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projects ISSN 2595-4245


abstracts

português
As Casas Jaoul e a Casa Sarabhai, ambos projetos do arquiteto Le Corbusier, ilustram a mudança de rumo tardia de sua obra: olhando para o passado e de certo modo atualizando-o, obteve-se harmonia com a natureza, o clima e a tradição.

english
Jaoul House and Sarabhai House, both projects of the architect Le Corbusier, illustrate the change in the late course of his work: looking back and in a way updating it, harmony was achieved with nature, climate and tradition.

español
Las Casas Jaoul y la Casa Sarabhai, ambos proyectos del arquitecto Le Corbusier, ilustran el cambio de rumbo tardío de su obra: mirando hacia el pasado y en cierto modo actualizándolo, se obtuvo armonía con la naturaleza, el clima y la tradición.

how to quote

MAHFUZ, Edson. Le Corbusier e a atualização das abóbadas. Casas Jaoul (1951-56) e Casa Sarabhai (1952-55). Projetos, São Paulo, ano 19, n. 217.05, Vitruvius, jan. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/19.217/7248>.


A produção arquitetônica de Le Corbusier sofre uma mudança radical nos anos que seguem o final da Segunda Guerra Mundial. Para muitos, a arquitetura representada por Ronchamp, La Tourette, Casa do Brasil, Parlamento de Chandigarh, Casa Shodan, Associação da Indústria Têxtil, entre outros, foi equivalente a uma heresia. Para alguns, como o arquiteto britânico James Stirling, isso foi visto como uma verdadeira traição aos princípios mecanicistas e racionalistas que os projetos do entre-guerras representaram.

Fazem parte desse grupo duas residências cujo interesse vai além do fato de que ilustram essa mudança de rumo na obra de Le Corbusier: elas sugerem estratégias projetuais que podem ser aplicadas a outras situações. São as Casas Jaoul, construída em Paris, e a Casa Sarabhai, construída em Ahmedabad, India, ambas projetadas para duas gerações de uma mesma famíla.

As duas casas fazem parte de uma série composta pelas Casas Felix (1934-35), Peyrissac (1941-42), Fueter (1950), Jaoul (1951-56) e Sarabhai (1952-55).

A estratégia formal comum a todas é a agregação de unidades espaciais definidas por muros paralelos cobertos por abóbadas rebaixadas (1). Essas unidades constituem naves paralelas conectadas lateralmente por aberturas nos muros que as definem. As diferenças, além do tamanho e perímetro, consistem em variações na extensão e espaçamento dos limites laterais, e na altura do arranque e da curvatura das abóbadas. Também no que se refere à sua materialidade há diferenças: enquanto as abóbadas da Casa Felix são de concreto, nas Jaoul e na Sarabhai o material empregado é o tijolo. No entanto, uma característica é permanente em todas elas: a unidade espacial das células é mantida, mesmo quando são unidas para formar um espaço maior por meio da redução da área de contato entre elas.

Casas Jaoul, vista externa do edifício, Neully-sur-Seine, París, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Lucas Kirchner / Imagem Edson Mahfuz

 

Enquanto as casas do pré-guerra eram volumes prismáticos em cujo interior lages planas e pilares isentos definiam o campo de ação da planta livre, caracterizando composições subtrativas com predomínio vertical, na série de casas mencionada acima predomina a composição aditiva horizontal em que espaços tipo nave cobertos por abóbadas são o módulo base. Nessas casas as naves sempre se vinculam lateralmente para formar espaços maiores, o que permite crescimento para qualquer lado, e são sempre aparentes no exterior do conjunto, revelando ou não a curvatura das abóbadas.

Casa Sarabhai, vista externa do edifício, Shadibag, Ahmedabad, India, 1952-55. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Matheus Bragagnolo / Imagem Edson Mahfuz

 

O que vemos nessas duas casas é a recuperação de modos tradicionais de construir, tanto do ponto de vista do agrupamento como da tecnologia. Le Corbusier teria se interessado pela abóbada a la catalana quando de uma visita a uma escola construída por Gaudi em Barcelona. Sua principal característica é ser feita com tijolos comuns unidos pelos lados menores, o que deixa exposta a face maior, funcionando como uma parede divisória deitada (daí ser conhecida também por “bóveda tabicada”). A abóbada catalã funciona estruturalmente como uma lâmina curva e é fácil de construir, pois prescinde de formas e outros apoios caros. Paredes portantes constituiam a essência da arquitetura pré-moderna, mas raramente eram usadas de modo isento, sem outras paredes ortogonais que lhe outorgassem rigidez. Espaços organizados em faixas paralelas existem desde a antiguidade egípcia, sendo um exemplo notável a mesquita de Córdoba, mas nesses casos o espaço tendia a ser diáfano e os planos paralelos eram mais virtuais do que reais, sendo os vazios muito maiores que os cheios, constituídos por colunas e pilares. O que Le Corbusier parece ter feito foi reunir esses precedentes, criando uma síntese que certamente não existiria sem eles.

Casas Jaoul, corte, Neully-sur-Seine, Paris, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Lucas Kirchner / Imagem Edson Mahfuz

Casa Sarabhai, corte, Shadibag, Ahmedabad, India, 1952-55. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Matheus Bragagnolo / Imagem Edson Mahfuz

Embora compartilhando a mesma estratégia projetual genérica, as duas casas apresentam algumas diferenças importantes. Inicialmente, suas situações. A Casa Jaoul foi construída em terreno urbano, com vizinhos muito próximos e com limitações determinadas pelas normas urbanas. Já a Casa Sarabhai foi erguida no interior de um amplo terreno que era propriedade da família há muito tempo, sem qualquer limitação além da densa vegetação e do clima extremo. Uma consequência disso é o fato de que na Sarabhai as aberturas são generosas ao passo que nas Jaoul são reduzidas em benefício de maior privacidade. Também há diferenças no que se refere à configuração geral: uma é composta por dois volumes de base retangular enquanto a outra tem perímetro irregular resultante do agrupamento de blocos igualmente irregulares. O modo de fechar as naves é decisivo nesse tipo de arquitetura. Nas Jaoul a presença das abóbadas – e sua diferença de tamanho – é manifesta na platibanda curva de concreto. Já na Sarabhai elas foram ocultas por planos de concreto e desde o exterior só temos evidência dos planos paralelos de tijolos (2).

Casas Jaoul, vista aérea, Neully-sur-Seine, Paris, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Lucas Kirchner / Imagem Edson Mahfuz

Casas Sarabhai, vista aérea do edifício, Neully-sur-Seine, Paris, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Matheus Bragagnolo

Analisar essas duas casas ao mesmo tempo nos dá uma boa ideia da versatilidade do sistema desenvolvido por Le Corbusier, pois tanto pode servir a uma situação mais contida (Jaoul) como a uma de quase total liberdade (Sarabhai).

A Casa Sarabhai é um conjunto essencialmente térreo formado por dois volumes de contorno irregular conectados por uma marquise curva. O volume menor abriga os serviços e a garagem, enquanto o maior é onde estão os domínios da sra. Sarabhai e do seu filho mais velho. Esses espaços são circundados por pórticos cujo papel é mediar entre o interior e a densa vegetação circundante, proteger os interiores do sol e ajudar a circulação das brisas (estão orientados para maximizar a circulação do ar). Sobre o setor social da ala da proprietária está localizado o seu dormitório.

Casa Sarabhai, vista externa do edifício, Shadibag, Ahmedabad, India, 1952-55. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Matheus Bragagnolo / Imagem Edson Mahfuz

 

Na Casa Jaoul dois volumes praticamente iguais de planta retangular – um é a casa dos pais, o outro a do filho – dispostos perpendicularmente sobre uma base onde está a garagem, definem uma série de pequenos espaços entre si e entre cada um e os muros nas divisas. As condições de terreno e situação levaram cada volume a ter três pavimentos de altura, com o terceiro aproximadamente a metade da área do segundo. No nível acima da garagem estão as salas de estar e comer, cozinha e lavabo. Nos níveis superiores, dormitórios e uma capela para a sra. Jaoul no segundo nível da casa A (a que fica paralela à rua).

Casas Jaoul, vista externa do edifício, Neully-sur-Seine, Paris, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Lucas Kirchner / Imagem Edson Mahfuz

 

Em tempos em que os arautos da sustentabilidade se apresentam como inovadores, é interessante constatar que, já nos anos 1950, Le Corbusier empregou gramados na cobertura de ambas as casas para melhorar o isolamento térmico dos interiores, sendo consciente de que não estava inventando nada, mas reutilizando técnicas muito antigas.

Na Sarabhai todas as naves têm a mesma largura (2,96m), vigas de 65cm a partir de 2,26m e as abóbadas tem o seu ponto mais baixo a 2,90m. Na Jaoul cada volume contém apenas duas naves com 2,26m e 3,66m de largura, vigas de 65cm a partir de 2,26m e arranque da abóbada a 2,32m. As duas naves de largura diferente podem sugerir alguma especialização funcional mas na verdade a largura da nave mais larga parece resultar da soma das dimensões dos espaços principais e da faixa necessária para circulação.

Apoiar as abóbadas sobre vigas permite minimizar o papel das paredes como apoio. Desse modo tem-se muita liberdade para criar aberturas nas paredes, favorecendo a conexão entre as naves e expansão lateral dos espaços que contém. A permeabilidade espacial resultante da retirada de trechos das paredes pode ser controlada por portas de correr que vão até as vigas, o que se constata nos dois projetos.

Casas Jaoul, vista interna do edifício, Neully-sur-Seine, Paris, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Lucas Kirchner / Imagem Edson Mahfuz

Casa Sarabhai, vista externa do edifício, Shadibag, Ahmedabad, India, 1952-55. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Matheus Bragagnolo / Imagem Edson Mahfuz

A definição dos espaços principais é compatível com o modo de implantação de cada casa. Na Jaoul as salas ocupam as duas naves, ao fundo da planta retangular, configurando um quadrado ampliado pelo espaço reservado ao comedor, na nave mais larga. Na casa A, parte da sala tem pé-direito duplo. Na Sarabhai, os aposentos da dona da casa incluem três naves e mais os pórticos a elas adjacentes. Ou seja, na primeira, expansão vertical; na segunda, horizontal. Um aspecto interessante desses espaços principais é que se organizam em torno de um elemento vertical: lareira, pilar ou trecho de parede, como se necessitassem de uma âncora para fixar-se.

Casa Sarabhai, vista interna do edifício, Shadibag, Ahmedabad, India, 1952-55. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Matheus Bragagnolo / Imagem Edson Mahfuz

 

Também no tratamento das paredes interiores há algumas diferenças. Em ambas as casas paredes são rebocadas e pintadas, mas na casa indiana isso acontece apenas em alguns trechos das paredes principais, que são rebocados e pintados em cores primárias ou branco, o que serve para quebrar a monotonia das longas superfícies de tijolo e para enfatizar partes mais importantes da planta. Na casa parisiense, todas as superfícies verticais são rebocadas e pintadas – não há tijolos à vista no interior – e às cores primárias foram acrescentadas as que Le Corbusier normalmente usava nos seus quadros puristas.

Casas Jaoul, vista interna do edifício, Neully-sur-Seine, Paris, França, 1951-56. Arquiteto Le Corbusier
Modelo tridimensional Lucas Kirchner / Imagem Edson Mahfuz

 

Embora muito diferentes das casas do chamado “período branco” estas casas não devem ser vistas como contraposição àquelas. Podemos ver nelas até mesmo um conceito análogo de planta livre, antes apoiado por grelhas de pilares, aqui por planos paralelos perfurados. Isso é evidente se atentamos para a distribuição dos espaços de serviço, que na Sarabhai são em geral volumes construídos com paredes de menor dimensão (não portantes), não chegam até as abóbadas, e sua localização não é totalmente condicionada pelos planos paralelos, mostrando algo da independência de sub-sistemas presente nas casas anteriores. E, nas Jaoul, embora se situem principalmente na nave mais estreita, não haveria nenhum impedimento técnico a que estivessem em qualquer outra posição.

Quase 40 anos após ter nos brindado com o sistema formal/estrutural hoje adotado na maior parte do mundo – estrutura independente, planta livre, fachada livre, etc. – vemos Le Corbusier olhando para o passado e de certo modo atualizando-o. E oferecendo aos demais arquitetos um outro sistema de enorme flexibilidade, pois o sistema de naves paralelas permite que se varie a largura e altura das naves, o tamanho, a quantidade e o distanciamento dos trechos de parede – nas Jaoul aberturas aparecem junto ao chão, junto à viga e no meio da parede – além de poder materializar os dois primeiros tipos presentes no famoso diagrama das Quatro Composições, o da composição aditiva (Sarabhai) e o da composição subtrativa (Jaoul), segundo ele, respectivamente, “genre plutot facile” e “trés difficile” (3).

“Construindo de modo moderno se obteve harmonia com a natureza, o clima e a tradição. “ (Le Corbusier)

notas

NE — Texto originalmente publicado em Summa+, nº 153, Buenos Aires, outubro, 2016.

1
A abóbada é um elemento com longa história na obra de Le Corbusier. Além dessas cinco casas houve vários projetos que utilizavam abóbadas: Casas Monol (1922), moradias em St. Baume (1948), moradias Roq et Rob (1948) e Casa du Péon (1951). No entanto, em nenhuma delas a definição das naves é tão clara como nas discutidas aqui.

2
O que se sabe é que a sra. Sarabhai considerava que deixar as abóbadas à mostra nas fachadas daria um caráter industrial à casa e por isso pediu a Le Corbusier que as ocultasse.

3
Tradução do francês: gênero muito fácil e muito difícil.

sobre o autor

Edson da Cunha Mahfuz é arquiteto e professor de projetos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

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