O que sabemos sobre a arquitetura brasileira no pós-Brasília? Muito - e pouco. Na última década já houveram variados estudos, em parte publicados, que nos ajudaram a passar de uma quase ausência de reflexões à uma noção ainda difusa de que muito se fez desde então, e que ainda muito resta a conhecer. Mas se leitores, pesquisadores, professores e/ou arquitetos já se deram conta da importância do tema, fazia ainda muita falta dispor de algum roteiro comentado, simples mas abrangente, sem apriorismos e dispensando preconceitos, que servisse de guia pela selva escura e pouco desbravada das décadas que se seguiram aos anos 1960.
Esse roteiro agora existe: é o livro de Maria Alice Junqueira Bastos, Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira, recém publicado pela editora Perspectiva. De ora em diante, tanto as novas gerações de estudantes quanto os profissionais que há muito labutam nas lides do fazer e pensar nossa arquitetura já podem, com certa comodidade e presteza - facilitada pelo formato compacto e pela diagramação tradicional mas correta - rever criticamente os variados aspectos das obras e debates mais relevantes do panorama arquitetônico brasileiro nas últimas décadas do século passado, sem que seja preciso, ao menos numa primeira abodagem, nos embrenharmos exaustivamente no mar sem fim das fontes bibliográficas primeiras. Assim, se o livro “Pós-Brasília…” não é, nem jamais pretendeu ser, um estudo exaustivo que esgote definitivamente o assunto (o que demonstra, ainda mais, sua oportunidade e sapiência), é porém um grande alívio ver esse trabalho publicado, depois de ter acompanhado sem parte sua trajetória enquanto pesquisa acadêmica, pelo muito que ele nos será útil a todos.
A meu ver – e espero não estar esperando demais – “Pós-Brasília…” servirá de ferramenta útil para refrescar as cansadas ou ausentes memórias de estudantes e arquitetos, ajudando aqueles dentre nós que somos professores nessa inglória batalha contra o infeliz mau costume de supor um incessante aparecimento ex-nihilo do “novo”, quase sempre às expensas ocultas do saber fazer dos momentos imediatamente anteriores. E mesmo, quem sabe, ajudará a afastar, com maior presteza e eficiência, o vício muito nosso de só crer no passado glorioso ou no presente fabuloso, onde velho mais velho não se conhece mas se idolatra, e o novo mais novo é descartával mas lava mais branco - resposta pretensiosa a uma infeliz ausência, no meio arquitetônico brasileiro, de seriedade conceitual, permanência e espessura histórica.
Assim como outros livros de arquitetura que vem sendo publicados nos últimos anos, este também é resultado do esforço de mais de duas décadas de cursos de pós-graduação espalhados por todo o país, cuja experiência acumulada vem produzindo, cada vez com mais freqüência, frutos de bons a ótimos - se bem que nem sempre tão palatáveis como a dissertação de mestrado, transformada em livro, da arquiteta Maria Alice Bastos. Certo, nem tudo vai pelo melhor dos mundos possíveis, e segue havendo muito joio em meio à colheita farta de pesquisas, dissertações e teses que se faz país a fora. Mas o bom exemplo do livro “Pós-Brasília…” permite comemorar o fato de que, em havendo trabalho sistemático, pausado, sério, despretensioso - mas não sem talento -, pode-se afinal chegar a resultados excelentes. Talvez, de agora em diante, possa ser possível prescindir, quem sabe para sempre, das hipóteses mirabolantes, das pesquisas descabidas, improváveis ou inconsistentes, das leituras que mal diagnosticam e pouco contribuem para a efetiva compreensão dos temas que abordam, enfim definitivamente descartadas em favor de uma compreensão mais focada, mas não menos ampla, do que possa ser a pesquisa em arquitetura.
O livro pode ser lido, para quem gosta de arquitetura, de uma só tirada, saboreando-se o texto simples, inteligente e informativo. Como é o costume, começa com um prefácio; mas, atenção! não pule, leia-o: é curto e vale à pena. De responsabilidade do arquiteto e professor Paulo Bruna, também orientador da dissertação de mestrado que deu origem ao livro, o prefácio coloca com clareza e concisão os méritos do trabalho, fazendo resenha dos principais debates que Maria Alice Bastos vai abordar. E já que o faz, pode-se aproveitá-lo também aqui: as razões alegadas são, em primeiro lugar, a coragem por deter-se em tema polêmico (mais por falta de costume, creio eu, que por qualquer razão intrínseca); em segundo a ampla abrangência, resultado de leituras e reflexões de amplo espectro; em terceiro a valorização da polifonia, em consonância com os tempos sobre os quais se debruça, que são de pluralidade e diversidade; em quarto a recuperação da memória, que nem por estar próxima está menos esquecida. Por fim, Bruna destaca algumas das variadas questões abordadas ao longo do livro, tanto as principais como aquelas que a ele mais lhe agradam - como também faremos a seguir, e como os interessados leitores o poderão fazer também.
O livro começa no início dos anos 1960, no imediato pós Brasília; mas, se era certamente necessário retomar o fio da meada onde foi deixado, de fato o melhor do estudo parece concentrar-se no momento imediatamente seguinte, ou seja, após meados dos anos 1970, quando vai acontecer, no dizer da autora, “a retomada do debate arquitetônico brasileiro”. Quatro décadas é talvez demais; e assim, as duas primeiras (os anos 1960/70) acabam ficando, a meu ver, ainda pouco precisas, enquanto as duas seguintes (os anos 1980/90) são brilhantemente apresentadas. O que seria de se esperar, face à maneira como a autora constituiu a pesquisa, a dissertação, o livro, como tento esclarecer adiante.
O método empregado por Maria Alice Bastos para organizar o trabalho é inicialmente quantitativo, e a seguir qualitativo. Por extenso, ela primeiro organiza um amplo banco de dados (sub-produto da pesquisa que, infelizmente, não foi incorporado ao livro, ficando restrito à dissertação), levantando tudo – absolutamente tudo – o que foi publicado acerca da arquitetura brasileira no período abordado. Não apenas as obras, mas igualmente textos e comentários das mesmas e, com a mesma sistematicidade, textos críticos não atrelados a obras específicas. Com essas informações tabuladas partiu-se para a análise, classificação e interpretação, “quase científica e quase neutra”, de maneira a verificar quais de fato teriam sido as obras mais divulgadas e reconhecidas em seu momento, quais de fato foram os temas de debate vigentes mais ventilados e discutidos, quais de fato foram as teorias e críticas que alimentaram todo esse panorama – e como tudo isso combina-se e recombina-se entre si.
A partir dessa base objetiva Maria Alice Bastos organiza seu texto em quatro partes: dois períodos e duas “transições”. A Parte I vai tratar da quinzena de anos que se seguem a Brasília, assumida como marco balisador e ponto de mutação do panorama arquitetônico brasileiro em meados do século 20. Inclui-se ali breve capítulo sobre o brutalismo paulista e outros dois capítulos, também muito breves, em que se detecta e analisa o tom de exagêro (que ela chama de “distorção”, epíteto que parece-me pouco apropriado ao caso) que grassou na arquitetura brasileira daquele momento, em parte conseqüência do “milagre econômico”, em parte possivelmente resultante do progressivo esgotamento de certas pautas formais da modernidade brasileira, tanto da escola carioca como da escola paulista. A Parte II trata de uma transição, os “anos de abertura política” ou melhor, a “retomada do debate arquitetônico”. E o faz da maneira mais correta: pela análise das obras, tanto de edifícios isolados, quanto de propostas com algum grau de envolvimento no desenho urbano. Seguindo esse esquema, a Parte III acessa finalmente filão principal e mais suculento do estudo da autora, ou seja, os anos 1980/90, partindo das novas teorias que passaram a alimentar o pensamento arquitetônico nacional, a partir delas propondo recortes que servirão como pautas de análise, expostas e comentadas em contraponto com as obras com que imediatamente fazem coro. Para maior clareza didática esse panorama é organizado segundo três amplos temas: a revisão do moderno a partir da realidade e da inspiração no popular; a revisão do moderno no debate entre formalismo e figurativismo; e os caminhos modernos de ênfase na abstração e na técnica. A Parte IV trata de uma outra “transição” - menos temporal do que de caráter - ao abordar, com clareza e pertinência, os caminhos trilhados pelo pensamento crítico-teórico nacional nesse período.
Como a interpretação que a autora propõe para os fatos e debates das décadas estudadas toma por base, e é função direta, da leitura e análise que ela metodicamente faz das publicações disponíveis, o livro resulta tão certeiro, nas abordagens e conclusões, quanto o sejam, por sua vez, as fontes consultadas. Assim, explico melhor minha crítica de alguns parágrafos acima: as décadas de 1960/70, além de serem campo pouco estudado de maneira mais sistemática por autores de hoje, para complicar também viram, em seu momento, minguarem-se ao ponto do desaparecimento tanto publicações quanto textos críticos. Assim, sem contar com boas fontes de época, ou tampouco com revisões críticas atualizadas e consistentes, as parcas fontes de que autora acaba dispondo para melhor compreender o imediato pós-Brasília garantem apenas a energia suficiente para se chegar a uma névoa brumosa das primeiras hipóteses. As quais, se bem que no geral corretamente pinçadas, certamente ainda necessitaram de grandes aprofundamentos para efetivamente ganharem a precisão e pertinência que os textos de análise de Maria Alice Bastos das décadas de 1980/90. Quando será possível efetivar uma alta qualidade de resultados, uma vez que autora pode então contar com os comentários cotidianos, pertinentes e assíduos do “coro” formado pelo aumento exponencial do número de publicações periódicas de arquitetura. E não apenas seu aumento quantitativo, mas porque é nelas – e não nos meios acadêmicos – que naquele momento se concentram e atuam uma nova geração de autores. De cujos textos, corretamente, a autora faz extenso uso, citando-os minuciosamente e dando-lhes o devido valor em cada circunstância. Assim, é certamente na leitura e interpretação das décadas de 1980/90 que recai a qualidade conceitual e a força indiscutível do livro “Pós-Brasília…”.
Uma das características mais importantes e de grande interesse do livro “Pós-Brasília…” é certamente a seleção e análise de 30 obras brasileiras projetadas entre 1969 e 1990, apresentadas de forma a serem intercaladas com a leitura e análise dos debates ocorridos no mesmo período. Iniciando com o Pavilhão Oficial do Brasil na Expo’70 em Osaka, Japão (projeto de Paulo Mendes da Rocha, tendo a autora o cuidado de incluir na ficha apresentada informações sobre os colaboradores, consultores, construtores, técnicas e materiais e áreas), engloba tanto obras e autores merecidamente renomados e sempre relembrados como outros que já estão hoje, passados poucos anos, injustamente esquecidos, e que urgia revalorizar. Em ambas categorias, estão por exemplo a Rodoviária de Jaú (João Batista Vilanova Artigas, 1973-76), o Centro Cultural São Paulo (Eurico Prado Lopes, Luiz Benedito de Castro Telles, 1975-82), o Edificio Sede da Chesf, em Salvador (Francisco de Assis Reis, 1977-1982), o Núcleo Habitacional do Inoccop-Cafundá, no Rio de Janeiro (Sérgio Ferraz Magalhães, Ana Luiza Petrik Magalhães, Silvia Pozzana de Barros, Clóvis Silvestre de Barros, Rui Rocha Velloso, 1978-82), a Residência dos Padres Claretianos, em Batatais, SP (Affonso Risi Jr.José Mario Nogueira de Carvalho Jr.), o Campus da Universidade do Amazonas, em Manaus (Severiano Porto, 1973-1981), o Palácio Arquiepiscopal de Mariana (Éolo Maia, Maria Josefina de Vasconcellos, Sylvio Emrich de Podestá, 1983-88), o Centro de Cultura e Lazer do Sesc- Pompéia (Lina Bo Bardi, 1977-86) e do Sesc-Nova Iguacú (Bruno Padovano, Hector Vigliecca, 1985-92), o Edifício da Hering Nordeste em Paratibe, PE (Hans Broos, 1979-88), a Estação Fepasa do Largo 13 de Maio, São Paulo (João Walter Toscano, Odiléa Setti Toscano, Massayoshi Kamimura, 1984-86), a Sede Provisória da Prefeitura de Salvador (João Filgueiras Lima, 1986), o Memorial da América Latina (Oscar Niemeyer, 1987-89), o Museu da Escultura (Paulo Mendes da Rocha, 1986-92) e o Pavilhão Oficial do Brasil na Expo’92 em Sevilha, Espanha (Ângelo Bucci, Álvaro Puntoni, José Osvaldo A. Vilela, 1990), entre outras.
Parece peculiar que a listagem comece e termine por pavilhões oficiais do Brasil, e que ambos balizem posições contrárias no debate, mas assemelhadas na formalização: o primeiro, uma unanimidade em seu momento e desde então; o segundo, pivô de um intenso, polêmico e discordante debate. Pode ser simples coincidência, e descabida a comparação; mas nem tanto, pois há seguramente um jogo de espelhos que nada tem de evidente, sendo até, ao contrário, bastante enganoso. Em Osaka, o coro parece cantar em uníssono, mas de fato (embora isso de maneira alguma fosse óbvio então) àquele ápice em breve se seguiria a crise e dissolução da “unidade” da arquitetura moderna brasileira. Já em Sevilha, contrariando a os tempos pluralistas e abertos a todas as possibilidades, ganha mas não leva uma proposta que parecia ir contra a corrente, reafirmando em tom revivalista aquela perdida unidade; mas se naquele momento essa opção se mostrava imatura, tempos depois ela vem demonstrando uma fertilidade insuspeitada.
Neste último parágrafo a comentarista já está extrapolando seus deveres de ater-se ao livro resenhado ao buscar fazer ilações e comentários que ele não contém – mas que permite. Essa, talvez, será outra das grandes qualidades deste pequeno grande livro: que, sendo obra aberta, nos permite dela livremente apropriarmo-nos.
Um livro de referência que já nasceu clássico: de ora em diante, e por muito tempo, indispensável.
sobre o autor
Ruth Verde Zein é arquiteta, FAU-USP, 1977, mestre e doutoranda pelo PROPAR-UFRS, crítica de arquitetura com mais de uma centena de artigos e vários livros publicados no Brasil e no exterior, professora nas Universidades Mackenzie e Anhembi-Morumbi