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KÜHL, Beatriz Mugayar. Restauro: teoria e prática. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 009.03, Vitruvius, set. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.009/3233>.


Na área de restauração, tão pouco contemplada no ramo editorial brasileiro, às vezes nos deparamos com boas surpresas. É o caso desse livro, publicado pela Comissão de Patrimônio Cultural (CPC) da Universidade de São Paulo (USP), sobre o restauro, desenvolvido sob os auspícios da própria Comissão, do afresco de Carlos Magano, "A Marcha do Conhecimento Humano", feito em 1956 para o Centro de Pesquisas Educacionais de São Paulo, atual Faculdade de Educação da USP (FEUSP), na Cidade Universitária. O trabalho foi coordenado por Regina Tirello, também organizadora da publicação, e executado por parceria, entre a CPC e a FEUSP, através do programa teórico-prático para a capacitação de profissionais, o "Canteiro-Escola de Restauração de Pinturas Murais", da CPC. O livro relata esse empreendimento (que envolveu também outros institutos da USP e o IPT), que se iniciou no final de 1997, quando Ana Maria Pessoa de Carvalho, então diretora da FEUSP, entrou em contato com a CPC para avaliar as alternativas possíveis para a preservação do mural.

Os objetivos impostos ao livro são sóbrios: analisar trabalho basilar, difundindo o conhecimento adquirido e fornecendo elementos para que aos poucos se constitua um corpo de experiências, fundamentadas na teoria e na prática, que permitirá um debate mais amplo sobre o tema. O trabalho desenvolvido e o livro que o expõe alcançam plenamente sua finalidade: é um estudo de caso, levado a termo com método e competência, que se estabelece como uma efetiva contribuição para o campo. E não apenas para a restauração, mas também para o próprio estudo das pinturas murais, dada a enorme carência de investigações sobre os aspectos formais e de execução de nossas obras parietais.

No que se refere à sua organização, o livro compõe-se de várias partes que investigam a pintura de Magano sob diversos pontos de vista. Na parte introdutória, a organizadora apresenta ao leitor uma narrativa dos fatos relacionados à concretização da empreitada e do papel desenvolvido pela CPC através de seu Canteiro-Escola. Enfatiza a relevância de se trabalhar com grupos multidisciplinares – algo necessário e recomendado pelas cartas de restauração, mas que na prática raramente se efetiva a contento – deixando explícito, logo de saída, que o restauro não se limita a meros procedimentos técnicos, mas inclui, também (e principalmente), uma análise histórico-crítica da obra, de sua composição e aspectos formais, de sua transformação ao longo do tempo. O trabalho teve ainda a fortuna de contar com a colaboração do próprio Magano, que esclareceu aspectos da obra, de sua criação e execução, corroboradas através de exames in loco e laboratoriais. A associação dessas informações foi preciosa para a opção das técnicas de restauração empregadas. Segue-se o ensaio de Maria Cecília França Lourenço, na época coordenadora da CPC, sobre a relevância das obras públicas nas manifestações da arte moderna brasileira. O tema é explorado sob o ponto de vista do sonho, de muitos artistas do período, de empregar a arte não meramente como um estilo, mas como idéias e ideais capazes de transformar a sociedade. Mostra, assim, a importância do ato de preservação que transcende a própria obra, pois ela é também representativa de um período, testemunho da história cultural brasileira, instrumento relevante da memória. O último texto da parte introdutória, escrito pela diretora da FEUSP, Myriam Krasilchik, relaciona o painel de Magano às várias transformações por que passou a Faculdade, que esteve sempre compromissada em promover uma melhor qualidade para o ensino público brasileiro. O afresco de Magano, pela sua qualidade artística e por seu significado, esteve e continua ligado a esses objetivos, consubstanciando, através da expressão artística, ideais de Anísio Teixeira expressos no refrão "Educação para todos", como elemento transformador das relações humanas.

A parte que se segue trata da relação do afresco de Magano com três temas: a arquitetura, a pintura mural e a educação, cada um deles desenvolvido por um autor. O intuito é inserir a obra no contexto físico e intelectual para o qual foi criada. O ensaio de Helio Herbst abre essa etapa e aborda os edifícios que compõem a atual FEUSP. Analisa o projeto das edificações, feito por Alcides Rocha Miranda e José de Souza Reis em 1951, e as transformações por que passaram ao longo do tempo. Examina sua inserção na Universidade e relaciona a análise arquitetônica ao projeto educacional, concebido como meio de transformação social. O texto de Maria Cristina André Campos versa sobre a formação de Magano, o papel representativo das pinturas murais na arte moderna brasileira, as experimentações técnicas e formais feitas pelo artista, abordando ainda uma questão essencial de suas propostas: a educação pela arte. Segue-se o escrito de Márcia S. Ferreira, voltado para a discussão das propostas de reestruturação da educação de Anísio Teixeira, que assumiu o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos em 1952, e seria o idealizador do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, criado em 1956, que está na origem da FEUSP.

A parte seguinte, a mais extensa do livro, trata da restauração do afresco de Carlos Magano, que se estendeu por pouco mais de um ano. É de autoria de Regina Tirello, com exceção do último capítulo, em que são expostos os métodos auxiliares na análise da obra, no qual há também contribuições de outros autores: Angela Garcia, que examina a fotografia ultravioleta e a forma como foi empregada no estudo do mural; e Evaristo Pereira Goulart, do IPT, que trata da caracterização da argamassa e dos pigmentos. Tirello aborda os vários aspectos envolvidos no trabalho, sem ter a pretensão de esgotar o assunto, adotando a prudente postura de não fornecer fórmulas ou modelos, mas procedimentos. Os vários aspectos envolvidos nas investigações e na execução são analisados. Inicia-se pelo exame das características das pinturas murais, estudando-se em seguida o mural de Magano, seus temas, composição, estratigrafia, processo de trabalho, cores, e as várias técnicas empregadas pelo artista como recurso expressivo (e que exigiram tratamentos diferenciados). O método e o processo de trabalho são apresentados, abordando as pesquisas históricas, o registro/levantamento e o diagnóstico, com as diversas causas de degradação. Segue-se a intervenção, que envolveu operações variadas, tais como consolidação superficial, preenchimento de vazios, limpeza, e tratamento de lacunas, que respeitou o princípio fundamental da distinguibilidade, permitindo a reintegração da imagem, sem cair no mimetismo.

O volume tem ainda anexos, que tratam brevemente das fontes documentais antigas, das cores (características elementares e a paleta empregada no afresco de Magano), dos principais materiais das massas preparatórias de murais. Inclui ilustração em grande formato da obra protagonista, "A Marcha do Conhecimento Humano", acompanhada de dados sobre Magano, sua formação, exposições individuais e mostras coletivas, obras murais e premiações.

Através de todo o livro, procura-se explicitar o método de trabalho adotado, e não oferecer um formulário. Às vezes, o volume apresenta certa fragmentação, mas isso é natural em uma obra pioneira que pretende descrever um processo de estudo multifacetado, que contenta a variados interesses, sem poder se estender longamente acerca de cada um deles. Oferece valiosas informações sobre uma restauração precursora e modelar, que não dissociou a fase dos estudos histórico-documentais e análises da fase da execução propriamente dita, fato que tem incidência direta sobre a qualidade do resultado.

A narrativa do trabalho realizado permite explicitar os requisitos necessários para uma boa restauração, que deve ser fruto de uma compreensão aprofundada da obra. O trabalho se fundamenta em minuciosa pesquisa – sobre a obra a ser restaurada e sobre o edifício onde se situa, pois é uma obra de arte integrada num ambiente, e não simplesmente aposta a ele –, na leitura crítica da obra, da forma como foi composta e executada, no exame e levantamento acurado de seu estado atual, dos materiais e técnicas utilizados, e na análise das transformações da obra no decorrer do tempo, procurando evidenciar as incidências negativas e patologias. O uso do juízo crítico é, então, fundamental para determinar os procedimentos a adotar. Mostra que a restauração foi entendida nesse caso como deveria ser sempre entendida: assim como definida por Brandi em sua Teoria del Restauro, "o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dupla polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão ao futuro." Cabe parabenizar a CPC/USP pela iniciativa visando preservar a memória cultural brasileira e a coordenadora do livro e dos trabalhos executados, que expõe de forma eficiente aquilo que a restauração deve almejar enquanto procedimento, que é, na diversidade das técnicas e meios necessários, a unidade metodológica e a coerência de critérios.

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