Há, nos dias de hoje, um grande interesse em que a arquitetura seja um fator do desenho urbanístico ou simplesmente da constituição urbana. Isto resulta das experiências das últimas décadas advindas do movimento moderno, das ideias propagadas pelos livros de arquitetos pós-modernos (1) e, por fim, de alguns nomes da arquitetura contemporânea, que, de um modo, ou de outro, passaram a procurar pelas boas soluções espaciais e, também, por alguns usos urbanos associados a formas mirabolantes, não importando muito por quais meios o fizessem.
Este artigo pretende examinar algumas obras que demonstrem uma capacidade da arquitetura em produzir relações espaciais e usos urbanos, o que significa multiplicidade na ocupação e certa consonância com seus arredores, não de caráter excludente. A despeito de classificar ou apontar por uma corrente de pensamento ou por um viés estilístico, juízo de valor ou valor estético, estamos buscando por edifícios que construam uma relação indissociável com o seu entorno urbano. Ou seja, projetos que demonstrem uma capacidade ativadora do espectro urbanístico, também, do ponto de vista da aparência e do aspecto dos edifícios e conjuntos de edilícios, independentemente dos sistemas construtivos ou materiais, dos mais recentes aos mais antigos; que façam do tempo e das diferenças que este impõe um fator que produza algum interesse, uma continuidade feita também de descontinuidades, por assim dizer.
A seleção dessas obras se deu, justamente, pela capacidade urbana que demonstraram de atrair para dentro de suas conformações, o olhar do pesquisador, mas fundamentalmente, os transeuntes e passantes: usuários que dinamizam as preconizações programáticas. Um recorte que permita atentar para algumas qualidades de uso e ocupação, capazes de fazer, por assim dizer, a calçada adentrar para dentro do edifício. Nesse sentido, os três edifícios escolhidos para esta análise na cidade de São Paulo, são: o Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista; a Praça das Artes e o Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo. Consideramos que estes projetos podem configurar espacialidades bastante características, que constroem algumas experiências de espaço, capazes de exemplificar o que chamamos de uma arquitetura urbana: aberturas, interstícios, passagens e panoramas para viver e ver a cidade. Estes são alguns argumentos de análise que esboçamos para a compreensão da concepção projetual e composição espacial dos edifícios em questão.
Aberturas: Instituto Moreira Salles
O prédio do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista, projeto premiado da firma Andrade Morettin, é um exemplo excelente para o tema que estamos tratando. A esse respeito os arquitetos não foram nem um pouco ambíguos: museus são importantes na cidade contemporânea não só para o público das artes, “mas sobretudo por trazer interesse e vitalidade aos espaços urbanos”. Com essa compreensão, interessava-lhes, então, “definir que tipo de relação se pretendia estabelecer entre o novo edifício e a cidade” ou, por outra, entre os espaços definidos pelo complexo programa e o espaço pluralista e vivo de uma das principais vias da cidade. Com base neste contraste, criaram um “gradiente que vai do mais aberto e permeável até o mais restrito e controlado” (2).
No mais aberto e permeável está o térreo, como uma ampliação das calçadas da avenida Paulista, com os arranques das escadas rolantes, elevadores e o setor de carga e descarga dos acervos artísticos, exposto ao público, o que configura movimentos semelhantes aos que se dão no Metro, que corre abaixo no subsolo urbano. Sua implantação, no nível da rua, pode ser lida como uma abertura por entre a concentração de prédios ao redor. Nos andares 2, 3 e 4 há o volume circunscrito da Midiateca, cuja finalidade é a música, o cinema, a literatura e a criação cultural no nível mais geral. No andar logo acima está o que se pode chamar de “primeiro piso”, 15 metros, porém, acima da calçada, no qual evitou-se uma condição claustrofóbica e conquistou-se a vista para a cidade através de duas grandes aberturas longitudinais na face frontal e nos fundos; uma pela continuidade com a rua e a outra como belvedere por entre a muralha de prédios. Articulação de espaços necessários ao museu como uma plataforma que se abre para a cidade, com café, restaurante e uma loja, além de espaço de convívio, bem ao modo da própria avenida Paulista, principalmente, se levarmos em conta alguns de seus ícones: o Conjunto Nacional (3) e o Masp – Museu de Arte de São Paulo. Acima deste piso, conformam-se outros invólucros introspectivos, espaços de exposições e, por fim, no topo do edifício, a administração.
Os arquitetos mostram em seu site uma foto da maquete do prédio segura com a mão (4). Nessa apresentação, não há a característica pele de vidro impresso que circunda o edifício, mas apenas, os volumes e invólucros interiores, dotados de circulação. Imagem que escancara os mecanismos de funcionamento do prédio de maneira diagramática. Assim, a pele de vidro impresso, de alguma maneira, tende a ser um dispositivo dúbio, pois, ao mesmo tempo em que configura o velamento do museu – como um objeto prismático na paisagem de sucessivos arranha-céus –, também promove o seu desvelamento, pelo efeito translucido que propicia ao borrar os limites de todo o conjunto.
Interstícios e Passagens: Praça das Artes
Podemos dizer que este projeto do ano de 2012, do escritório Brasil Arquitetura, nasceu de dois interesses distintos, construir as dependências das velhas escolas de dança e música do Teatro Municipal de São Paulo, entidades criadas nos anos de 1940 e mal alojadas sob o Viaduto do Chá, bem como outros apêndices do mesmo teatro, além de criar uma passagem urbana entre a rua Conselheiro Crispiniano e a rua Formosa, hoje completamente integrada ao Vale do Anhangabaú, próxima à esquina da avenida São João e ao famoso arranha-céu da ABI de Lucian Korngold. Esta passagem, de dimensões urbanísticas, teria a finalidade de organizar aquela quadra tão caótica, quando tangenciaria o vale reorganizado, além de prover rampas de acesso aos estacionamentos nos subsolos.
Assim, o projeto arquitetônico das escolas teve que ser precedido por uma ação urbana que abriu espaços na quadra histórica do centro de São Paulo, além de incorporar a edificação, do Conservatório Dramático Musical de São Paulo. Desse modo, a intervenção foi ocupando os interstícios da quadra, criou volumes e emoldurou as passagens, perpendicular e paralela à avenida São João. Esta última, configurou um boulevard de dimensões monumentais que vai desde a rua Conselheiro Crispiniano, até o Anhangabaú. A passagem perpendicular, lateral ao prédio restaurado do Conservatório Dramático Musical de São Paulo, apesar de menor, também tem uma escala que pode ser considerada urbanística.
A execução desse conjunto entrecortado por entre os fragmentos de cidade impôs desafios à engenharia, com a construção de complexos muros de arrimo. Ainda assim, a edificação, propriamente, é um volume plástico que se expande, se contrai e se contorce para ocupar os interstícios de velhos prédios demolidos e abrigar o programa, ao constituir volumes dos dois lados do boulevard, inclusive torres mais altas voltadas para a antiga rua Formosa. Sob este aspecto é a edificação que dá forma ao lugar urbano deste boulevard, recortando o vazio correspondente, sem utilizar-se dele para ocupar as funções do conjunto edilício. Os volumes tem uma curiosa continuidade, dada pelo concreto armado colorido em amarelo e vermelho. As janelas padronizadas se espalham sobre a superfície sem denotar as divisões dos andares, criam o aspecto de manchas na pele de um animal, algo que contribui para o aspecto de criatura elástica (5). Aqui, arquitetura e cidade se confundem em uma unidade, a qual plasma objeto e entorno, de uma maneira funcional e bem-humorada, onde a expressão urbana é o que lhe dá forma e sentido.
Panoramas: Sesc 24 de Maio
Projetado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o prédio de 2017 recicla o edifício da velha loja de departamentos Mesbla, na esquina de duas ruas estreitas do Centro de São Paulo, a saber, a rua 24 de Maio e a rua Dom José de Barros. Trata-se de um centro comercial antiquado e decadente, de um tipo que já há muito não exerce a centralidade, a qual se espalhou por vários centros melhor localizados. A intervenção do Sesc é das poucas forças capazes de recuperar-lhe certa vitalidade.
A reciclagem da velha estrutura conservou o vão central em forma de “U”, mas impôs uma solução muito complexa, sendo que o velho e o reciclado tornam-se difíceis de distinguir à mera inspeção visual. Este novo prédio tem andares superiores que foram acrescentados, os quais contam com o suporte de quatro colunas internas. A posição de esquina levou os arquitetos a criarem, no térreo, ao nível da rua, uma pequena “praça” no centro da planta, no velho U da antiga loja, separada das ruas por stands de serviços administrativos à população interessada. Logo ao lado, baterias de rampas de acesso percorrem toda altura do prédio, como que ruas internas, perpendiculares à rua Dom José de Barros.
Nesse caso, o recado é simples, a administração é o portão de acesso e as rampas, as vias de penetração. Quase no centro, contudo, fica uma construção similar a uma casa de máquinas ou caixa d’água, algo que denuncia ceticismo para com o discurso que relaciona o edifício à cidade. Desse ponto de vista, nesses pavimentos, uma aposta para essa relação pode ser a atratividade do programa do Sesc e sua emblemática função social para com os empregados do comércio e a população em geral. Apoiados nesta receita de sucesso de público, os arquitetos desenvolveram um conceito de urbanidade que pode ser lido de uma maneira diversa: trata-se de um prédio de dimensão considerável implantado em ruas estreitas, em meio a um conjunto edilício comercial antiquado e decadente; porém, a neutralidade envidraçada do edifício, coroado por um lugar incomum nesse miolo urbano, faz dele mais um dispositivo para fazer-ver do que um objeto a ser visto.
Os últimos pisos, o jardim da piscina e a piscina, operam, assim, o sentido de urbanidade, através das diferentes amplitudes visuais que possibilitam para com o horizonte paulistano. A piscina, de 25 m x25 m, ocupa o centro de um plano aberto em todo o perímetro, em diálogo, por assim dizer, com o skyline da cidade. Mais abaixo, o jardim da piscina, está completamente sob a laje do solário, não tendo, pois, aberturas verticais, exceto a abertura sob o chafariz da piscina, bem ao centro. Toda a luz vem da periferia que é aberta e separada do peitoril por um grande espelho d’água. É onde está instalada a lanchonete e muitos bancos e assentos para ócio, sob um intenso contraste de luz e total abertura para as visuais mais próximas dos prédios vizinhos. Nestas duas distintas disposições espaciais, se descortinam os panoramas da metrópole, desta arquitetura urbana.
notas
1
Nos referimos aqui às celebres publicações de Aldo Rossi e Robert Venturi, dentre outros. Cf. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1997; VENTURI, Robert; BROWN, Denise Scott; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
2
ANDRADE, Vinicius; MORETTIN, Marcelo. IMS São Paulo. Andrade Morettin Arquitetos. 2017 <http://www.andrademorettin.com.br/projetos/ims/>.
3
O Conjunto Nacional, projeto do arquiteto David Libeskind foi inaugurado em 1958, em uma das esquinas mais famosas de São Paulo: avenida Paulista com rua Augusta. Possui no seu térreo um grande espaço semi-público aberto para a cidade, dotado de usos comerciais e de convivência. De outro modo, o famoso vão do Museu de Arte de São Paulo – Masp, projeto de Lina Bo Bardi de 1968, também se configura como um grande espaço semi-público, abrigando diversos usos, desde feiras a eventos, descortinando, a partir do belvedere, a paisagem de concreto da cidade ao fundo.
4
Aproximações possíveis podem ser aludidas nos relatos de Sigfried Gideon quando este se refere à arquitetura como escultura, ou mesmo, nas formas de apresentação propriamente ditas, nos projetos do OMA – Office for Metropolitam Architecture, de Rem Koolhaas. Cf. KOOLHAS, Rem; MAU, Bruce; SINGLER, Jennifer. S., M., L., XL. Nova York, Monacelli Press, 1995.
5
De uma outra maneira, podemos considerar que alguns espaços deste conjunto recriam as antigas passarelas presentes nas quadras cobertas do Sesc Pompéia de Lina Bo Bardi. De algum modo, também, o modo compositivo das aberturas desse projeto, podem ter relação com as criadas pela arquiteta italiana.