Para a prática do projeto e obra em um espaço público, conhecer o local é determinante para a concepção e atendimento das exigências que se propõe no projeto de arquitetura. Lina Bo Bardi (1), em Cidadela da Liberdade, conta de suas inúmeras visitas à fábrica onde foi construído o Sesc Pompéia, em dias diferentes para conhecer as “alegres cenas populares” (2) e, então, conceber o projeto tal como conhecemos hoje.
E, para conhecer bem, é necessário tempo para tal, ou seja, aprender a história do lugar, a cultura local, o envolvimento da comunidade, os valores afetivos, os porquês das perguntas que nos vêm à cabeça entre outras memórias tanto coletivas, quanto individuais.
Assim, durante idas e vindas, fomos compreendendo o lugar do Parque Municipal Raul Seixas e suas características. Neste tempo, foi possível ter conhecimento suficiente para projetar o que, de fato, fosse atender àquela população e seus anseios, respeitando sua história.
Com isso, foi possível uma grande transformação física do espaço, incorporando os saberes do nosso tempo e preservando saberes do passado cristalizados naquele ambiente. Ao longo das obras, foi possível perceber a dimensão dessa transformação, e nos deu a oportunidade de identificar vestígios de elementos do passado, heranças que estavam ali, sob nossos pés.
Sabemos que em áreas com grande relevância histórica, cultural e ambiental, lançando um olhar cauteloso sobre o lugar, há grandes chances de aparecerem surpresas agradáveis. A maior delas encontrada aqui se deu de maneira espontânea, quando em uma visita percebemos um elemento no meio do bosque, feito de tora de eucalipto com pinturas geométricas e uma peça metálica no topo. Foi assim que encontramos a antiga ludo-escultura da Elvira de Almeida (3).
Pouco sobrou da obra de Elvira de Almeida, com o passar do tempo muito se perdeu, restando apenas a peça vertical muito característica de algumas de suas obras espalhadas pela cidade, além disso, não havia identificação na escultura desde 1990, ano de conclusão da ludo-escultura.
Entendemos que o processo de transformação, neste caso, de um espaço público não se reduz apenas à mudanças físicas, portanto, continuamos em paralelo com uma singela pesquisa sobre a ludo-escultura. Foi, então, que encontramos nos arquivos do Depave-1 (4), o memorando n. 402/Depave/89, de 27 de dezembro de 1989, que tratava da interação entre a Secretaria Municipal da Cultura e a arquiteta Elvira de Almeida, a fim de executar brinquedos lúdicos, no Parque Municipal Raul Seixas.
No referido memorando está escrito. “Interagir com a Srª Heloisa Gregori, da SMC, a fim de haver contratação de brinquedos Lúdicos coordenados com o projeto da referida Secretaria para o Parque Raul Seixas”.
Além de outros documentos, encontramos uma foto da ludo-escultura com a seguinte legenda: “vista da casa da administração e ludo-escultura de Elvira de Almeida”. Nesta foto, é possível observar a ludo-escultura no primeiro plano e seus elementos metálicos, retorcidos, com formas assimétricas, troncos de árvores colocados no chão sobre bases de concreto, o elemento vertical de tora de eucalipto, os desenhos geométricos e a peça metálica formando uma figura lúdica. Ao fundo, vemos o bosque de eucaliptos e a casa da administração do Parque.
Em consulta ao livro de Elvira de Almeida, Arte Lúdica, foi possível verificar em algumas páginas, croquis, fotos da construção inclusive com a presença de Samuel (5), seu companheiro, fotos da finalização e textos de Elvira relacionados à metodologia construtiva da ludo-escultura para o Parque Raul Seixas e suas intenções na reutilização de materiais recicláveis do galpão da Prefeitura, bem como todo o repertório e conceito desenvolvidos pela artista.
Com estes documentos pudemos compreender a carga histórica que continha o vestígio da ludo-escultura encontrada. Assim, buscamos uma forma de reincorporá-la ao parque depois de tanto tempo.
Lina falava da “Arquitetura Pobre” (6), de dar importância às coisas mais simples, assim, decidimos identificar o remanescente da ludo-escultura a fim de resgatar e manter viva esta memória, sem alterar ou intervir em sua obra de maneira que pudesse descaracterizá-la.
Após quase três décadas da instalação da escultura, entendemos que os conceitos, princípios, e heranças do passado que encontramos deveriam permanecer no parque, adequadamente identificada e acessível às pessoas. Para nós, significa dizer que esta escultura, executada no passado, tem hoje uma nova função e seu futuro dependerá da relação popular e seu significado.
Debruçados na pesquisa, para nossa surpresa, Elvira de Almeida não atuou apenas no Parque Raul Seixas, em seu livro, constatamos fotografias e textos de outras esculturas lúdicas localizadas no Parque Municipal Chico Mendes, no Itaim Paulista, e também de instalações de brinquedos no Parque do Ibirapuera, que na época contava com a presençada árvore da FAU.
Após tanto tempo, restam poucos vestígios de suas esculturas, mas ainda guardam memórias de um tempo onde o lúdico, a imaginação, a fantasia e a criatividade eram a essência teórica dos projetos de Elvira de Almeida para as crianças e adultos.
notas
1
Lina Bo Bardi (1914-1992) arquiteta ítalo-brasileira. Algumas de suas grandes obras são: o Sesc Pompéia, Masp, Casa de Vidro, Teatro Oficina, entre muitas outras obras de grande expressão no modernismo brasileiro.
2
Expressão usada por Lina Bo Bardi ao descrever suas visitas durantes os finais de semana na área da fábrica que seria transformada no futuro Sesc Pompéia.
3
Elvira de Almeida iniciou a carreira como escultora e designer, trabalhou em conjunto com a Prefeitura de São Paulo, e lecionou também na USP até 1993. Em 1989 incorporou em seu trabalho a proposta de sucata ambiental para transformar em arte lúdica, nesta fase do trabalho de Elvira de Almeida, o Depave realizou algumas obras em conjunto com a artista, algumas dessas obras foram executadas nos Parques: Raul Seixas, Chico Mendes e Ibirapuera.
4
As informações referentes à Elvira de Almeida foram encontradas em arquivos físicos e cadernos produzidos pelo Departamento de Parques e Áreas Verdes – Depave-1 da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente – SVMA. Neste caderno havia uma foto com a escultura e a partir desta foto, foi possível resgatar a história da ludo-escultura. Ressaltamos que a SVMA foi reestruturada pelo Decreto Nº 58.625, de 08 de fevereiro de 2019 e o Depave-1 passa a ser chamado de Divisão de Implantação, Projetos e Obras – Dipo.
5
Samuel é o companheiro de Elvira e realizou junto com a arquiteta, a ludo-escultura do Parque Raul Seixas, além de muitras outras esculturas e brinquedos lúdicos. Seu livro, Arte Lúdica também é dedicado à Samuel.
6
Como descrito por Lina em Cidadela da Liberdade, a “Arquitetura Pobre, isto é, não no sentido de indigência, mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e Dignidade máximas através dos menores e humildes meios”.