A geografia como patrimônio
Partindo de uma escala maior, como podemos ver hoje em uma foto aérea do Google Maps, a mancha verde do Terreiro de Òsùmàrè na encosta da Vasco da Gama representa o que foi ao longo de séculos a lógica da ocupação do território acidentado de Salvador. Qual seja: pequenas construções nas cumeadas dos morros junto aos caminhos de acesso, ladeadas pela vegetação exuberante assentada em declive até os vales dos rios e córregos. Este modelo de ocupação foi desaparecendo nas últimas décadas, foi sendo destruído pelo processo de urbanização desenfreado e massivo. E o Terreiro de Òsùmàrè conserva esta característica original e lógica de se mediar construção com preservação da natureza. Na área urbana de Salvador, é um dos últimos remanescentes daquele que foi o modelo de ocupação adapta à topografia e aos acidentes geográficos, e tem se preservado graças às tradições dos cultos do candomblé.
O projeto arquitetônico
Nosso projeto de intervenção pode ser dividido em três grandes blocos, ou três possíveis fases de ação que correspondem aos três patamares topográficos: o núcleo histórico central onde está o barracão e suas construções circundantes; o núcleo superior, com frente para a Rua Alto da Bomba; e o núcleo inferior, com toda a mata original, ligado à Avenida Vasco da Gama.
No núcleo superior, consideramos a demolição total das atuais construções, com graves falhas estruturais e não condizentes com as mínimas necessidades de uso que se pretende implantar. Além disso, consideramos também a incorporação dos dois lotes (hoje ocupados por vizinhos com obras inacabadas) que certamente foram invadidos e subtraídos da área original do terreiro.
Um novo edifício – sacerdotal - em tons de terra ocre amarelado será erguido nesta área. No pavimento térreo projetamos uma nova cozinha de porte industrial, com câmeras frigoríficas, despensas climatizadas, depósitos de lixo e tudo que se exige do ponto de vista da vigilância sanitária para um equipamento como este, que trabalha ininterruptamente alimentando um grande número de pessoas no dia a dia e especialmente nas festas (que são muitas).
Ainda neste pavimento projetamos os banheiros e vestiários para os participantes dos cultos. Destinamos os pavimentos superiores para abrigar a lavanderia e os alojamentos (pequenos apartamentos individuais e coletivos) com boa ventilação e bons banheiros, acessíveis por elevador e escada, com capacidade de abrigar com conforto até quarenta pessoas (segundo e terceiro pavimentos). No último pavimento projetamos a residência do Babalorixá, espaço privativo de descanso e recolhimento; a administração geral do terreiro e a grande sala de reuniões. A escada deste núcleo ligará o patamar central do barracão à rua de cima. E, a exemplo da escada atual do núcleo inferior, deverá ser um marco simbólico forte.
Para o núcleo central, o projeto prevê basicamente reformas com algumas demolições e algumas pequenas novas construções. Trata-se de levar melhorias de uso e conforto aos que trabalham e passam o dia todo no terreiro e também aos que frequentam em momentos de culto e festas, grandes ou menores, em termos de público.
Neste sentido, são os pontos trabalhados em nossa proposta: ampliação do espaço de culto do barracão com uma discreta mudança no layout dos espaços adjacentes, a questão da acessibilidade universal a todos os ambientes; o atendimento a todos os frequentadores com banheiros confortáveis e em número suficiente; conforto térmico (ar condicionado ou ventilação forçada, onde necessário); rotas de fuga com caminhos seguros em momentos de grande concentração de pessoas; racionalidade e flexibilidade dos espaços internos e adjacentes ao barracão.
Uma importante demanda que deve ser destacada nesta fase e completada na fase de construção do núcleo inferior é a expansão do pátio frontal ao barracão para abrigar maior número de pessoas com segurança e conforto em dias de festas.
É importante salientar que nesta etapa os trabalhos de projeto e obra deverão ser muito delicados e cuidadosos porque estaremos tocando justamente em questões e pontos – físicos e simbólicos - que fazem do terreiro o patrimônio que é, por ser tombado e para além do seu tombamento.
O núcleo inferior foi pensado em seus muitos usos e atividades. A começar pela conexão, já citada aqui, com a expansão do pátio frontal ao barracão sobre a cobertura do bloco de uso institucional – Memorial do Terreiro de Òsùmàrè - a ser construído nos pisos inferiores, onde se encontram hoje algumas casas. Nestes três pisos inferiores teremos o auditório no pavimento térreo (atual patamar do pé de Iroko), a sala de exposições no primeiro pavimento, e as salas de apoio no segundo pavimento, logo abaixo do terraço de cobertura. Todos os pisos serão servidos por elevador, escadas interna e externa, e banheiros).
Este novo bloco – institucional e representativo – será todo revestido de argamassa pigmentada em vermelho terroso oxido de ferro para se destacar do restante das construções.
A grande e longa escada branca que penetra a mata e leva até o pátio frontal deverá ser mantida e recuperada onde necessário. É um forte elemento simbólico do terreiro. A partir dos patamares dessa escada definimos os novos futuros patamares das áreas adjacentes, como forma de facilitar os acessos aos caminhos da mata e às árvores sagradas e de culto – os sacrários vivos. Uma desses patamares deverá abrigar uma grande praça ligada à casa de Exu. Será mais um espaço para ritos, encontros e lazer.
A “Mata Escura”, como era conhecida esta região da cidade até ao início do século 20, deverá ser recuperada e adensada, recebendo caminhos em suaves rampas para passeios e contemplação da natureza e do sagrado. Estes caminhos e rampas serão construídos a partir dos futuros muros de arrimo em concreto ciclópico que deverão estancar a erosão em curso e redefinir os patamares da encosta.
Na parte mais baixa do terreno, no nível da calçada da Vasco da Gama, projetamos a Casa das Artes, que será um espaço adequado à execução dos projetos sociais e culturais que o terreiro já implementa em benefício da comunidade interna e externa, para um público de diversas faixas etárias. Equipado com o devido conforto e segurança, este centro permitirá a realização de atividades pedagógicas e oficinas de trabalhos manuais, com foco nos saberes e ofícios tradicionais do candomblé, como indumentárias, bordados, fabricação de ferramentas de culto e utensílios em madeira e metal. Para incentivar o empreendedorismo e a economia solidária, o espaço contará também com um espaço expositivo para venda dos objetos manufaturados pela comunidade.
Por fim, faremos pequenos incrementos na área da fonte para dar mais privacidade e conforto aos usuários.
Como linhas gerais, nos preocupamos com a unidade de linguagem das intervenções tentando manter a integridade e a forte personalidade das construções e espaços existentes, em consonância com as futuras construções, no sentido de que possam conviver em harmonia sem que se conflitem e nem se sobreponham umas às outras. Valorizaremos o que será preservado com as novas intervenções.
Procuramos introduzir com nossa arquitetura elementos da natureza como a pedra nos muros de arrimo; a terra em diferentes tons (ocre e vermelho óxido de ferro) no reboco dos novos blocos, em contraste com o branco do leite de cal utilizado atualmente nas casas de santos; ainda a terra batida em pisos como a futura praça de Exu; e pedriscos nos caminhos da mata. Elementos simbólicos deverão habitar os muitos nichos (rebaixos nas paredes e muros) do futuro bloco institucional (museu e auditório), a exemplo das figuras dos palácios de Abomei, no Benim. Convidaremos artistas consagrados ou anônimos a participar dessa empreitada que será agregar à arquitetura elementos simbólicos e museográficos, dando ao conjunto o caráter singular que merece.
O azul e branco que hoje trazem luz ao terreiro deverão continuar a brilhar após a implantação de nosso projeto. Projetamos novos cobogós para proteção das varandas e terraços de todo o conjunto inspirados na simbólica cobra enrolada. E, de cima abaixo, ou de baixo acima, a longa escada também representará a cobra/caminho a cruzar as terras sagradas de Ilê Òsùmàrè.
ficha técnica
projeto
Casa de Òsùmàrè
local
Salvador BA Brasil
data
Início do Projeto - 2017
programa
Institucional
áreas
Terreno: 3.935m²
Construída: 3.883m²
arquitetura
Brasil Arquitetura / Arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz (autores); Roberto Brotero (coautor); Anne Dieterich, Cícero Ferraz Cruz, Gabriel Mendonça, Julio Tarragó, Laura Ferraz, Luciana Dornellas, Pedro Renault e William Campos (colaboradores); Gabriel Carvalho, Guega Rocha Carvalho, Heloisa Oliveira e Juliana Ricci (estagiários)
maquete física
Antonia Romer