A proposta de intervenção foi concebida para ser desenvolvida durante o Encontro Latinoamericano de Estudantes de Arquitetura – Elea, que reúne “famílias” de vários países, e que em 2018 aconteceria em Colônia do Sacramento, no Uruguai. Foi a partir dai que começamos a gerar o conceito, com temáticas que já habitavam nossos pensamentos e que estavam impacientes para serem transmitidas.
A ideia surgiu de inúmeras noites de conversas, da forte referência de Colônia na obra do artista Joaquín Torres García, de sua frase “nosso norte é o sul” e da imagem que todos temos tatuada no imaginário, esse esboço da América Latina invertida, onde o sul se torna a referência, o lugar para onde caminhar (“Vamos caminando hacia el sur”, diz uma música da banda argentina Los Espíritus, fonte de inspiração importante nas nossas conversas sobre o projeto).
Começamos a nos perguntar questões de identidade latino-americana, e tudo apontava para a migração que todos nós latinos compartilhamos. De histórias de migração todos nós viemos, e esse instinto que todos nós sentimos, essa necessidade de caminhar, por situações, por impulso, por compulsão ancestral.
“Como mares que quiebran las rocas
O huracanes que llevan las olas
Así de fuerte somos
Vamos caminando hacia el sur
Hasta la montaña
Vamos caminando hacia el sur
Hasta encontrar lo que olvidamos entre el oro
Huracanes, Los Espíritus
Conceito: peregrinos
O termo peregrino carrega implícita uma questão de fé, não para uma religião, mas para uma crença própria, algo que fortalece. Queremos colocar em uma outra perspectiva o conceito de migração devida a falta de oportunidade ou por necessidade, e propor o termo “peregrinação”, que implica em uma convicção (“andá com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”, como diria Gilberto Gil).
Queríamos que esse Elea fosse um detonante para este conceito que todos nós nos apropriamos, uma ideia fortalecida por eventos recentes naquele 2018 – o muro que começava a ser construído na fronteira da América Latina, no norte do México com Estados Unidos, por exemplo – e pensar em uma imagem simbólica de migrantes retornando às suas terras, caminhando em direção ao novo norte (“Nosso Norte é o Sul”).
Materialização
A oficina tinha o objetivo de gerar uma intervenção na paisagem ao esculpir migrantes ou peregrinos, criando esculturas urbanas. E na estrutura coletiva, a intervenção teria sua força, impacto visual e sensorial, assim como seu significado, podendo cada escultura ser o reflexo de um participante, ou de algum amigo, ou da memória de uma pessoa querida, ou de alguma lembrança de migração.
O processo deveria ser simples, o desafio era poder esculpir muitos corpos em poucos dias, até atingir uma multidão. E cuja materialidade lhes permitisse ser integrados ao contexto para durarem o tempo que os moradores de Colônia achassem legal.
Então escolhemos criar silhuetas abstratas armadas com vergalhões de aço, estribos e amarrações, de forma similar ao processo de construção de colunas de concreto armado, devido à facilidade construtiva e para dar essa mensagem de desconstruir significados.
Uma ideia cheia de ironia: no encontro de estudantes de arquitetura ia dar a impressão de que os participantes da oficina estavam apenas criando armaduras de vergalhões de aço simples, quadrados... e então essas peças seriam deformadas para criar não uma coluna, mas uma escultura, e cada escultura, uma representação de um corpo, uma maneira de aprender a fazer uma armadura simples de aço, e ao mesmo tempo aprender a desconstruir esse conceito da função lógica.
Reflexão crítica após terminar o memorial
Tendo em consideração o desafio de produzir muitas peças em poucos dias, a gente entende que o resultado foi ótimo, tanto na quantidade de peças produzidas, quanto na estética pretendida – uma pessoa rabiscada no ar. A intervenção precisava de ser rápida, então o método mais simples era apenas encaixar os vergalhões na terra, e felizmente – e com a ajuda do Comitê de Organização, o “Comorg” – as esculturas foram “semeadas” em um lugar maravilhoso.
Destacamos o valor adicional que o lugar destinado conferiu à nossa intervenção. O Memorial aos migrantes ficou na beira do Rio da Plata, em uma praia de grama, um lugar poético por si mesmo. Assim, as silhuetas ficavam recortadas contra o horizonte infinito.
Detalhe simbólico-poético: o fogo interior
A nossa ideia era dar a cada migrante um conceito desse fogo interior, e que de noite cada escultura virasse um farol na beira do rio. Esse fogo transmitiria a mensagem dessa ilusão, ou motivação que cada peregrino leva dentro de si quando vai andando até um objetivo. Também cumpria a função de lembrança de uma vida em combustão.
Inicialmente, o fogo seria representado por velas dentro de um copo de vidro, para que durassem mais tempo à maneira de um altar, mas as condições do lugar (um vento muito forte que soprava o tempo todo e que apagava logo o fogo das velas) nos levou a uma solução alternativa, que afinal, deu mais força ao conceito.
O fogo foi produzido por pelotas tatá – um objeto de herança guarani, sempre presente nos Elea’s – em um evento organizado pela família paraguaia, onde uma multidão chuta dezenas de bolas feitas de panos velhos pegando fogo; então, em uma espécie de ritual bélico, a multidão “guerreia” chutando bolas de fogo. Essas bolas embebidas em gasolina tornaram-se o fogo perfeito, e insuflaram nos migrantes a força do simbolismo latino-americano.
Enquanto as pelotas tatá eram penduradas e acendidas no interior de cada peregrino, a gente fez uma reflexão das nossas origens. Foi um momento muito emotivo. Pessoas chorando e todo mundo se abraçando; isto foi – pensamos – o grande sucesso do memorial. O nível de emotividade foi atingido pela força da memoria coletiva. O momento durou poucas horas, e o memorial apenas uns dias, mas nós que vivenciamos o momento sabíamos que no dia seguinte cada um voltaria para o seu país, mas que tínhamos vivenciado algo para a vida toda. Uma força coletiva que ainda tentamos não esquecer.
[em memória de Nico]
nota
NE – Este projeto foi publicado na revista Projetos do portal Vitruvius como um subproduto da primeira edição de Comuns, laboratório virtual de arquitetura experimental e participativa, organizado por Marcella Arruda e Marina Frugoli, em colaboração com André Moraes e o centro cultural Marieta, de São Paulo, Brasil. O evento se realizará entre 16 de setembro e 21 de outubro de 2020. As inscrições para o processo seletivo estarão abertas até 16 de agosto. Comuns convidou aos coletivos: Al Borde (Equador), a77 (Argentina), Mouraria 53 (Brasil); Colectivo Arrabal (México), Micrópolis (Brasil), Goma Oficina (Brasil); Terceira Margem (Brasil), Ruta4 (Colômbia), Eleazar Cuadros (Peru); Arquitectura Expandida (Colômbia), Comunal (México), e SePlan Conde (Brasil).
ficha técnica
obra
Memorial aos migrantes
autoria
Coletivo Arrabal (México) / arquitetos Carlos Martínez, Carlos Becerra, Daniel Da Rosa, Engels Ruelas, Javier Castro, Julio Gutiérrez e Ricardo Bocanegra
evento
XXVI Encontro Latinoamericano de Estudantes de Arquitetura – Elea
local
Colônia do Sacramento, Uruguai
data
De 13 a 20 de outubro de 2018