A História da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ocupa um lugar singular nos estudos históricos brasileiros. Capital da América portuguesa desde 1763, sede da Monarquia lusitana de 1808 a 1821, Corte Imperial de 1822 a 1889 e Capital Federal, da Proclamação da República à inauguração de Brasília em 1960, a cidade se transformou no principal cenário do exercício do poder e laboratório de várias experiências civilizatórias, desde as tentativas iluministas de vice-reis como Luís de Vasconcelos e Sousa às experiências republicanas no século vinte. Contudo, já era possível detectar um processo de racionalização do espaço urbano antes mesmo da transferência da capital, notadamente nas intervenções do brigadeiro Alpoim, durante a longa gestão do Conde de Bobadela, o último a dirigir o Rio na condição de Governador da Capitania. Estes marcos da História Administrativa corresponderam a alterações no status da cidade onde se evidenciava o seu papel de centro de poder, mas também as funções de representação de uma cidade capital no Novo Mundo.
A história urbana do Rio de Janeiro foi marcada, desde o setecentismo, por iniciativas de racionalização no uso do espaço correspondentes às transformações que as cidades do Antigo Regime começavam a sofrer. É assim que o nosso Terreiro do Paço vai sendo definido sob a inspiração do seu correspondente metropolitano, um largo da Sé é projetado, o Rossio vai sendo demarcado na mesma posição do seu congênere lisboeta e os aterros se sucedem na conquista do mar e dos terrenos alagados. A cidade encontrada pela Corte, em 1808, já estava dotada de um Passeio Público, tendo ultrapassado os limites da muralha projetada após as invasões francesas do início do século dezoito. Tratava-se agora de imprimir uma feição mais européia, despindo-a dos traços que a aproximavam das cidades asiáticas. É o caso da abolição das gelosias e dos muxarabis e da imposição de práticas civilizadas, com vistas a construir um ambiente favorável para a Corte transplantada (1) . Mas estes eram apenas os primeiros passos de um projeto civilizatório que tentaria superar os limites impostos pelas condições sociais e naturais.
No século dezenove, a Cidade foi uma protagonista decisiva no processo de construção do Estado Imperial e se constituiu no alvo preferencial das idealizações e ações que tentavam atualizá-la tanto do ponto de vista funcional como estético (2) . Grande parte dos planos e discussões permaneceram no papel, mas foram constituindo um substrato, no campo das idéias, para as transformações radicais que só viriam nas primeiras décadas republicanas. Daí o interesse de estudar a cidade também do ponto de vista da sua construção imaginária, identificando as representações do espaço urbano real ou desejado. Marcel Roncayolo chama a atenção para o fato de que o essencial da cidade moderna é que, a partir do século dezessete, ela é projetada. Assim, as representações da cidade cumprem um papel fundamental, onde importa conhecer, como sugere Roncayolo, "os conceitos empregados para definir a cidade tal como deveria existir" (3) . Não é por acaso que os médicos elaboram, desde o final do século dezoito, verdadeiros diagnósticos do espaço urbano, propondo intervenções cirúrgicas na paisagem, como a derrubada de alguns morros cariocas para favorecer a aeração e a eliminação dos miasmas. Nasce daí a busca de uma credibilidade científica para embasar a transformação da cidade. Neste sentido, todo o equipamento mental de uma época é mobilizado para renovar os conceitos e modelar a ação sobre a cidade deletéria (4) que se queria transformar.
O livro de Carlos Kessel, A Vitrine e o Espelho, que passa a integrar a Coleção Memória Carioca, uma feliz iniciativa do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, ocupa um lugar singular na historiografia urbana. Escrito originalmente como dissertação de mestrado para o PPGHIS - Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o texto de Carlos Kessel apresenta uma interpretação livre de maniqueismos e que não se deixou contaminar pelo discurso condenatório às reformas urbanas, presente na maioria dos estudos das décadas de setenta e oitenta do século vinte. Sem perder a dimensão crítica, Kessel buscou compreender a complexidade dos fatores envolvidos nos planos de reformas. Para tanto, investigou a trajetória do engenheiro e professor da Escola Politécnica, Carlos Sampaio, prefeito do Distrito Federal de 1920 a 1922, inserindo-a numa densa história urbanística da cidade entre 1875 e 1930.
Kessel vai buscar Carlos Sampaio no interior da geração dos grandes engenheiros que se constituíram nos agentes fundamentais das reformas, como Vieira Souto, Paulo de Frontin e Pereira Passos. Esta geração notável esteve diretamente envolvida com o debate sobre as intervenções na Cidade, ainda no Império, e pôde participar ativamente dos empreendimentos republicanos na Capital Federal. A pesquisa realizada por Carlos Kessel encontrou uma significativa produção textual, onde a cidade imaginada precede às reformas e surge fundamentada no saber médico e suas representações (5). O fascínio diante do progresso técnico de um tempo repleto de certezas científicas também se faz presente na visão de mundo de Carlos Sampaio e seus contemporâneos. É neste sentido que o binômio saneamento e embelezamento constitui o eixo do discurso do prefeito que comanda a demolição do Morro do Castelo (6).
A estrutura do livro corresponde às escolhas do autor, com formação básica em arquitetura e urbanismo, mas que se deixou seduzir pela história política e social, tornando-se exímio pesquisador. Carlos Kessel revela excelente controle da historiografia da cidade e procura sintetizá-la, inventariando as principais questões que antecedem a ação do prefeito estudado. É assim que estabelece um diálogo entre a prática discursiva de Carlos Sampaio e a prática da intervenção urbanística. Seu estudo também nos conduz para os conflitos da política da época, para as características da administração municipal de então e para o tema atualíssimo do controle dos serviços públicos por empresas estrangeiras. Nos embates entre os poderes executivo e legislativo no âmbito municipal também aparecem questões estruturais da sociedade e do estado no Brasil, onde as heranças arcaicas e as resistências à mudança permitem identificar as contradições que dificultavam a modernização do país.
Este livro ultrapassa as generalizações da história política brasileira e procura analisar o poder local na capital da República, num tempo onde todos os olhares se voltavam para a cidade símbolo da nacionalidade e que então se preparava para abrigar a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil (7). Por outro lado, o livro nos conduz para uma dimensão ainda não explorada, a análise da carreira, do pensamento e da ação de um engenheiro como Carlos Sampaio, que deixou vários escritos em defesa das suas idéias. Através dele somos levados a identificar um imaginário burguês de fin de siécle, compartilhado pelas elites brasileiras, então voltadas para a implementação de um novo projeto civilizatório. O projeto republicano emergia marcado pelo velho desejo de ocidentalização do país e de inserção do mesmo no cenário mundial da civilização de matriz européia.
A Vitrine e o Espelho, ao estudar o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio, nos coloca diante de problemas da nossa contemporaneidade e fornece um olhar dinâmico sobre a história político-administrativa desta cidade. A percepção de Carlos Kessel é equilibrada, sem condenações fáceis e sugere a ampliação dos estudos urbanos num cruzamento necessário entre as práticas discursivas e as práticas urbanísticas. E isto se dá num quadro que valoriza as representações da cidade como objeto de pesquisa, no mesmo plano de importância dos estudos sempre necessários de história econômica e social. A noção de representação aplicada ao caso da cidade, como nos ensina Marcel Roncayolo (8), não é um puro reflexo do substrado econômico e social. A representação é ativa e não apenas "diz" a cidade, como "faz" a cidade. Há, portanto, entre as condições econômicas e sociais e a efetiva intervenção no espaço urbano, uma complexa elaboração simbólica que é necessário investigar. É exatamente esta dimensão que permite a renovação dos estudos urbanos como território multidisciplinar, onde urbanismo e arquitetura podem ser pensados como parte de uma História da Cultura, entre o material e o simbólico. Tal perspectiva nos leva a pensar que a cidade, ela mesma e não apenas a sua história, é um lugar de intervenção plural, onde a racionalidade técnica e a científica precisam estar acompanhadas da sensibilidade dos artistas, da erudição dos pesquisadores e, principalmente, do desejo dos seus cidadãos.
notas
1
Veja-se a esse respeito a dissertação de Mestrado em História, ainda inédita, de Angela Maria Cunha da Motta TELLES, Da Arquitetura Revolucionária à Civilização nos Trópicos: Grandjean de Montigny e a missão do arquiteto. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 2000, e a dissertação de Mestrado na FAU/UFRJ, já publicada, do arquiteto Gustavo ROCHA-PEIXOTO, Reflexos da Luzes na Terra do Sol. Sobre a Teoria da Arquitetura no Brasil da Independência (1808-1831). Rio de Janeiro: ProEditores, 2000.
2
MARQUES DOS SANTOS, Afonso Carlos. "A Cidade do Rio de Janeiro: de laboratório da civilização à cidade símbolo da nacionalidade" in A Visão do Outro: seminário Brasil-Argentina. Brasília: FUNAG, 2000, p. 149-174.
3
RONCAYOLO, Marcel. "Os espelhos da cidade: um debate sobre o discurso dos antigos geógrafos" in Bernard LEPETIT. Por uma Nova História Urbana. São Paulo: Edusp, 2001, p. 268-269.
4
BARLES, Sabine. La Ville Délétère. Médecins et Ingénieurs dans l’espace urbain (XVIIIe – XIXe siècle). Paris: Éditions Camp Vallon, 1999.
5
Sobre este tema há a excelente dissertação de mestrado em História, ainda inédita. CABRAL, Dilma, Da barbárie à civilização: a cidade do Rio de Janeiro no discurso da Academia Imperial de Medicina (1870-1890). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGHIS, 1995.
6
Sobre a derrubada do Morro do Castelo é recomendável a leitura da dissertação de Mestrado em História, ainda inédita, da arquiteta Maria de Fátima Duarte TAVARES, Do Castelo ao Vale da Luzes: cultura e renovação urbana. Rio de Janeiro, 1920-1922. Brasília: UNB, 1994, e a excelente contribuição iconográfica e textual de Era uma vez o Morro do Castelo, belo livro organizado por NONATO, José Antonio; SANTOS Nubia Melhem. IPHAN, 2000.
7
Sobre esta questão há a dissertação de Mestrado em História da UFRJ, publicada em livro, de MOTTA, Marly Silva da. A Nação faz Cem Anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1992.
8
Marcel RONCAYOLO, op. cit., p. 269. Para conhecer melhor o pensamento deste geógrafo e historiador francês recomendo a leitura de La ville e ses territoires. Paris: Gallimard (Folio Essais), 1990.
[o presente texto foi publicado originalmente como prefácio do livro]
sobre o autor
Afonso Carlos Marques dos Santos é professor Titular de Metodologia da História – Faculdade de História / IFCS / UFRJ