A recente publicação, pela editora Cosac & Naify, do livro Oscar Niemeyer e o Modernismo de Formas Livres no Brasil, de David Underwood, constitui uma excelente oportunidade para discutir o significado, entre nós, da obra do projetista dos palácios de Brasília.
Maior expoente de nossa arquitetura moderna e possivelmente o primeiro e único arquiteto brasileiro verdadeiramente popular, Niemeyer nem por isso deixou de ser um motivo de embaraço para os brasileiros. Iniciado já nos anos 50 com a contundente condenação feita pelo artista plástico suíço Max Bill ao “barbarismo” e à “orgia de desperdício anti-social” identificados por ele com a arquitetura de Niemeyer, tal embaraço só fez aumentar ao longo das décadas subseqüentes, tendo chegado hoje à sua situação limite: divididos entre o complacente reconhecimento da importância do arquiteto para o festejado sucesso internacional de nossa arquitetura e um mal-estar diante de uma obra para a qual, afinal de contas, não fomos capazes de desenvolver um aparato crítico minimamente satisfatório, restamos constantemente ameaçados de ser por ela devorados.
Sim, porque, na maior parte das vezes, a “crítica” que se faz hoje no Brasil à arquitetura de Oscar Niemeyer é, a rigor, bem pouco crítica, caracterizando-se pela falta de critério. Discutimos as incoerências entre suas posições políticas e a disponibilidade com que sempre atendeu às mais variadas demandas, públicas e privadas; alardeamos a pouca “funcionalidade” de sua arquitetura e o caráter excessivamente “escultórico” de seus edifícios; protestamos toda vez que, pela via da notória especialização, o arquiteto é contratado pelo poder público sem ter de se sujeitar às exigências impostas pela lei das licitações. A esse voluntarismo opinativo, no entanto, tem correspondido uma insistente inibição crítica, sobretudo uma incapacidade para interpretar o significado, ou os significados, da obra de Niemeyer no âmbito de nosso sistema cultural, a começar pelo lugar que ela ocupa no quadro de nossa produção arquitetônica, ontem e hoje.
Surpreendentemente ou não, uma das poucas exceções a essa regra veio justamente do grande campeão da arquitetura moderna brasileira, o arquiteto e urbanista Lucio Costa (1902-1998), que, já em fins da década de 40, propunha uma interpretação da obra de Niemeyer. Nas palavras de Costa, em Niemeyer “foi o nosso próprio gênio nacional que se expressou através da personalidade eleita desse artista, da mesma forma como já se expressara no século 18, em circunstâncias aliás muito semelhantes, através da personalidade de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”.
Embora bastante problemática, e em todo caso bem pouco satisfatória em termos historiográficos, a interpretação de Costa é um dos raros exemplos de abordagem verdadeiramente crítica da obra de Niemeyer. Ela é crítica porque Lucio Costa interpreta a arquitetura de Niemeyer buscando decifrar o que ele próprio chamou de “o alcance e o significado” da obra de seu colega. Nesse sentido, guardadas as especificidades devidas, sua crítica se inscreve na nossa melhor tradição ensaística, da qual fazem parte, entre outros, os estudos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.
Parece enganar-se, portanto, quem afirma que no Brasil jamais houve crítica de arquitetura. Houve sim, e das boas. Apenas ela esgotou-se simultaneamente ao período histórico a que estivera – como toda crítica que se preze deve estar – intimamente vinculada. Afirmar, portanto, que a chave crítica inaugurada por Lucio Costa esteve sempre movida por uma questão específica, própria do momento histórico em que eram produzidos seus enunciados (a saber, a elucidação das razões do inusitado sucesso de nossa arquitetura moderna e, nesse contexto, a definição de um lugar adequado para a obra de Oscar Niemeyer), implica antes qualificá-la que desqualificá-la. Pois toda crítica, ou toda crítica de qualidade, não apenas pertence a seu próprio tempo como se solidariza com o seu objeto a ponto de ser um de seus elementos constituintes mais importantes.
Nosso maior problema, nesse sentido, tem sido justamente a dificuldade de aceitar que o período histórico daquilo que se convencionou chamar de “arquitetura moderna brasileira” está, salvo prova em contrário, encerrado. Creio não haver demonstração mais evidente desse embaraço do que a maneira anacrônica com que amiúde lidamos com essa “arquitetura moderna brasileira”, uns buscando dar-lhe “continuidade”, outros esforçando-se em trazê-la de volta ao “rumo certo”. Como fenômeno histórico, no entanto, seu prazo de validade parece ter se expirado quando as questões sobre as quais ela se sustentava, ou deixaram de ser cruciais, ou perderam sua generalidade – a começar pela questão tipicamente modernista da “brasilidade”, outrora unânime e hoje em dia francamente controversa. Assim, a desorientação característica de nossa produção contemporânea – da qual fazem parte desde modernistas empedernidos (entre os quais deve incluir-se a categoria dos niemeyerianos ratés) até renitentes pós-modernos e deconstrucionistas parvenus – não deve ser vista senão como a outra face do estado atual de nossa crítica, com sua dificuldade de definir as questões verdadeiramente relevantes para nossa arquitetura hoje.
Aceitar o fim desse período histórico não significa, entretanto, que dele não possa ser retirada uma herança potencialmente produtiva para nossa arquitetura contemporânea, muito pelo contrário. Nesse sentido, se aos historiadores de hoje cumpre elucidar o que estava em jogo quando da elaboração de interpretações como a de Lucio Costa – e não buscar desmascarar suas inconsistências, como, infelizmente, tem ocorrido com alguns estudos recentes sobre a nossa arquitetura moderna –, à nossa crítica atual impõe-se, antes de mais nada, a necessidade de indicar as questões sob cuja luz nossa produção atual pode ou deve ser analisada. No caso específico de Oscar Niemeyer, que, pertencendo à primeiríssima geração da arquitetura moderna brasileira, segue todavia projetando e construindo, a situação é ainda mais urgente, e enquanto sua obra não for objeto de uma revisão crítica consistente, continuará sendo o que tem sido nos últimos anos: uma obra sem lugar.
É nesse contexto que ganha interesse a publicação de livros como o de David Underwood. É verdade, não se trata, nesse caso, de um grande livro. Repleto de clichês (“A arquitetura de Niemeyer é antes de tudo uma vigorosa celebração do tropical e do erótico, das paisagens mágicas e do sensual modo de vida do Rio de Janeiro em que nasceu”, pág. 18), o livro peca sobretudo por repetir um vício comum aos comentadores de Niemeyer: fazer das próprias justificativas de Niemeyer o fio condutor da análise.
Contudo, e não obstante a fragilidade da maioria das teses que avança, a leitura proposta por Underwood serve para demonstrar que, vista de um outro horizonte crítico e à luz de novas questões, a obra de Oscar Niemeyer pode revelar aspectos surpreendentes. Resta saber, naturalmente, se, à luz dessa nova abordagem – que entre nós apenas se inicia –, o lugar da arquitetura de Oscar Niemeyer pertencerá apenas ao passado, ou se, ao contrário, caberá também no presente. Com a palavra, a crítica.
[artigo originalmente publicado na revista "Bravo !", nº 58, ano 5, jul. 2002]
sobre o autor
Otavio Leonídio, arquiteto, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio.