Qualquer um que goste de vasculhar as prateleiras de periódicos das nossas bibliotecas já se deparou com dezenas de revistas de arquitetura estrangeiras, publicadas entre 1946 e 1960, com o Brasil ou brasileiros na capa. Niemeyer, Reidy, Levi, Irmãos Roberto, Costa, Mindlin, Burle Marx e tantos outros nomes eram tão presentes nas principais publicações internacionais quanto hoje o são Eisenman, Hadid, Calatrava, Koolhas e Nouvel. Uma revista Manchete do final dos anos 50 dizia que o Brasil era o país do futebol, da música e da arquitetura.
Meio século depois, ainda somos o país do futebol e da música, mas nossa arquitetura infelizmente nunca mais desfrutou da mesma inserção e do mesmo prestígio que teve nos anos 50. Dizemos ser urgente resgatar a valorização da nossa arquitetura brasileira contemporânea (para sermos mais objetivos) ou mesmo repensar o papel da arquitetura na nossa sociedade contemporânea (para sermos mais idealistas). Enquanto a tarefa maior de repensar a função social da arquitetura vai sendo adiada e a tarefa menor de reposicionar a arquitetura brasileira no cenário mundial vai acontecendo aos poucos, é imprescindível entendermos melhor e mais profundamente o que se passou nas décadas de 40 e 50.
Neste sentido, um pequeno livro publicado na Paraíba traz contribuições preciosas para o debate e merece ser extensivamente divulgado. O alvo do olhar estrangeiro – tese de doutorado de Nelci Tinem defendida na Universidad Politécnica da Cataluña – analisa nas suas duas primeiras partes a construção e a consolidação (palavras da autora) do discurso hegemônico da Arquitetura Moderna Brasileira. Passando pelos nacionais Costa, Mindlin, Ferraz e Lemos, a autora descostura o tecido tramado pelos pioneiros do nosso modernismo e vai discorrendo sobre os acontecimentos “eleitos” como dignos de valor histórico por estes autores. O termo eleição é aqui muito apropriado porque implica que alguns fatos foram eleitos e outros não, e o livro vai aos poucos revelando as tramas por trás das escolhas, e posterior transformação dos acontecimentos “eleitos” em verdades absolutas ou mesmo mitos. Cabe notar que a autora coloca Yves Bruand junto aos brasileiros na construção desta trama vista por dentro. Sobre a mesma trama vista de fora, é extensa a lista de estrangeiros cujo olhar é analisado pela autora: Zevi, Pevsner, Dorfles, Hitchcock, Benévolo, Giedion, Argan, Tafuri e Frampton. Segundo Nelci Tinem, Zevi, Pevsner e Dorfles seriam mais ecléticos, mais propensos a interpretações diversas acerca do moderno brasileiro. Hitchcock, Benévolo e Giedion já fazem parte de uma visão canônica, enquanto Argan, Tafuri e Frampton estariam reinterpretando os anteriores, de certa forma já desencantados com as promessas frustradas do Movimento Moderno. A autora não diz isto diretamente, mas fica claro que quanto mais distante do fato maior a possibilidade de distorções e preconceitos, o que seria o caso dos três últimos citados.
O fato de analisar de um só fôlego todos estes autores e suas contraditórias visões lançadas sobre a Arquitetura Moderna Brasileira já valeria a leitura do livro. Mas a autora guardou o melhor para a terceira e última parte do O alvo do olhar estrangeiro. A análise de 4 das principais revistas de arquitetura internacionais da época revela, em detalhes, os caminhos que levaram a arquitetura brasileira a obter o destaque internacional que desfrutou nos anos 50. As 4 revistas analisadas pela autora: L’Architecture d’Aujourd’hui, Architectural Review, Casabella e Architectural Forum respondem juntas por quase a metade de tudo que se publicou sobre o Brasil lá fora nos anos 40 e 50 (ver LARA, Fernando. Espelho de fora, Texto Especial Arquitextos 012). O texto de Nelci Tinem trabalha várias questões que sabíamos ser importantes mas não haviam sido tratadas antes com a devida base documental. Como por exemplo a ligação com Corbusier era enfatizada pela francesa L’Architecture d’Aujourd’hui ou como a Architectural Forum norte-americana perguntava insistentemente: “como pode um país atrasado produzir uma arquitetura tão vibrante e moderna”? A relação entre tradição e modernidade era muito presente na inglesa Architectural Review enquanto a questão do equilíbrio entre formalismo e invenção era tema da italiana Casabella. Em resumo, aos poucos O alvo do olhar estrangeiro vai nos dizendo muito mais sobre os filtros deste olhar estrangeiro do que sobre o alvo propriamente dito. Italianos preocupados com formalismo, franceses preocupados com Le Corbusier, ingleses preocupados com a tradição e norte-americanos preocupados com o fato de que com menos dinheiro e menos tecnologia se fazia uma arquitetura melhor do que a deles. O recado é claro: leiamos as revistas estrangeiras com o devido distanciamento, cientes de que elas tem seus próprios preconceitos e seus objetivos inconfessáveis. Mais uma vez o livro em questão presta um serviço ao estudo da Arquitetura Moderna Brasileira ao detalhar a polêmica entre Gropius, Max Bill e Ernesto Rogers, mostrando que mais do que criticar ou defender o modernismo brasileiro, defendiam seus próprios pontos de vista e atacavam quem quer que ousasse pensar ou fazer diferente.
O livro de Nelci Tinem traz informações preciosas e com elas desmonta vários mitos suas construções, nos deixando, um recado importante. Cuidemos nós mesmos de resgatar, preservar e celebrar nossa Arquitetura Moderna porque O olhar estrangeiro continua o mesmo: celebrando nos outros aquilo que justifica seus próprios caminhos e denegrindo, nestes mesmos outros, aquilo que os ameaça.
sobre o autor
Fernando Lara é professor do Departamento de Projetos, Escola de Arquitetura da UFMG