“Na fábula, o beija flor leva no bico a gota que salvará a floresta do incêndio. Sensibilizados por tamanha bravura, os demais animais se unem e vencem as chamas”
Lenda do beija-flor (1)
Tomaz Amaral Lotufo leva com desenvoltura o bastão arquitetônico familiar. Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas em 2000, ele representa a terceira geração de uma família de arquitetos: o avô Zenon Lotufo (1911-1985), formado na primeira turma de engenheiros-arquitetos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1936 (2); e o pai Vitor Amaral Lotufo (1945–), arquiteto-construtor, formado pela Faculdade de Arquitetura Mackenzie em 1967. Ainda que o legado familiar seja inevitável, Tomaz abre suas próprias picadas nos caminhos alternativos para a produção e ensino da arquitetura do século 21 (3).
Na residência que construiu para sua família, no bairro do Butantã, em 2012, Tomaz Lotufo materializa suas ideias e ideais, que aliam arquitetura e permacultura. Neste projeto, o grande desafio para o arquiteto e sua colaboradora Danuta Chmielewska, foi construir uma casa com máxima economia de meios, dentro do espírito cradle to cradle (4).
O projeto partiu de uma casa térrea com edícula no fundo e garagem com telhas de fibrocimento no recuo frontal, típica dos bairros paulistanos periféricos. Implantada num lote urbano convencional, a casa foi construída de alvenaria autoportante de tijolos e argamassa de saibro, telhado de armação de madeira e telhas cerâmicas francesas, esquadrias de madeira, caixilhos de aço e vidro, e pisos de tacos de madeira ou cerâmica vermelha – o tradicional “caquinho”.
Para adequar a casa ao novo programa de necessidades, destinado a um casal jovem com dois filhos, o partido previu a construção do pavimento superior, criteriosa reforma do térreo, desmonte da garagem e demolição da edícula. Para integrar os pequenos cômodos do térreo, paredes foram parcialmente demolidas para dar lugar a arcos de tijolos que também estruturam a laje mista do piso do pavimento superior. Área do recuo lateral foi incorporada na cozinha-sala, mediante um grande arco de abertura na parede e instalação da uma claraboia de vidro sobre a bancada de pia. A cozinha-sala é um espaço amplo e iluminado separado apenas pelo fogão-lareira, que só utiliza madeira de demolição. A cozinha-sala abre para o quintal do fundo do lote, que foi criado após a demolição da edícula. O quintal tem piso permeável, horta com verduras e ervas comestíveis, churrasqueira e forno de pizza feitos com tijolos da demolição, além do tanque-aquário com peixes que armazena a água purificada vinda do jardim-drenante.
Localizado na varanda dos dormitórios, o jardim-drenante é um engenhoso sistema de filtragem e purificação biológica da água cinza do chuveiro e lavatório, mediante um percurso que passa por caixas com plantas como papiros, taioba e lírio de brejo. A garagem original no recuo frontal, deu lugar a outro quintal com piso permeável, onde foram cultivadas bananeiras e cogumelos comestíveis, que crescem nos dormentes de madeira velha. O pavimento superior, com dois dormitórios banheiro e varanda, foi parcialmente construído com cobertura de telhado e vedos de madeira ipê reciclada de assoalho de piso. Neste pavimento, a porção central do banheiro e hall-lavandeira, possui laje de concreto e paredes de alvenaria. Para a circulação vertical, foi construída uma escada helicoidal de tijolos, autoportante e sem estrutura auxiliar – cuja técnica foi consagrada em projetos de Vitor Lotufo. A casa também conta com placas solares para sistema de aquecimento de água e cisterna.
Neste projeto, Tomaz pôs em prática os conceitos de sua pesquisa de mestrado. Esta, que no dizer do arquiteto, discute as “questões relativas à prática construtiva em comunidades no processo de ensino-aprendizagem” e cuja proposta seria contribuir “para uma necessária renovação do ensino de arquitetura no Brasil, aproximando a teoria da prática construtiva e a Universidade da Comunidade” (5). Também é possível notar tanto o legado da arquitetura alternativa de seu pai (6), sobretudo no que se refere ao domínio das técnicas e economia de meios, quanto ecos do trabalho intelectual do avô, especialmente em “O espaço psicológico da arquitetura” (7). Dessa forma, a casa de Tomaz materializa uma tese: construir, habitar, cultivar e pensar o porvir.
Segundo Martin Heidegger – que adota o método genealógico criado por Friedrich Nietzsche para analisar o significado de construir – a palavra Buan em alto-alemão é a mesmo para habitar. Em português, construir e habitar são termos independentes – construir: lat. constrŭo,is,ūxi,ūctum,ĕre 'amontoar, acumular, empilhar, levantar, construir, edificar'; e habitar: lat.habĭto,as,āvi,ātum,āre 'habitar, morar, residir'; e que também possui os significados de habitação e hábitat, promovendo a proximidade entre natureza e ambiente construído. Portanto, poderíamos entender a Casa de Tomaz Lotufo na perspectiva de “construir o habitat” que resguarda a “Quadratura” segundo Heidegger:
“Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo de quatro faces da quadratura [...]. As coisas construídas preservam a quadratura. [...] salvar a terra acolher o céu, aguardar os divinos, acompanhar os mortais, esse resguardo de quatro faces é a essência simples do habitar. As coisas construídas com autenticidade marcam a essência dando moradia a essa essência” (8).
Ao visitar a casa, foi possível entender o sentido da “Quadratura” de Heidegger, na descrição da cabana da Floresta Negra. A essência do projeto pode ser sentida ao cruzar a soleira do portão de entrada, quando temos a nítida impressão de ter ultrapassado não o limite entre o público e o privado e sim um possível não limite entre cidade e natureza. Os dormentes de madeira velha, sobre a terra batida repleta de folhas, exalam um frescor que aguça nossa percepção trazendo o cheiro da floresta. Naquela tarde, apreciamos a arquitetura alternativa de Tomaz, naquela cozinha-sala iluminada, aquecida pelo fogão-lareira caipira, onde fomos recebidos para um dedinho de prosa e comer a colheradas geleia de fruta sem agrotóxico.
Ao construir a casa, habitar a casa, cultivar a casa e pensar o porvir, o arquiteto Tomaz Lotufo, como o beija-flor da fábula, está “salvando” a Terra, preservando o cheiro da floresta na cidade do século 21.
notas
NE – publicação original do artigo: CARRANZA, Edite Galote. A casa com cheiro de floresta. 5% arquitetura+arte, São Paulo, 13 jan. 2018 <www.arquitetonica.com/revista5/aat/a-casa-com-cheiro-de-floresta>.
1
Livre adaptação lenda do Beija flor, de domínio público.
2
Zenon Lotufo foi o único engenheiro-arquiteto formado pela Escola Politécnica de São Paulo na turma de 1936, participou de projetos significativos na Cidade de São Paulo, como o Edifício Sede do IAB-SP, 1947, com Abelardo de Souza e Hélio Duarte; o Clube Atlético Paulistano, 1949, com Gregori Warchavchik e Henrique Verona Cristofani; e do Conjunto do Parque Ibirapuera, 1951 como membro da equipe de Oscar Niemeyer. Zenon Lotufo foi, também, professor universitário e sua tese O espaço psicológico da arquitetura, publicada em 1956, foi premiada pelo Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura. Textos de interesse sobre o assunto: LOTUFO, Zenon. Arte ou artifício. Tese provimento de cátedra. São Paulo, Escola Politécnica USP, 1966. LOTUFO, Zenon. Tendências da arquitetura. Revista Arquitetura Brasileira, n. 8, 1976, p. 16-17; FISCHER, Silvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2005; MANZANO, Eduardo. Documento Zenon Lotufo. Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 76, fev./mar. 1998, p. 96-102.
3
Sobre Tomaz Lotufo, ver: SESC TV. Tomaz Lotufo. Escolha um habitat/habitar <http://habitarhabitat.com.br/tomaz-lotufo>; Casa Viva. São Paulo, Blog Sem Muros – arquitetura integrada <https://www.semmuros.com/casa-viva>; MEKARI, Danilo. Arquiteto transforma seu lar em uma casa sustentável. São Paulo, Portal Aprendiz. Seção Criar na Cidade. 20 mar. 2015 <http://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/03/20/arquiteto-transforma-seu-lar-em-uma-casa-sustentavel>; Casa Sustentável – Tomaz Lotufo. Campinas, Blog Carandau – empreendimentos sustentáveis, 2013 <http://carandau.com.br/casa-sustentavel-tomaz-lotufo>.
4
O conceito Cradle to cradle (do berço ao berço) foi cunhado por Mcdonough e Braungart e refere-se a uma nova abordagem de projeto, que visa a utilização de materiais e recursos de maneira cíclica e sem desperdício. Cf. MCDONOUGH, William; BRAUNGART, Michel. Dos princípios às práticas: criando uma arquitetura sustentável para o século XXI. In. SYKES, A. Krista. O campo ampliado da arquitetura: antologia teórica 1993-2009. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 166-187.
5
LOTUFO, Tomaz Amaral. Um novo ensino para outra prática: Rural Studio e Canteiro Experimental, contribuições para o ensino de arquitetura no Brasil. Dissertação de mestrado. Orientador Nabil Bonduki. São Paulo, FAU USP, 2014
6
Cf. CARRANZA, Edite Galote Rodrigues. Arquitetura alternativa: 1956-1979. Tese de doutorado. Orientadora Monica Junqueira de Camargo. São Paulo, FAU USP, 2013; CARRANZA, Edite Galote Rodrigues; CARRANZA, Ricardo. Geometrias e estruturas de Vitor Amaral Lotufo. Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 194, 2010, p. 71-74; CARRANZA, Edite Galote R.; CARRANZA, Ricardo. Alvenaria alternativa. A obra do arquiteto Vitor Lotufo. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 126.01, Vitruvius, nov. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.126/3659>.
7
LOTUFO. Zenon. O espaço psicológico da arquitetura. São Paulo, Mercúrio, 1956. Republicação: LOTUFO, Zenon. Conquista do espaço psicológico. Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 76, 1998, p. 96-112.
8
HEIDEGGER, Martin (1951). Construir, habitar, pensar. Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback Conferência pronunciada por ocasião da "Segunda Reunião de Darmastad", publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954, p. e 9. Disponível em <www.fau.usp.br/wp-content/uploads/2016/12/heidegger_construir_habitar_pensar.pdf>.
sobre a autora
Edite Galote Carranza é mestre pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie em 2004, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo USP em 2013, diretora da G&C Arquitectônica e da revista eletrônica 5% arquitetura+arte e professora da graduação e pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu.
ficha técnica do projeto
projeto
Casa Viva
localização
Butantã, São Paulo SP Brasil
cliente
Tomaz e Danuta
ano
2012
arquiteto
Tomaz Lotufo
colaboradora
Danuta Chmielewska