de reurbanização das favelas desenvolvidos pela prefeitura são uma tentativa de melhorar as condições físicas desses ambientes, mas o reconhecimento do direito à moradia esbarra na falta de regularização fundiária; 90% das moradias são irregulares, segundo a. Ao mesmo tempo, é notável o número de ONGs formadas por moradores e funcionários de empresas do entorno. Estima-se que haja mais de 54 só em Paraisópolis.
A Associação Viver em Família para um Futuro Melhor foi criada em 2001, por funcionários do Banco Votorantim, com sede no Morumbi, para formalizar a aproximação com a comunidade do Jardim Colombo e sua União de Moradores. Em 2004, decidiu-se pela construção de um Centro Comunitário, que abrigasse as atividades desenvolvidas com as crianças. O local escolhido para o início das atividades comunitárias da ONG foi um terreno particular em meio à favela, que combinava descarte de lixo e um campinho de futebol. O projeto ficou a cargo do escritório paulista FGMF, liderado pelos arquitetos Fernando Forte, Lourenço Gimenes e Rodrigo Marcondes Ferraz (2).
O projeto
Se nas imagens e desenhos o projeto parece agradável, funcional e bonito, em uso a impressão de funcionalidade se intensifica. No dia da visita, mais de uma centena de crianças e adolescentes circulavam com desenvoltura pelas dependências, aproveitando os ambientes criados para atividades diversas: futebol, palco de teatro, salas de aula, biblioteca, cobertura jardim, refeitório, numa mistura de uso formal e informal. A questão fundamental é a criação de um espaço de uso coletivo tendo como mote a construção de uma escola.
Diariamente, o espaço é frequentado pelos 160 alunos regulares do “Projeto Viver” (de 6 a 14 anos, que fazem aula de artes, esportes, informática) e os 120 do projeto “Caminhando” (entre 15 e 18 anos) e ainda por quem mais aparecer – as portas ficam abertas até as 22h. Uma menina de uns quatro ou cinco anos vem andando pela rua sozinha e entra, rindo. A coordenadora explica que ela “é de casa”. Durante todo o tempo a biblioteca é aberta para os moradores da comunidade. À noite, adultos jogam futebol na quadrazinha, construída exatamente onde já aconteciam os jogos no terreno original. A flexibilidade do uso se manifesta a todo momento: com tempo seco, os professores preferiram levar os alunos até a cobertura; lá, adolescentes traçavam em suas “linhas do tempo” seus objetivos de vida para os próximos anos. Enquanto isso, em outro bloco, crianças menores faziam sua aula de teatro.
Funcionalidade
O aclive do terreno foi enfrentado logo na entrada, criando um possível anfiteatro externo. O prédio inteiro está no mesmo plano.
As muitas atividades acontecem simultaneamente em uma área relativamente pequena sem que uma atrapalhe a outra. A circulação acontece por fora dos prédios, através de passarelas de metal, o que economiza espaço interno. Além dos alunos, trinta funcionários dividem o espaço.
Desde a construção, alguns usos foram modificados, como a disposição das salas de aula e o aumento da cozinha para servir almoço para os alunos. A ONG oferece o complemento à escola, em horários alternados. Quem estuda de manhã, frequenta o Projeto Viver à tarde e vice-versa. Para ambas as turmas, é oferecido almoço.
Contudo, mesmo sendo bem resolvido nos aspectos funcionais, ao menos duas questões precisariam ser resolvidas: o isolamento térmico e a acessibilidade. Há um certo desconforto por causa do calor, principalmente nas salas voltadas para o oeste, como a sala onde trabalham os funcionários administrativos, que não é solucionado pelas janelas basculantes. Além disso, o prédio vai ter que ser adaptado para melhorar a acessibilidade aos andares superiores, que hoje só são alcançados por escadas, impedindo a frequência por portadores de deficiência de locomoção provisória ou permanente.
Integração com o entorno
O projeto inicial previa ausência de muros. As grades estão lá hoje, por razões de segurança, mas não atrapalham a ideia da integração com o entorno e os portões estão sempre abertos.
Lourenço Gimenes, um dos arquitetos enfatizou esse ponto em uma entrevista: “arquitetura e cidade é uma coisa só” (3). Pode-se dizer que a arquitetura do prédio contribuiu para a construção de cidade e se inseriu com rara felicidade no ambiente, abrindo-se para o entorno e participando dele.
O prédio é aberto, os vidros permitem que os moradores vislumbrem o que acontece nas salas de aula – e vice-versa. A paisagem onipresente são as casas de alvenaria, muitas em construção, janelas, gente, corredores, passagens, numa composição de alta densidade cercada pelos muros da cidade formal: os condomínios, o cemitério Getshêmani.
A escola fica aberta nos finais de semana e abriga eventos com até mil pessoas em datas especiais, como Natal, Páscoa e em campanhas como a da vacinação contra gripe. Ainda oferece as instalações para eventos da comunidade como a Festa Junina, e até casamentos.
O resultado é, definitivamente, um espaço público. Com regras de funcionamento e códigos de conduta. Mas, aberto, de usufruto público.
Recursos
O êxito da iniciativa pode ser medido pela fila de espera para inscrições, que é atendida por critérios ligados à renda e à necessidade. Os custos de funcionamento e o pagamento dos trinta funcionários são cobertos parcialmente com convênios com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social. Para fechar as contas, no segundo andar da cozinha industrial a ONG produz lanches, que são vendidos para empresas. Editais contribuem com receitas pontuais e doações completam as fontes de recursos (4).
E terminamos como começamos, com as palavras de Paul Goldberger (5):
"Estudar a construção de escolas, é, em parte, estudar a educação"
"não há nada que demonstre maior compromisso com o futuro do que a arquitetura".
notas
NA – Agradecimento a Gládis Andréia de Oliveira, gestora do Espaço Viver Melhor, pela entrevista e visita ao projeto.
NE – Esse é o terceiro de uma série de cinco artigos, publicados mensalmente, sobre os cinco projetos brasileiros selecionados para a primeira edição do Prêmio Rogelio Salmona, criado pela fundação leva o nome do arquiteto colombiano, morto em 2003, para reconhecer projetos latino-americanos que contemplam arquiteturas que geram espaços abertos /coletivos. Os projetos escolhidos do Brasil são os seguintes: Parque da Juventude, Terminal da Lapa, Praça Victor Civita, Escola Projeto Viver (vencedor geral), em São Paulo; e Terminal Digital do Ensino, em São Caetano. Além de focar seu interesse na criação, o prêmio prioriza projetos testados por pelo menos cinco anos, o que justifica o período temporal entre os anos 2000 e 2008 dos projetos selecionados. O júri do Prêmio Rogelio Salmona 2014 foi composto por Silvia Arango (Região Andina), Fernando Diez (Região Cone Sul), Ruth Verde Zein (Região Brasil), Louise Noelle Gras (Região México, América Central e Caribe) e Hiroshi Naito. Os artigos publicados são os seguintes:
CALLIARI, Mauro. O Parque da Juventude. O poder da ressignificação. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 162.03, Vitruvius, jun. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.162/5213>.
CALLIARI, Mauro. Terminal de ônibus da Lapa. Arquiteturizando a infraestrutura. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 163.03, Vitruvius, jul. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.163/5252>.
CALLIARI, Mauro. Espaço Viver Melhor – Projeto Viver. A criação de um espaço de uso coletivo a partir de uma escola. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 164.01, Vitruvius, ago. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.164/5265>.
CALLIARI, Mauro. Terminal Digital do Ensino, São Caetano do Sul. Um prédio que conversa com a cidade. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 164.01, Vitruvius, set. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.165/5303>.
CALLIARI, Mauro. Praça Victor Civita. Um espaço público de qualidade numa antiga área degradada. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 163.02, Vitruvius, out. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.166/5354>.
1
GOLDBERGER, Paul. A relevância da arquitetura. São Paulo, Bei, 2009, p. 132 e 176.
2
Informações complementares sobre o projeto podem ser encontradas no memorial disponível no website oficial do escritório: www.fgmf.com.br/fgmf.html.
3
HELM, Joanna. AD Brasil Entrevista: Forte, Gimenes & Marcondes Ferraz – FGMF Arquitetos. Arch Daily Brasil, 15 abr. 2013 <www.archdaily.com.br/br/01-108753/ad-brasil-entrevista-forte-gimenes-e-marcondes-ferraz-fgmf-arquitetos>.
4
Doações podem ser feitas pelo website http://www.projetoviver.org.br/doacoes/. No mesmo espaço virtual podem ser encontradas diversas outras informações sobre a instituição.
5
GOLDBERGER, Paul. Op. cit., p. 57 e 59.
sobre o autor
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor de organizações.