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Cena de Família de Adolfo Augusto Pinto. Almeida Júnior, 1891

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ATIQUE, Fernando. O esquadrinhar do habitat brasileiro. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 040.02, Vitruvius, abr. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.040/3162>.


A questão habitacional é um dos temas mais presentes na historiografia da arquitetura e do urbanismo. Livros dos mais variados enfoques têm mapeado as políticas e os espaços ligados ao que chamamos de casa. Alguns títulos bem conhecidos são Casa, pequena história de uma idéia, de Witold Rybczynski (Record, 1999); Quando o Moderno não era um estilo e sim uma causa, de Anatole Kopp (Nobel, 1986); Origens da Habitação Social no Brasil, de Nabil Bonduki (Estação Liberdade, 1998); Dos Cortiços aos Condomínios Fechados, de Luiz César de Queiroz Ribeiro (Civilização Brasileira, 1997); Cozinhas etc, de Carlos Lemos (Perspectiva, 1976); O Palacete Paulistano, de Maria Cecília Naclério Homem (Martins Fontes, 1996); Modernidade e Moradia, de Lílian Vaz (Sete Letras/ FAPERJ, 2002), entre uma dezena de outros títulos não menos importantes.

Essa produção, sobretudo a brasileira, tem vasculhado a origem de muitas iniciativas públicas ligadas ao provimento de moradias ao trabalhador urbano, demonstrando a gênese de certos transtornos ainda hoje presentes em nossas cidades. A contribuição da força patronal, sobretudo em suas atitudes iniciais no Brasil, tem sido também, tema de pesquisas criteriosas, desenvolvidas em algumas instituições nacionais. Dentre essas, sem dúvida alguma o trabalho da arquiteta e historiadora da arquitetura e do urbanismo, Telma de Barros Correia, docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos, é um dos mais consistentes e profícuos. Abordando o surgimento das formas de moradia voltadas à classe operária, muito bem definidas como Núcleos Fabris e Vilas Operárias, Telma Correia colaborou, já em seu primeiro livro, Pedra: plano e cotidiano operário no sertão, (Papirus, 1998) para um entendimento sistêmico da eclosão e da disseminação dessas atitudes ordenadoras do território, entre finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, no país. Enfocando o núcleo fabril de Pedra (1), construído, em 1914, no sertão de Alagoas, Correia conseguiu unir as reflexões típicas do profissional da arquitetura e do urbanismo, às análises sociais e históricas. O resultado foi um trabalho de qualidade, reconhecido, inclusive, em premiação da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. Entre vários méritos, um dos principais talvez tenha sido demonstrar o desenvolvimento de posturas ordenadoras da vida do trabalhador operário, fora do eixo Rio-São Paulo. Ao apontar as atitudes de Delmiro Gouveia, o empreendedor da fábrica de linhas de costura que erigiu esse núcleo no sertão de Alagoas, Telma Correia demonstrou a existência de outras iniciativas patronais no campo operário, e abriu sendas para o estudo de manifestações semelhantes em outras partes do país.

Convém ressaltar que essa capacidade de aliar a pesquisa em arquitetura e urbanismo ao campo da história advêm da formação que Correia recebeu ao longo de sua carreira. Não sendo graduada em História, ela adquiriu domínio sobre o tema cursando disciplinas durante sua tese de doutoramento, na FAUUSP, e na UNICAMP, na linha de reflexões da Profa. Maria Stella Bresciani.

Essa conciliação entre a arquitetura, campo de sua formação, e o enfoque histórico pelo qual Maria Stella Bresciani trata a cidade, permitiu com que Telma Correia desenvolvesse novas abordagens sobre a história da habitação no Brasil. O produto dessas reflexões pode ser obtido mediante a leitura de seu último livro: A Construção do Habitat Moderno no Brasil: 1870-1950. (RiMa, 2004).

Livro de forte caráter didático, A Construção do Habitat Moderno no Brasil, sistematiza uma série de artigos publicados ao longo de dez anos de pesquisa sobre o tema, em importantes reuniões da área, como ANPUR, Seminários de História da Cidade e do Urbanismo, e excertos de sua tese de doutorado, até então, inéditos. Em quatro ensaios, que apesar de poderem ser lidos autonomamente, possuem vínculos temporais entre si, a autora se aproxima da temática da habitação por vieses diversos. Recorre a atitudes já desenvolvidas por Maria Ruth Sampaio, Carlos Lemos, Nestor Goulart desde os anos de 1970, quando publicaram livros sobre a moradia precária brasileira, mas revalida a abordagem, ao se valer de outras posturas historiográficas, como a de Michel Foucault e seu microcosmo. Balizada por trechos de obras de literatos internacionais, por pesquisas correlatas da Europa e dos Estados Unidos, Telma Correia cria vínculos entre as manifestações da pobreza e do espaço habitacional que se aplicam ao Brasil também. Mostra que certos arranjos espaciais, citados como típicos da sociedade brasileira, na verdade, são, também, formas de espoliação da população da cidade pela força do capital, além de serem frutos – e muitas vezes – distorções de projetos discutidos e implementados na passagem do século XIX ao XX no país. Essa constatação, presente no primeiro capítulo, denominado Imagens de Degradações: representações da moradia do pobre e da grande cidade, é contraposta às análises de seu segundo capítulo, Projetos de Regeneração: a intervenção na habitação proletária. Nesse trecho, a autora demonstra que a Teoria do Meio Formador, em voga na Europa e também entre nós, no século XIX, levava a raciocínios em que a cidade era vista como “um meio corruptor, favorável à perversão dos costumes e à difusão de doenças” e por isso, “poderia ser transformada em meio corretor”, e, numa escala diminuta, sendo a casa o que “degrada o indivíduo”, ela deveria ser levada a se tornar um “elemento que o corrige”. Essa detecção permite com que Telma Correia identifique e analise os diversos processos concomitantes que levaram à definição da espacialidade e da política acerca da casa. Abordando um período anterior ao do livro de Marisa Carpintéro, a Construção de um Sonho: os engenheiros e arquitetos e a formulação da política habitacional no Brasil (UNICAMP, 1997), Correia ajuda a entender o debate acerca da noção de casa própria de forma mais específica, inclusive apontando certa origem desse procedimento de assentamento como francesa, e datada da década de 1830.

Ao mostrar que a casa se especializa, ainda no século XIX, Telma Correia mostra que espaços como banheiros e cozinhas passam a ser lugares dentro da habitação, e por isso, permitem com que ao se sanear o habitat, a casa passe a ser vista, também como “espaço sanitário”. Procurando, em todo tempo, circunscrever a noção de casa ao seu espaço urbano, Correia se vale do conceito de Habitat proposto por Lion Murad e Patrick Zylberman, no qual “um novo modelo de moradia” deve estar articulado a uma nova relação com o urbano mediante a ligação com redes de infra-estrutura, a equipamentos coletivos e a espaços de trabalho. Essa nova ligação é importante porque ela absorve funções antes presentes na habitação, mas, principalmente, porque transforma a casa em espaço restrito à vida familiar. Nos dizeres de Balzac, citado no terceiro capítulo da obra, cria-se, no período em estudo, “o estojo do homem privado”.

Por sinal, esse terceiro capítulo apresenta uma nova forma de historiografia no campo da arquitetura: a questão da semântica. Apoiada em estudos que se desenvolvem concomitantemente em vários países do mundo, inclusive no Brasil, sob a denominação de Palavras da Cidade (les mots de la ville), Correia parece estudar as palavras da habitação. Nessa escolha metodológica, os significados de certas expressões triviais ao brasileiro contemporâneo se transformam em chaves analíticas que ajudam a firmar projetos e interpretações sobre a moradia, que muitas vezes não nos damos conta. Indo da já referenciada noção de espaço sanitário à propalada expressão “máquina de morar” de corbusieriana autoria, Correia mostra como, no Brasil, essas expressões deram origem às interpretações urbanas e domésticas singulares.

Fechando as chaves analíticas pelas quais a habitação pode ser vista, Correia aprofunda o debate acerca da contribuição da Arquitetura Racionalista ao redesenho do espaço habitacional. Mas, sem se ater a uma história focada em arquitetos-vilões historicistas e heróis-modernos, Correia mostra debates políticos, de órgãos de classe e de profissionais das mais variadas formações que formularam projetos e posturas que se fizeram sentir no habitat do século XX. Explorando as contribuições do IDORT – Instituto de Organização Racional do Trabalho – órgão formado por empresários e engenheiros como Henrique Dumont Villares, Roberto Mange, Armando de Salles Oliveira, entre outros, a autora mostra o quanto termos como eficiência, organização, espaço mínimo, redução de custos, entre muitos outros, ajudaram a criar o programa, a imagem e a exacerbada compactação das moradias operárias e, depois, populares do país.

Embora a contribuição desse pequeno livro seja imensa, alguns pontos deixam a desejar. O mais grave deles talvez seja a falta de um capitulo à guisa de conclusão, que pudesse amarrar todos os ensaios, e apontar, de fato, as heranças desse período importante, mas, em grande parte, ainda desconhecido na história habitacional brasileira. Outra lacuna sensível é a pouca quantidade de ilustrações. As existentes se mostram adequadas ao entendimento das questões levantadas pela autora, mas pelo fato do livro ser de fundamental relevância a arquitetos e urbanistas, que têm no desenho uma de suas principais formas de discurso, a economia de ilustrações prejudica a ênfase de certas reflexões. Todavia, essas críticas não apagam a relevância da obra, que se mostra de fundamental importância para todos aqueles que interferem no espaço da cidade, seja desenhando casas, edifícios ou conjuntos habitacionais, enfim, criando o habitat do brasileiro.

notas1

Termo adotado para designar, em português, as Company Towns saxônicas e norte-americanas.

sobre o autorFernando Atique é arquiteto e urbanista e mestre pela USP de São Carlos. É doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura, na FAUUSP, e docente dos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Francisco e do Centro Universitário de Araraquara / SP. É autor do livro Memória Moderna: a trajetória do Edifício Esther (2004), premiado pelo IAB/SP

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