Maracaibo, a segunda maior cidade da Venezuela, situa-se no extremo ocidental, junto à fronteira com a Colômbia. O clima é semiárido, com baixa precipitação e longos períodos de seca. Em decorrência, a paisagem é rica de espécies xerofíticas, com destaque para Pereskia guamacho (atualmente Leuenbergeria guamacho), uma cactácea arbórea, com folhas, que pode atingir porte avantajado, cerca de 10 metros, com ocorrência expressiva nas paisagens locais.
Pequeno histórico
Em 1981, o escritório Burle Marx & Cia. Ltda. foi convidado a integrar uma equipe para implantação de um jardim botânico na periferia da cidade, junto ao aeroporto internacional. Ali havia sido um pequeno “pueblo petrolero”, onde a Shell fizera prospecções em busca de petróleo. A tentativa foi infrutífera, porém as sondas alcançaram um lençol d’água profundo, o que garantiu suprimento para outros usos em área com reconhecida carência hídrica em determinadas épocas do ano. A empesa doou então os terrenos, com aproximadamente 800 hectares, ao Lions Club de Maracaibo, que instituiu uma Fundação dedicada à criação do Jardín Botánico de Maracaibo.
Para a diretoria foi nomeado o botânico Leandro Aristeguieta, que havia trabalhado com Burle Marx no Parque del Este, em Caracas (1), durante a década de 1960. Para aquele parque, os dois haviam realizado excursões de coleta no interior do País, concretizando a ideia de que o elenco vegetal fosse representativo da flora autóctone da Venezuela.
O trabalho em Maracaibo
Quando fizemos a primeira visita ao local, percebemos que a implantação se dava em várias frentes. Havia um programa de necessidades definido e os envolvidos na implantação se reuniam regularmente definindo novas frentes de trabalho. Já estava em funcionamento a Escola de Horticultura que, além de formar mão-de-obra especializada, ainda aproveitava o contingente de alunos e professores nas práticas de campo, principalmente na manutenção das espécies já plantadas nas diferentes seções, como também na plantação de novos exemplares que continuamente faziam crescer a coleção científica da instituição.
Diante daquele modus operandi, tomamos duas decisões estratégicas para a condução dos diversos projetos de paisagismo. A primeira foi a de prolongarmos nossas estadas em Maracaibo, de forma a poder trabalhar mais in loco as ideias e propostas, participar das viagens de coleta de plantas para o acervo institucional (2) e conhecer aspectos locais de detalhamento, técnicas construtivas. E a segunda, estabelecer um escritório local, com facilidades para desenhar os projetos que fossem surgindo nas diversas frentes.
Para melhor compreensão, estas frentes de construção assim se distribuíam:
1) Crassuletum – área destinada a uma coleção de suculentas e subdividida em três seções, por origem: Ásia, África e Américas. Aqui se deu a primeira experiência de projetar in loco, desenhando-se o paisagismo diretamente sobre o terreno, o que será explicado mais adiante, em detalhe;
2) Lagunas – outra grande área “desenhada” in loco, com a criação de grandes espelhos d’água para acomodação de plantas oriundas de áreas mais úmidas (Amazônia, bosque úmido tropical etc.);
3) Quadro filogenético do reino vegetal – uma exposição de plantas, ordenadas de acordo com a evolução das espécies, começando pelas mais primitivas (samambaias) e desenvolvendo-se até as mais recentes (orquídeas). Esta foi uma parte desenvolvida no escritório, na forma rotineira de trabalhar um projeto. Aqui contamos com a colaboração do paisagista Luiz Alberto Gomes Cancio, que desenvolveu o desenho geral da Seção, bem como detalhou os muros e painéis do orquidário;
4) Orquidário – ponto de destaque, na saída do Quadro Filogenético, correspondendo às plantas mais evoluídas, monocotiledôneas, predominantemente, da família Orchidaceae;
5) Área recreativa – constituída por um parquinho infantil, cafeteria e áreas de estar/descanso/contemplação. Esta Seção foi também desenvolvida segundo as rotinas de projeto do Escritório, na forma convencional;
6) Áreas pontuais – como portaria, via de acesso interno e pequenos jardins em pontos focais de todas as seções do Jardín Botánico.
Um capítulo à parte, Leandro Aristeguieta
Não obstante seu reconhecimento como um dos principais cientistas venezuelanos, no Jardín Botánico de Maracaibo, Leandro Aristeguieta desempenhou um papel fundamental ao ocupar sua diretoria geral. Para mim, na ocasião com 38 anos, foi um modelo não apenas na gestão institucional, mas, principalmente, como pessoa com pleno entendimento de que uma instituição se faz com uma cadeia de participantes em que, desde o mais humilde peão de obra até o Presidente da Fundação que sustentava economicamente a ideia, todos tinham papel importante e indispensável. E Leandro tratava-os, a todos, indiscriminadamente, da mesma forma. Tinha um gosto muito grande pela informalidade, uma impaciência indisfarçada com a tramitação burocrática, mas, sobretudo, uma enorme alegria pela realização. Cada etapa que se concluía era uma comemoração e uma festa! Não essas festas de cortar fitas com as cores nacionais e discursos chamando a si os méritos, mas uma celebração com os verdadeiros agentes da realização, os operários e artífices, com quem tomava uma cerveja em algum bar das redondezas.
Raramente estava em seu gabinete de trabalho! Sua rotina era um vaivém contínuo entre tudo o que estava acontecendo: ia assistir a alguma palestra ou aula de um convidado da escola de horticultura, de lá saía a pé para verificar algum movimento de terra ou a conclusão de uma casa de propagação de mudas. Voltava contrariado para assinar alguns papéis. E saía de novo para verificar se uma determinada obra havia avançado. Havia um dito dos funcionários: “Quer se esconder do Diretor? Então refugie-se no Gabinete”!
Leandro Aristeguieta foi fator determinante no estabelecimento do processo de projeto de paisagismo que, creio, possibilitou esta grande realização profissional. E foi um exemplo muito especial em minha vida: com ele aprendi a valorizar a participação das pessoas que trabalham comigo. Em minha posterior gestão como diretor do Museu de Biologia Professor Mello Leitão pus em prática este aprendizado e procurei, como ele sabia fazer magistralmente, criar um forte sentido de equipe e o legítimo orgulho que só nos vem pela concretização de nossos sonhos.
Um processo de projeto
A área destinada ao Crassuletum, com 32.000,00m², era plana, com algumas árvores existentes, notadamente a citada cactácea, Leuenbergia guamacho. A proposta paisagística, definida por um processo de trabalho (quase) sem desenhos, mas partindo de um croquis muito simples, que reproduzo neste artigo. O trabalho foi dividido nas seguintes etapas:
1) Movimento de terra – criação de um relevo natural visando, principalmente, evitar a monotonia topográfica, aumentar a variabilidade da iluminação (criação de áreas de luz e de sombra) e evocar muitos dos ambientes, frequentemente montanhosos, que as suculentas habitam. A terra para as elevações foi importada de outras áreas do próprio Jardín Botánico, notadamente retirada da área dos lagos artificiais que se pretendia criar. A criação foi feita inteiramente no local, orientando-se diretamente o tratorista sobre a localização e posicionamento de cada elevação. Na distribuição, foram preservadas todas as árvores preexistentes, mantendo-se inalterados os níveis de seus entornos sem aterros ou desaterros.
2) Importação de pedras – também com a ideia de ambientar o habitat da futura coleção, os blocos graníticos vieram de fora, trazidos por grandes carretas. Foi dada instrução expressa de que as pedras variassem em tamanho e forma, o que facilitaria sua disposição ou arranjo nos lugares definitivos. Também aqui, a orientação foi para cada bloco, indicado individualmente ao tratorista.
3) Traçado dos caminhos – Nessa etapa está a parte mais original de todo o processo. Por sugestão do Diretor, Leandro Aristeguieta, os caminhos foram marcados diretamente no solo, com o auxílio de mangueiras de rega na definição das formas. Essas mangueiras eram então substituídas por cal, definindo-se assim as bordas dos caminhos (as futuras muretas em concreto), a serem construídas posteriormente. Aqui devo comentar com mais detalhe: a maior dificuldade do processo foi não ter uma visão do conjunto, para poder examinar se as formas propostas apresentavam unidade em sua composição geométrica geral. O que resolveu foi um helicóptero cedido pela aeronáutica para um voo de observação, ao qual devemos as fotos que ilustram esse texto. São imagens de 1982, feitas com filme convencional (Ektachrome) que, ao longo de quase quatro décadas, sofreram um desbotamento natural.
5) Povoamento vegetal – Após a concretagem das muretas e o preenchimento dos caminhos com pedra britada, teve início o plantio, com algumas espécies enviveiradas na escola de horticultura. E realizou-se uma primeira excursão de coleta na localidade de Coro, no vizinho Estado Falcón, onde há forte ocorrência de plantas xerofíticas e suculentas.
Em linhas gerais, este foi o processo de projeto que, posteriormente, prolongou-se por outras seções do Jardín Botánico. Só foi possível devido à visão de Aristeguieta, que reforçou definitivamente minhas convicções de que, muitas vezes, o excesso de planejamento pode ser um complicador para nossa capacidade de realização. É importante que se diga que tal processo nasceu espontaneamente, de algumas reuniões e mesmo conversas informais nos jantares ou deslocamentos entre hotel e obra. A visão prática do Diretor foi fundamental. Ele sempre estimulou qualquer processo que pudesse por em prática as ideias, pois sentia permanente necessidade de realização, que foi se traduzindo nessas áreas executadas. Foi sua a ideia de substituir gramados, de execução e manutenção muito dispendiosa, pelas plantas de forração naturais da área, aparadas mecanicamente. Para tanto, foi feita uma experiência, limpando-se uma área com perto de 2.000,00m² de tocos e pedras, para permitir o acesso do micro-trator. Depois de duas ou três destas operações de corte, verificamos que, na escala da paisagem, o aspecto era quase o de um gramado inglês! E a solução foi adotada para o total da área.
Animado com o sucesso de implantação do Crassuletum, ele pediu aos paisagistas que desenhassem os grandes lagos in loco, em escala 1:1. Meu lápis foi um trator de rodas com um garfo para cavar sulcos agrícolas (linhas de sementes). Para tanto, tive que fazer um rápido curso de condução de tratores! Nós marcávamos, em linhas gerais, os espaços, e eu saía sulcando o terreno com retas e arcos concordantes, num desenho sinuoso do que seria a borda do futuro lago. Nesses momentos, era decidido que árvores teriam que ser removidas, quais as que permaneceriam. Destas eu desviava com curvas suaves, imaginando como isso seria feito na prancheta, com régua e compasso! Em alguns locais com maior densidade arbórea, reservamos futuras ilhas para que a remoção de árvores não fosse tão impactante.
Uma vez delimitadas as áreas, escavadeiras rebaixaram minimamente os níveis. A ideia era de uma profundidade média de 40 cm, pois isso facilitaria a reposição da água perdida por evaporação. Na simplicidade da experiência, aquela enorme área rebaixada em apenas 40cm começou a ser inundada pelo sangramento de uma canalização preexistente. O primeiro dia foi decepcionante: toda a água foi absorvida pelo terreno, não ficando uma gota sequer na superfície. Nesse momento, confesso que desacreditei do resultado. Mas Leandro decidiu continuar desviando a água para o enorme rebaixo, na esperança que, depois de alguns dias – dois ou três, no seu dizer – a água começasse a se acumular na superfície. E foi o que aconteceu. Na manhã do quarto dia, ao chegarmos à obra, uma poça começara a se formar! Foi quase uma festa! Estava funcionando! Como se dispunha de água do subsolo em abundância, em pouco tempo, e com um custo muito baixo, os terrenos ficaram saturados e foram formados os lagos, por uma simples configuração topográfica. Sem impermeabilização, sem muretas de contenção, sem qualquer espécie de limite construído!
Há muito tempo desejava deixar meu testemunho deste processo de trabalho. Foi, para a época, uma realização maiúscula, feita com entusiasmo e dedicação. Durante o desenvolvimento do trabalho, comuniquei a Burle Marx minha decisão de sair de seu escritório. Ele e Haruyoshi Ono me pediram para seguir “pelo menos com o trabalho de Maracaibo”, o que aceitei de imediato!
Lembro-me que, em uma entrevista, a jornalista perguntou a Burle Marx: “Qual o seu trabalho mais importante?” E ele, sem pestanejar, generalizou: “O último!”. O Jardín Botánico de Maracaibo foi meu último trabalho naquela sociedade. E, entre todos dos quais participei, foi o mais importante!
notas
1
O Parque del Este é um dos trabalhos mais importantes de Roberto Burle Marx. Só não foi declarado Patrimônio Mundial pela Unesco devido a insistência de Hugo Chaves em lhe alterar o projeto original colocando, em um dos lagos, uma réplica do navio Oleander, que participou da luta pela independência da Venezuela. Sob o lago, tentou ainda implantar um museu subterrâneo com 4.000,00m², desfigurando irremediavelmente o projeto original.
2
Embora não incluídas em nosso escopo, a equipe do Jardín Botánico realizava frequentes excursões de coleta nos ambientes naturais do oeste venezuelano, em busca de espécies para as coleções. Nessas viagens iam botânicos, auxiliares de campo e, muitas vezes, os alunos da Escola de horticultura. Eram ricas experiências em ambientes para nós pouco conhecidos. Nós não estávamos vendo nascer um jardim botânico. Estávamos fazendo-o nascer!
sobre o autor
José Tabacow é arquiteto (UFRJ, 1968), especialista em Ecologia e Recursos Naturais (UFES, 1991) e doutor em Geografia (UFRJ, 2002). Foi professor de paisagismo de graduação e pós-graduação em diversos cursos de arquitetura e urbanismo, atualmente é sócio-diretor de José Tabacow Arquitetura da Paisagem e Consultoria Ambiental. Foi consultor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.