Frente aos violentos embates entre poder público e a comunidade Jardim Nova Esperança na tentativa de remoção de 460 famílias assentadas no Banhado, o Grupo de Práticas de Pesquisa, Ensino e Extensão em Urbanismo – PExURB do Instituto de Arquitetura e Urbanismo – IAU UP coordenou a elaboração de um plano de urbanização e regularização fundiária como estudo sobre a viabilidade de permanência segura e com qualidade dessas pessoas em conformidade com os interesses sociais e ambientais. São elementos centrais, no plano, a valorização da água, o uso intensivo de infraestruturas verdes e as diferentes escalas da inserção do trabalho na sociedade.
Uma das principais características do plano é a articulação interdisciplinar entre as áreas de arquitetura e urbanismo, engenharia civil e ambiental, planejamento urbano e regional e direito urbanístico com intensa participação popular. As soluções, em síntese, garantem uma infraestrutura ramificada orientada pelo zoneamento ambiental e pelos instrumentos legais de regularização fundiária que ordenam uma rede de serviços e atividades produtivas.
De forma exploratória, o plano adotou a infraestrutura como a unidade urbana do planejamento consolidando um sistema de ações e foi construído a partir de dois processos inovadores: o uso de novas tecnologias (como o RAP, aeronaves remotamente pilotadas, ou drones) que serviram à emancipação da comunidade pela autonomia de, com poucos recursos, obter dados mínimos necessários para tomadas de decisão (como levantamentos planialtimétricos, etc.); e a experimentação de novos métodos de planejamento integrado avançando aos modelos tradicionais do comprehensive planning.
Geografia do Banhado
A área do Banhado é uma bacia sedimentar originária das formações geomorfológicas de Tremembé e São José dos Campos, integrante do sistema de várzeas do Rio Paraíba do Sul e caracterizada como um anfiteatro meândrico único em todo o Brasil. Constitui-se numa planície aluvial banhada, no passado, pelas cheias do Rio Paraíba do Sul e separada do centro da cidade por uma falésia de até 30m de altura. É uma extensa área verde localizada no centro de São José dos Campos SP e sua particularidade geomorfológica e topográfica proporciona uma vista privilegiada para a Serra da Mantiqueira, condições que fazem dela permanente objeto de valorização e especulação imobiliária. Esse interesse tem motivado ações públicas de remoção das 460 famílias que ocupam essa área há cerca de cem anos, a comunidade Jardim Nova Esperança, e que possui traços rurais em pleno centro de São José dos Campos SP, inclusive com produção hortifrutigranjeira que alimenta o mercado da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e do Litoral Norte.
Escalas do Plano
O plano atuou em quatro escalas:
Escala regional: a permanência do Jardim Nova Esperança foi proposta como uma faixa de amortecimento do adensamento populacional entre o centro de São José dos Campos SP e a área de interesse ambiental do vale do rio Paraíba. Ou seja, como um limite rurbano que terá a função de zelar pelos interesses ambientais.
Escala metropolitana: a permanência da produção rural hortifrutigranjeira na comunidade foi incentivada afim de que ela colabore no abastecimento da rede de alimentos de São José dos Campos e das cidades do entorno contribuindo para a segurança alimentar.
Escala municipal: o Banhado foi incorporado como parte do corredor-verde que se constitui junto dos bairros-jardins centrais (Jardim Nova América, Jardim Nova Europa, Vila Santa Rita e Jardim Esplanada I e II), do Parque Vicentina Aranha e do Parque da Cidade compondo um sistema de áreas verdes que colabora no equilíbrio climático, da fauna e da flora urbana.
Escala de bairro: a permanência da comunidade no centro busca evitar o aumento dos deslocamentos diários da população e otimizar o uso dos recursos e serviços municipais existentes. A quase totalidade dos moradores trabalha a até 2 km da comunidade (30 minutos no trajeto feito a pé) e usa os serviços das áreas centrais.
Solução urbanística
Formar uma rede de serviços por infraestruturas-tronco que: A) limitem e ordenem o adensamento construtivo e populacional pelo parcelamento; B) colabore na recuperação do ciclo hidrológico a partir da implantação de infraestrutura verde; e C) integre a comunidade ao centro da cidade por meio de espaços públicos (praças-feiras).
Infraestrutura-tronco
No desenho urbano, foi adotado o modelo de rede ramificada seguindo a lógica atual das quadras, dos lotes e da implantação das edificações. O sistema infraestrutural baseado no conduto tronco (ramificada), ao contrário da malha composta por anéis articulados (malhada), proporciona atendimento às áreas atualmente ocupadas e inibe novas ocupações. Toda a rede infraestrutural de mobilidade e saneamento foi orientada por esse desenho articulando serviços, equipamentos e espaços públicos.
Parcelamento
A comunidade encontra-se dividida, funcionalmente e morfologicamente em duas porções, uma destinada à moradia e dividida em quadras, outra dividida em glebas destinadas a chácaras. Assim, a quadra e a gleba foram as unidades urbanas adotadas para o parcelamento, tendo em vista o histórico da comunidade e sua adequação à proposta de regularização fundiária. As quadras e glebas foram delimitadas pela infraestrutura-tronco e são sempre atendidas pelos seus respectivos serviços.
Habitação
As remoções foram adotadas para casos irreversíveis de melhorias e o reassentamento foi garantido nas quadras próximas ao local original das casas removidas. Para os casos em que a permanência da moradia é viável, mas apresenta precariedade construtiva, sugerimos a aplicação de melhorias habitacionais por meio de programas de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social – Athis. Para a análise da precariedade convencional, recomenda-se considerar a seguinte hierarquia de prioridade:
Ciclo Hidrológico e Infraestrutura Verde
A água tem papel central na definição das soluções urbanísticas. O Plano partiu da função básica de recuperar o ciclo hidrológico da área para alimentar o rio Parnaíba, restituir as funções ambientais do Banhado, garantir recursos para a produção rural e valorizar os aspectos históricos e simbólicos das bicas e dos canais de drenagem existentes há quase um século e que estão por todo o Banhado. Esses canais ensinam sobre os percursos das águas e permanecem no imaginário e na formação do ambiente urbano da comunidade, portanto foram mantidos e integrados ao saneamento e ao viário por infraestruturas verdes.
Saneamento
Para a drenagem, a proposta garante a máxima permeabilidade possível da água ao longo do seu percurso por canais superficiais e redes perfuradas para que não se gere um problema de inundação à jusante e evitar acúmulo de água parada. Para o esgotamento, diante das características rurais; de casas unifamiliares com grandes quintais; e baixa densidade, adotou-se, primordialmente soluções individuais de tratamento local por fossa séptica biodigestora (modelo Embrapa) e tanques de evapotranspiração – TEvap. Considerou-se também a rede tradicional, contudo mais restrita devido ao nível do lençol freático e à necessidade de uso de pressurizadores para afastamento do esgoto até estação de tratamento do município. Para o abastecimento de água potável, adotou-se a rede local e a manutenção das bicas existentes.
Mobilidade
Diante das particularidades da área, foram adotados três padrões viários que estão articulados com os canais superficiais de drenagem, espelhos d´água e pavimentação drenante:
Vias de Pedestres: exclusiva para pedestres e veículos não motorizados devido à largura do viário pré-existente
Via Compartilhada: para pedestres e veículos, sem distinção entre o leito carroçável e a calçada
Via Integradora: para pedestres e veículos, com distinção entre o leito carroçável e a calçada.
Embora algumas áreas não sejam acessíveis por veículos, nenhum ponto da comunidade está a mais de 150 metros de uma via de automóveis, garantindo acesso de serviços essenciais de bombeiro, saúde, coleta de resíduos sólidos e manutenção das redes de saneamento.
Praça-feira
As praças-feiras são áreas livres para o lazer e comercialização dos produtos cultivados no próprio Banhado e funcionam como incentivo à produção e à comercialização direta do morador do Banhado. Estão inseridas nas faixas transitórias entre a Comunidade e o centro, têm acesso universal e se integram a equipamentos de serviços comunitários e públicos. O espaço público é, portanto o instrumento de integração entre o centro municipal e a comunidade; entre o urbano e o rural.
Zoneamento Ambiental
O zoneamento ambiental considerou o Banhado como dois sistemas interligados: a área atualmente ocupada pelo Jardim Nova Esperança; e o restante do território conectado à APA do Banhado. E entende que as pressões exercidas sobre a área (comunidade e Banhado) decorrem de fatores amplos como as grandes áreas agropastoris e a própria cidade enquanto vetor de poluição difusa, efluentes, entre outros. Por outro lado, as soluções de saneamento apresentam-se como os elementos centrais na minimização dos impactos da comunidade sobre o Banhado e consideram a comunidade como estratégia para impedir novos avanços da ocupação, inclusive pelo setor formal imobiliário.
Regularização Fundiária
A regularização fundiária usou o instrumento da demarcação urbanística combinado com o da legitimação fundiária. A instauração de um procedimento de Regularização Fundiária Urbana irá permitir uma Avaliação Ambiental Estratégica – AAE, isto é, um processo estruturado e proativo com a participação democrática dos atores envolvidos fortalecendo a variável ambiental em sua transversalidade, o que viabiliza as tomadas de decisão pelo poder público.
Resultados imediatos para a Comunidade
O plano tornou-se instrumento técnico e político de negociação da permanência dos moradores frente à pressão imobiliária local e demonstra que desenvolvimento urbano e proteção ambiental podem ser partes de um mesmo objetivo. Assim, o plano subsidiou o parecer favorável da juíza na ação do processo n. 1026895-69.2018.8.26.0577 que definiu a permanência da população na área a partir dos dados técnicos do Plano. O plano também colaborou diretamente na revisão da Lei do Zoneamento (parcelamento, uso e ocupação do solo) do município na configuração da área como Zona Especial de Interesse Social – Zeis e no Zoneamento Ambiental para a várzea do rio Paraíba.
ficha técnica
projeto
Plano de Urbanização e Regularização Fundiária do Banhado
cliente
Jardim Nova Esperança
áreas
Total: 5.717.998,48 m2
Redes de infraestrutura verde: 6 mil m2
Tratamento de área de risco: 21.130,59 m2
Áreas públicas criadas: 12 mil m2
Cinturão verde urbano: 12.941.600,00 m2
ano
2018-2019
pessoas atendidas
aproximadamente 2.000 pessoas
prêmios
Prêmio Arquisur 2019, Prêmio IAB-SP 2019, Prêmio Fotografia preto e branco, da mostra Consumo e Desperdício do Centro Cultural Edusp e Neper 2019 e Prêmio de melhor artigo apresentado na forma oral no 28º Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada 2019
coordenação e execução
Jeferson Tavares e Marcel Fantin (coordenadores), Grupo Práticas de Pesquisa, Ensino e Extensão em Urbanismo – PExURB IAU USP (execução).
elaboração
Instituto de Arquitetura e Urbanismo – IAU USP, Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – FDRP USP, curso de Engenharia Ambiental – EESC USP, curso de Engenharia Civil – EESC USP, Universidade do Vale do Paraíba – Univap, Veracidade, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Associação Comunitária do Banhado, Jardim Nova Esperança e Grupo Pitá – Assessoria Técnica em Habitação Popular
recursos
Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo – CAU SP: Termo de Fomento – Processo Administrativo n. 012/2018 de 26/12/2018 (referente ao Edital de Chamamento Público 004/2018, Proposta n. 01, Lote 5, Mogi das Cruzes-São José dos Campos); Universidade de São Paulo – USP: Pró-Reitoria de Graduação – Programa USP Aprendendo na Comunidade; Universidade de São Paulo – USP: PUB USP – Programa Unificado de Bolsas da USP